Enquanto a página electrónica do Hoje Macau não regressa em todo o seu esplendor, deixo-vos com o
artigo da semana passada em versão PDF (virem até à página 20), ou se tiverem muita preguiça de o fazer, podem ler aqui a transcrição completa, que asseguro ser fiel à do jornal. Um feliz feriado de sexta-feira santa e uma boa Páscoa, ou como se diz por estas bandas. "chupa ovo!".
Um ex-colega meu, chinês natural de Macau, falava-me de quando em vez de algumas experiências que teve durante uma estadia de seis meses em Portugal, onde tirou um curso de Língua Portuguesa através de um desses intercâmbios que por alturas da transição apareciam dia sim, dia não. Uma das coisas que mais o surpreendeu durante a estadia no nosso país (que diz ter adorado) foi a facilidade com os portugueses mandavam para trás uma “bica” que considerassem estar “mal tirada”. Não sendo ele um aficionado da nossa versão do café Expresso, ou qualquer outra, olhava para esta cena numa perspectiva económica, e ficava a matutar em como era possível que um estabelecimento comercial colocasse a satisfação do consumidor à frente do seu lucro – não generalizando, é claro, mas temos a noção de que fazer o mesmo em Macau era considerado como uma ousadia, um ultraje. “O senhor está a gozar comigo ou quê? Se quer outro, paga!”. E pouco lhes importa se acabou o primeiro que pediu, ou se não o fez por ser intragável, e a única maneira de lhe darem razão era se tiver um insecto a boiar na chávena. E ainda era olhado com desdém, possivelmente sem um “obrigado, volte sempre” na hora de pagar e sair.
Pode-se dizer que para nós, portugueses, a “bica” é um bem de primeira necessidade, tanto ou mais que o pão ou o leite. De acordo com números referentes ao ano de 2012, cada português bebia em média 2,5 “bicas” por dia, o que equivale a milhões de doses diárias, portanto pouco importa que não entrem em caixa os trocados de uma ou duas delas mal tiradas. Em Portugal quando se trata da “bica”, o cliente tem sempre razão, mesmo que continuemos a primar pela cordialidade e pelo bom senso, preferindo não insistir quando é notório que se está a “chover no molhado”. Por isso dificilmente se vê alguém a mandar para trás duas bicas de seguida – mesmo que a segunda esteja ainda pior que a primeira. Pode ser que se confunda este comportamento com resignação, ou mesmo falta de coragem de se impor com firmeza no momento de exigir um produto com qualidade, mas aqui a situação requer uma espécie de ponderação, da racionalização daquilo que o lado mais primitivista do nosso ego poderá interpretar como uma afronta à dignidade.
Após uma primeira reflexão, podemos concluir que a “bica“ mal tirada que foi posta à nossa e nos parece estar a chamar de “frouxo” alto e bom som, convidando a um acto irreflectido de revolta com recurso à barbárie tem afinal uma outra razão de ser. Pode ser apenas defeito da máquina, e se for esse o problema com toda a certeza que será detectado e resolvido a tempo de salvaguardar o bom nome daquele estabelecimento. Pode ser ainda devido à inexperiência do empregado, que ainda não está habituado a tirar “bicas”, ou ainda não domina a técnica. Talvez seja músico por vocação e e entenda mais de orgãos da Korg do que de máquinas de café da La Cimbali. Quem sabe se não queria estar ali a servir-nos a nós, que não conhece de lado nenhum, tratando-nos com uma deferência que não nos deve, e que nem consegue demonstrar condignamente, pois não está para aí virado. Se calhar a mãe é viúva e vive de uma pensão miserável, e está urgente necessitada de uma operação da qual depende a própria vida. E tantas vezes tudo que temos para lhe dizer são inanidades do tipo “ó maçarico, é assim que se tira uma bica?” ou “pedi uma italiana e trazes-me esta banheira? Olha que já tomei banho hoje”.
No fim número de oportunidades que se dá um estabelecimento que desrespeite este ritual que mantém a maior parte da população activa de um país inteiro a salvo de um colpaso fica ao critério de cada um, se lhe dá mais jeito em termos de localização, ou pode ser que nem se importe se a “bica” está bem ou mal tirada, e se fosse mais fácil injectá-la na veia, era isso mesmo que fazia. Tanta coisa que se pode aprender com uma simples chávena de café. Posto isto dou comigo a pensar como seria o mundo se em tudo o que fazemos usassemos os ensinamentos transmitidos pelo frequente consumo da nossa “bica” – a preocupação com a qualidade, os estímulos sensoriais, a tal ponderaçāo perante a contrariedade que é ser servido de duas “bicas” mal tiradas, tudo valências que poderiam ser aplicados noutras funções do nosso dia-a-dia. Os antigos gregos tinham a Academia, e nós temos o café da esquina, com a vantagem de que as proposições epistemológicas contidas na “bica” são literalmente absorvidas num ambiente de solitude, propício à mais profunda introspecção, ou quem sabe a produção de uma ideia que possa mudar de uma vez só o rumo das nossas vidas. Um exemplo? E que tal Fernando Pessoa, para ilustrar as possibilidades de uma simples “bica”? Só é pena que não se tenha chegado ainda ao equilíbrio ideal: mandar para trás a “bica”, e ao mesmo tempo tentar entender as razões pelas quais foi mal tirada, nascida imperfeita sem que lhe seja dada uma chance de nos poder vir a inspirar.
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