Foi mais uma vez um prazer ler a
entrevista de Augusto Nogueira ao Hoje Macau da última segunda-feira, onde o presidente da Associação de Reabilitação dos Toxicodependentes de Macau (ARTM) Augusto Nogueira faz mais um balanço do que tem sido a sua luta em prol do reencaminhamento das almas perdidas no labirinto da droga. Gente boa, homem do sul, um dos Cavaleiros de Santo António das bandas de Loures, arredores de Lisboa, onde desde cedo se aprende a observar de perto este problema nos seus mais variados tons, Augusto Nogueira é a maior autoridade do território nesta matéria - de longe, e sem rival. Dito isto, é também o homem certo no lugar certo, no centro da acção, na vertente prática da luta contra o flagelo e na recuperação do homem para a sociedade. Do homem, nunca do toxicodependente, e há que evitar essa despersonificação que tantas vezes se faz, que um toxicodependente deixou de ser pessoa para passar a ser lixo, um verme, um escravo do vício que dele tomou conta e deitou fora o indivíduo que estava ao comando no "cockpit". Como já disse aqui muitas vezes, ninguém está imune a este problema; toda a gente tem boquinha para fumar, narizinho para cheirar e bracinhos para picar. E mesmo quem não tem bracinhos pica noutro sítio, e para ilustrar estas duas ideias, Augusto Nogueira deu até o exemplo de um toxicodependente que perdeu uma perna, arranjou uma prótese e fez-se à vida.
Do outro lado desta luta está um parceiro que atrapalha mais do que ajuda, mas nem é por culpa própria. Se os toxicodependentes se perdem na droga, estes perdem-se na política, a única droga consumida por via verbal e auditiva, conhecida por dar cabo da paciência. Os departamentos governamentais estão a braços com um malabarismo complicado: precisam por um lado de mostrar que estão a pegar no problema de frente, prender os traficantes e os consumidores, dando a entender que levam o combate à droga muito a sério, tranquilizando as velhinhas que levam as netinhas ao jardim e temem que elas se piquem numa seringa ali deixada por um carocho qualquer, e por outro lado têm que cumprir com o seu papel social e impedir que a malta ande por aí toda a cair aos bocados e a transmitir doenças uns aos outros. Agora preparem-se para isto que vou dizer, que vos pode vir a chocar: há doenças transmitidas pelo consumo de drogas através da partilha de seringas, por exemplo, que depois podem ser transmitidas a pessoas que NÃO consomem drogas através da via sexual. Portanto se a sua Patrícia Raquel é muito boazinha, não falha um Domingo de catequese desde os 4 anos, e é tantas vezes nº 1 da sua turma que já criaram uma taça para o nº 2, de um dia para o outro pode aparecer em casa com hepatite C, porque um dia quis provar do pecado original e andou enrolada com o Zé Chunga, que tem um jeito especial para as betinhas. Portanto, não, tirando a própria dependência, não existem "doenças de drogados". Não, a lepra não é, porque já existia antes da heroína. Pois.
A solução proposta (e aplicada) para combater o aumento do consumo tem sido o aumento das penas. Aumentaram-se as penas, continuou ao aumentar o consumo, e neste caso não se pode falar em "harmonia" ou "balanço" entre os dois valores, pois o ideal seria que aumentando o factor inibitivo que é a pena, diminuísse o tráfico, mas pelos vistos vale a pena arriscar. Portanto aumenta-se o consumo, quer dizer que se vende mais, portanto que solução? Aumentar as penas, claro. É essa a decisão mais politicamente correcta, pois educar a população sobre o que é o flagelo da droga e como funciona é complicado, pois antes veio quem tivesse metido na cabeça das pessoas que "todas as drogas são iguais", que "não existem drogas leves", e que eventualmente o consumo de substâncias como a cannabis "leva ao consumo de outras substâncias mais fortes", e depois mostram números e até apontam exemplos concretos. É lógico que ninguém vai interromper esta cadeia de pensamento dizendo algo como "não senhor, eu consumo cannabis há mais de dez anos e nunca me apeteceu outra coisa!" - pensem bem, alguém diria uma coisa destas? Essa lógica de que quem hoje fuma um pintor é um criminoso porque amanhã vai andar por aí a assaltar avós para alimentar o vício do "crack" é a mesma coisa que dizer que hoje alguém que estacionou mal o carro vai andar a toda a velocidade em contra-mão na auto-estrada. Não é nada a mesma coisa e isto é um disparate? Olhem que não, e até podia dar um exemplo mais excêntrico que este, já que estamos no âmbito da futurologia.
Augusto Nogueira fala do problema que representa um jovem que é apanhado a consumir vir eventualmente a cumprir uma pena de prisão, e de facto esse é outra ideia feita muito comum, de que os consumidores o toda a gente envolvida em qualquer coisa relacionada com droga trata isso da prisão como se fosse uma colónia de férias, e ainda se queixam do "encargo" que isso representa para eles - como se viesse alguém pedir-lhes directamente uma quantia exacto para a manutenção das prisões. E de facto é assim: meter na prisão um jovem que trabalha, que em alguns casos tem educação, carreira, namorada, cão, casa, tudo só porque foi apanhado com umas merdas para avariar a mona e ficar...sei lá, em contacto com os espíritos? Ser xamanista por um instante? Isso vai ser pior do que os efeitos da própria droga, pois como o Augusto disse e muito bem, vão presos, aprendem truques lá dentro, e agora permitam-me acrescentar, se a reintegração for complicada, vão começar a aplicar o que aprenderam e aí tornam-se realmente "criminosos" na acepção do termo. E é realmente complicada, a integração, pois não vai estar ali uma banda musical a dar as boas vindas aos rapazes quando saem da cadeia. A propósito, será que não lhes podiam dar uma boleia de volta a Macau ou onde quiserem depois de cumprirem a pena, em vez de os deixarem no meio de Coloane? Na ida deram, não foi?
Isto vai completamente contra a ideia de "prevenção", e nem é preciso voltar a repetir que não há uma razão ou razões específicas para que alguém se meta na droga, e há exemplos desde o mais pobrezinho ao menino-bem. É um jogo do empurra que só tem graça enquanto não acontece com um familiar seu, que "não merecia", por ser "tão bom rapaz". Ora bons rapazes todos somos, sabemos dizer "obrigado" e "faz favor", e pedimos licença para passar, mas depois na hora de pagar é que são elas, e por uma questão de "face" engolem o desaforo. Não disseram que a droga era muito má e ponto final? E por falar em pagar, não será por culpa de um jovem que gasta 500 ou 1000 patacas numa semana a comprar estupefacientes que este negócio gera milhares de milhões de dólares por ano. Dizer que estão a "contribuir" é um bocado exagerado - só se for para a gorjeta do valete que estaciona os Rolls-Royce dos empresários, políticos e outra "beautiful people" que mais lucra com a miséria alheia. Para tudo o que não é prisão e quem quer mesmo dar uma outra oportunidade à vida, há a ARTM e o "nosso" Augusto Nogueira. Bem hajam.
No programa Contraponto do último Domingo (ando mesmo com os ponteiros atrasados) falou-se novamente da questão dos lares para a terceira idade que o Governo da RAEM vai construir na Ilha da Montanha, uma ideia que vinha sendo ponderada há já algum tempo, e que agora se confirma, e que pouca gente considera "gloriosa", mas a maioria olha para ela como uma inevitabilidade. Entre os comentadores era o dr. Frederico Rato o mais resistente, considerando que os idosos podiam continuar em Macau - não sei bem se é assim, mas pelo menos tem-se colocado numa posição menos dramática quanto a essa questão da falta de espaço em Macau. Outro aspecto que tem sido debatido amiúde é o da jurisdição, uma vez que na Ilha da Montanha vai vigorar a lei chinesa e isto levanta a questão do conflito entre o que pode ser legal no segundo sistema mas não do outro lado das Portas do Cerco. Carlos Morais José deu um exemplo usando ele próprio: "e se for eventualmente parar num desses lares e for assinante do Charlie Hebdo?". Sim, acho que aqui ouvi bem, foi mesmo assim. O CMJ, meu mentor, mestre e guru, que tanto admiro, tem por vezes estas saídas de pista que acabam no Grande Prémio da semana seguinte, e é com incandescente reverência que digo isto - por zelo, não por troça. É assim: se for assinante do "Charlie Hebdo", publicação humorística francesa que desconheço se está ou não banida no continente chinês, não estará certamente num desses lares. Vamos lá então ver isso.
Remeto para
este artigo do dia 8 de Fevereiro que fiz a propósito da visita um desses lares da terceira idade, este em Coloane, e que apesar de não ser novinho em folha, como serão os da Ilha da Montanha, não é assim tão antigo, terá uns dez anos e é também um dos mais caros: é o controverso lar construído no Helene Garden, que na altura gerou devido à resistência dos moradores para que fosse ali construído o lar. Porquê? Sobretudo porque os residentes destes lares saem de lá na posição horizontal, ou pelo menos mais horizontal de quando entraram. Este tinha bastantes condições comparados com aqueles que chegamos a ver nos noticiários inseridos em relatos de tragédias humanas. Os da Ilha da Montanha serão ainda melhores? Certamente que sim, mas serão na Ilha da Montanha, e não na Florida. Normalmente as pessoas que para aqui vão não têm autonomia para fazer o almoço ou ir à casa-de-banho sozinhas, quanto mais o discernimento para ler o "Charlie Hebdo". Se tivessem ficavam antes em casa, e garanto que sairia muito mais barato do que um internamento naquele sítio. Não é preciso encarar isto como um drama, ou uma antecâmara da morte. Chamemos-lhe antes um "encore" da vida, isso. E os velhinhos que lá estão sabem muito bem que não vão dali casar outra vez e começar uma nova vida. É uma questão de nos acostumar-mos é ideia, também. Se lá chegarmos, lá está.
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