quarta-feira, 15 de abril de 2015

O erro e o degredo


Gostava de propor um desafio: olhem para esta imagem e digam-me o que vêem. Olhem apenas. É possível que muita a reconheça, e saiba a que notícia se refere, mas esqueça por instantes que sabe e concentre-se apenas nos que os seus olhos o deixam ver. Vemos um casal, relativamente jovem, eu diria que por volta dos 35 anos, com um ar pesadíssimo e uns papéis na mão, o que pensar? Será que perderam a casa para o banco por incumprimento no pagamento das prestações da hipoteca? Será que trabalhavam na mesma empresa que acabou de falir e juntaram-se ao contingente de portugueses que "não sabem o que vão fazer agora"? O senhor tem ar de quem até já foi vender uns dois litros de sangue e tudo, cuidando que ele e esposa sobrevivem pelo menos mais duas semanas. Cada um tira as  conclusões que quiser, mas o ar vazio de desespero indicia que estamos aqui na presença de uma situação grave, de aflição extrema.

Destapemos a notícia, lemos o título, e antes que o intelecto processo o significado do cabeçalho, há ali um nano-segundo em que se teme o pior: "Criança de quatro anos...". Bolas, isso é que é não, uma criança? Estava eu ali a fazer chalaça da cara de carranca daquele casal e afinal o problema é com o filho de quatro anos, um inocente? Já é suficiente para me dar a volta ao estômago, de pensar que já ia começar a bufar conselhos "new age" do tipo "animem-se" ou "olhem para a frente, a vida continua" - afinal são pais, sentem mais do que qualquer pessoa se acontece algo a um filho seu. Que coisa horrível, que desgraça...mas espera lá, e os papéis? Pode ser que não seja aquilo que estamos a pensar, pode ser um caso de descriminação, a criança requer algum tipo de atenção especial que lhe foi recusado pela escola, ou pelo Governo, sei lá, algo a ver com papelada. Se calhar o pequenote necessita dos serviços hospitalares, um problema agora recorrente e muito debatido em Portugal, e quem sabe por isso os pais desesperam. Vamos ver o resto da notícia. Portanto, "Criança de quatro anos..."

"...notificada pelo fisco para pagar dívida do Imposto Automóvel". Ah? Quer dizer, este casal de Santa Comba Dão, o que por si é uma razão para se ficar deprimido (lá parecem ter uma "imunidade natural") está a fazer esta cara de enterro porque o seu júnior foi notificado para pagar 55 euros de imposto Sobre Veículos de um Opel, que após verificação a criança teria comprado quando tinha apenas um mês e meio de vida. Tudo isto porque tinha um nome "parecido" com o verdadeiro proprietário, que a julgar pela confusão também não deve estar muito interessado em cumprir com as suas obrigações fiscais. Não fosse pela verdadeira "montanha russa" de emoções descritas acima, eu até tinha achado piada à notícia, e a reacção mais natural dos pais seria esta:


Muito diferente, deveras. Ou em alternativa...


Sim. E antes de continuar gostava que alguém me explicasse porque é 99% das fotografias de "casais a rir" que se encontram na net são inseridas no âmbito da "marmelada" ou dos preliminares que antecedem o coito vaginal - e muito deles já com uma certa idade, o que suspeito serem imagens de publicidade a algum laxativo. Não creio que esta notificação fiscal tivesse um efeito erótico no casal (a não ser que fosse lida pelo Julio Iglesias com uma "brass band" como som de fundo), ou se rir é o melhor remédio para cimentar casamentos "Sin Fong" (esta inventei mesmo agora, espera lá: 

Casamento "Sin Fong" ® : Matrimónio já relativamente longo, mesmo que a meio caminho ou menos das Bodas de Prata, mas que já evidencia uma certa falência da estrutura, flacidez das vigas, bem como fendas e rachas onde não deviam existir. 

Pronto, direitos de autor salvaguardados, em frente que se faz tarde. É capaz de ser desagradável receber uma notificação do fisco para pagar um imposto sobre algo que não se comprou nem se está a usar, não porque não, mas porque é impossível, e ainda ter que gastar 21 euros em documentação para provar que a criança não era o proprietário da viatura. Pode parecer um pouco...uhh, estúpido? Ou como diz a senhora do casal "uma situação caricata" ter que provar que uma criança em idade pré-escolar não é proprietária de um veículo automóvel com motor - salvaguarda-se a possibilidade de ter um triciclo. Só faltava um agente pedir-lhes a carta de condução do petiz, e perante a estupefacção dos pais enquanto lhes dizem que "não têm", este encolhe os ombros e diz num tom resignado "então olhe, desculpe, não posso fazer nada...". Isto dá para rir, pessoal! É o nosso Portugalinho, lembram-se? Porquê a cara longa (why the long face?)? Testículos para aquilo! (Balls to that). Além daquela cara que mais parece que souberam que a criança foi mobilizada para a Guerra do Ultramar, e não que era proprietária de um Opel - pópó alemão, nada mau, podia ser pior, um Seat, sei lá - ainda têm a lata de dizer que "reclamaram". Não devem ter reclamado com muita força, pois se ficou mais que provado que o erro foi da entidade cobradora, estes deveriam responsabilizar-se pelas despesas, e quem sabe até ressarcir os visados de alguma forma. Entravam para beber um café e na saída levavam uma lapiseira e um porta-chaves. 

E isto deixa-me confuso: vão lá, o carro não é do menino, ai não então prove lá, eles provam, pagam 21 euros, recebem a factura, obrigadinho e desculpem lá a maçada, ó tótós, vão para casa e depois ligam para o Correio da Manhã a fazer queixinhas. Como é? Estavam com esperança que o CM publicasse em letras gordas: "Sangue e lágrimas nas Finanças em Santa Comba Dão, menos o sangue"? "Pais de filho único obrigados quase à força a pagar 21 euros de despesas indevidas, chegando a dar-se um ligeiro aumento do tom de voz da parte fiscalizadora"? Para quem não sabe, estou em Macau e raras vezes vou a Portugal, mas sigo amiúde a actualidade pela imprensa escrita e audio-visual, e sei que 1) Portugal continua a ser uma República Parlamentar e o Ministério das Finanças não deu um golpe de Estado e 2) Os fiscais desse mesmo ministério não são a Stasi, os serviços secretos da ex-RDA. Quem sabe se isto se explica pelo misto de incredulidade e revolta, com o primeiro a servir de rolha à evacuação da segunda (blergh) quando o Fisco resolveu penhorar quatro bolos a um estabelecimento de pastelaria faltoso. Se isto chega ao ponto de se tirar o pão da boca, ou nestes tempos que correm, os bolos do balcão do café da esquina, nada resta senão aos jovens, o futuro, e especialmente aos recém-nascidos, o...futuro II, meterem-se num Opel e desopilar dali para fora.


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