sexta-feira, 10 de abril de 2015

O Evangelho segundo Leocardo, parte II: o que (não) nos dizem as escrituras


"...e para aquilo que na Bíblia pareche horrível, é precijo uma cuidadoja análije."

A Bíblia é o livro sagrado dos mais diferentes ramos do Cristianismo, e com as outras duas grandes religiões abraãmicas tem algo em comum: o personagem principal, que é ao mesmo tempo o "bonzinho" e também o "mau da fita". Falo, naturalmente, de Deus, o Deus abraãmico, assim designado por ter sido anunciado aos homens pela primeira vez em exclusivo por...um homem: Abraão, um dos patriarcas bíblicos, e uma das figuras de maior destaque no Antigo Testamento. Isto vale por dizer que antes que Abraão nos anunciasse, ninguém fazia a mínima ideia da existência deste Deus, que ao contrário dos restantes existentes no panteão das muitas religiões que existiam antes da "unificação", tinha exactamente esta característica: era apenas um, o único, e mais nenhum se poderia comparar a Ele em todos os aspectos. É omnipotente (tudo pode), omnisciente (tudo sabe), omnipresente (está em toda a parte) e omni-muita coisa, em suma, é o ser perfeito, o Delta e o Omega, o princípio e o fim de tudo, etc. etc. não existem adjectivos que O qualifiquem. Não surpreende portanto que durante toda a História tenham havido homens de poder, desde reis, a imperadores, ou meros chefes tribais que tenham chamado a si algumas destas qualidades, ou que se dissessem mais próximo de Deus que os seus súbditos, para daí obter a legitimidade do seu domínio sobre os mesmos - e em alguns diziam-se confidentes de Deus, ou que este os havia nomeado como líder do seu povo. Esta tem sido uma falácia perigosa que vem levando a que se tenham muitas dúvidas a respeito de um Deus, ou um ser tão perfeito que tolere certas situações pouco compatíveis com a tal "omnisciência".

Primeiro falemos desta coisa que são as "religiões abraãmicas", o quais são, afinal. As três grandes religiões que seguem o Deus único anunciado pelo patriarca Abraão são o Judaísmo, o Cristianismo e o Islão, por ordem de aparecimento na escala cronológica. O mesmo Deus que se revelou a Moisés (pelas costas, recorde-se), profeta do Judaísmo, é o mesmo que é pai de Jesus e que mais tarde ditaria o Alcorão ao profeta Maomé, fundador do Islão. Ora bem, isto posto nestes termos parece ao mesmo tempo confundir e simplificar demasiado as coisas, mas aqui entra a velha questão de "quem tem razão", e esse tem sido o grande problema que tem colocado em pé de guerra quer estas três confissões, quer os que se abstêm de seguir uma delas - a estes se dá o nome de "ateus" e "agnósticos", e entre ambos existe uma grande diferença. Mas já lá vamos. O seguidores do Islão, e falo destes por ter verificado com mais incidência este fenómeno, não aceitam que o seu Deus seja o mesmo que o dos "infiéis", palavra que assumiu contornos perversos que não tem. Nem os próprios cristãos ajudam a dissipar esta confusão, dando ao nome "Alá" o sentido de que se trata de outra divindade. "Alá" é simplesmente "Deus" em árabe, como "God" o é em Inglês, ou "Dieu" em francês - não estamos aqui a falar de deuses aleatórios adorados conforme o nome que se lhe dá: é o mesmo. Os próprios cristãos dos países onde a língua materna é o árabe referem-se ao Deus deles (o Cristão, portanto) como "Alá", e se estiverem lembrados isto deu que falar aqui há uns tempos na Malásia, onde os muçulmanos queriam a exclusividade do nome "Alá". Por um lado é bom que isto aconteça, apesar de normalmente resultar em situações de intolerância que misturadas com ódio levam à violência, pois deixa exposto o ridículo da própria ideia de religião: entra-se em disputa por formalidades que no fim levam à adoração da mesma divindade. Se quisermos encontrar um motivo para explicar este imbróglio, o único que me ocorre é a forma como a própria divindade se manifesta, ou não manifesta, neste caso, delegando a Sua função de se dar a conhecer aos seus eventuais servos a emissários que transmitem a Sua mensagem de forma difusa. E isto dá pano para mangas, como podem imaginar.


Quem pensaria que por detrás desta carinha de sonso estava o inventor do maior dos enigmas?


O conceito de Deus, e não digo "existência" pois os deístas acreditam que nada existia antes Dele, e neste caso do Deus único, já consta do "Tanakh", uma espécie de Bíblia para os judeus, só que enquanto a Bíblia é uma colectânea de manuscritos que dão origem a um livro, uma espécie de Código, o "Tanakh" é o conjunto de três livros semelhantes: a Torá (o mais importante), Neviim e o Ketuvim. Mas ainda antes deste existiam já outros manuscritos que sugeriam a existência de um Deus com as mesmas características do Deus de Abraão, que podem ser encontrados no Bagavadguitá hindu, no Tipitaka budista, que contém textos anteriores a Cristo (os "sutras") e até partes do Avesta, o livro sagrado do Zoroastrismo, que apesar de ser uma crença com uma carga mística muito elevada, fala também de "um único Deus", sendo mesmo considerada uma das formas primitivas de monoteísmo. Já tinha deixado expresso neste artigo que o próprio Zoroastro, que viveu antes de Cristo, tinha com este inúmeros pontos em comum. Mas esse artigo era dedicado simbolismo da vinda de Cristo (foi escrito perto do Natal, inclusivé), e o que eu gostaria de abordar aqui é não a existência de Deus, mas o que nos foi deixado saber sobre Ele nas escrituras, e nesse particular vou-me centrar nas que me são mais familiares: as cristãs, e por inerência a Bíblia. Por tudo o que vimos em cima, é possível afirmar que nem Abraão inaugurou uma nova modalidade de devoção a uma única entidade divina, nem a sua revelação obliterou as restantes crenças - ainda hoje temos, além das três religiões abrãamicas, outras derivadas destas, algumas "rebeldes", até, e outras que não acreditam neste Deus, mas num outro ou outros, e que os crentes no Deus bíblico chamam de "pagãos" - uma soberba que a eles assiste, e derivada da sua própria fé, portanto não me cabe a mim comentar.

O que posso é comentar, e aqui entra a pergunta que se calhar está na cabeça de muita gente que me "aturou" até este ponto: não sendo eu cristão (sou, em parte, mas já explico isso), ou seguidor de outra qualquer confissão, o que me leva a interessar-me sobre este assunto? Esta é a versão "diplomática" da questão, pois para muitos crentes o simples facto de eu não ser crente não me dá o direito de "questionar a fé alheia". Isto são logo dois pressupostos completamente absurdos - e desculpem-me, pois ao contrário de vocês não é de ânimo leve que considero o que outros pensam de "absurdo", nem cometo a ousadia de chamar "ignorantes" ou "burros" a quem, mesmo assim, dê demonstrações de não saber do que fala, ou falar do que não sabe. Se o apóstolo Tomé, célebre no Evangelho por querer "ver para crer", para mim basta "ler para tentar perceber", e "querer" para ir à procura desse conhecimento, e depois de o adquirir, ter o cuidado de não o tomar como único e definitivo. É a isto que se chama de agnosticismo, a redução à insignificância do ser perante essa enormidade que é o Cosmos. É típico da nossa natureza megalómana de ser superior perante os outros que habitam apenas uma infinitésima partícula desse imensurável Universo querer saber em 70 anos de vida o que está na origem de algo que levou milhões e milhões desses mesmos anos até que se desse a nossa passagem. Se a humanidade é um capítulo mais ou menos recente da história desse Universo, as religiões são uma nota de rodapé, e é possível - atenção, possível - que tal como todo o resto, tenham um princípio, meio e fim. Esse fim fica mais próximo à medida que mais se sabe, e que nunca chega a ser da missa um simples "Irmãos...", quanto mais chegar à metade.


Pois...diz-se que a fé "move montanhas", e não que "junta montanhas". Vejam lá bem.

Ao contrário do que pensa o meu camarada Hugo Gaspar, que espero não entender isto (nem ele, nem ninguém) como uma "lição", que não é da minha competência dar lições a ninguém, o agnosticismo não é uma demonstração de "inteligência", mas sim uma confissão de ignorância, mas ignorância no bom sentido. Aquilo que os crentes das muitas religiões dizem saber ou conhecer, e que afirmam como verídico, é na maior parte dos casos assente na sua . Se forem ver o significado desta palavra no dicionário, a primeira definição é esta: . "Adesão absoluta do espírito àquilo que se considera verdadeiro". Aqui está: "espírito", e o "que se considera verdadeiro". Pena que como em tantas outras asserções do dia-a-dia, a fé não seja ela própria pessoal e intransmissível. Pode ser adquirida nas mesmas circunstâncias, ou através da mesma fonte, mas nem dois católicos-apostólicos-romanos convictos, que tenham frequentado a mesma catequese, assistido às mesmas missas, e lido os mesmos livros entendem a sua fé da mesma forma. Perdoem-me os cultos e outras seitas do tipo "Igreja Universal" e afins, que aí nem sequer se fala de fé ou do que quer que seja que tenha interesse para esta discussão. Pode ser que acertem com a afinação dos cânticos, ou que os entoem em uníssono, mas em termos de mérito isso fica no mesmo patamar das ovelhas a balir ou as araras a cacarejar - desculpem a arrogância, mas é que tenho por garantido (preconceito, talvez?) que não é o conteúdo do evangelho que vos leva a esses píncaros. No fundo, e como em todo o resto, a religião tem fragilidades que a podem fazer cair no ridículo, e exposta ao travestismo.

Outra asserção curiosa feita pelo meu camarada e colega de blogosfera Hugo Gaspar prende-se com a solidez dos dogmas da Igreja Católica, que afirmei anteriormente "serem facilmente desmontáveis" em alguns casos - atenção que há dogmas que são actualmente impossíveis de desmontar por falta de uma explicação alternativa, e outros, que já tendo sido encontrada essa explicação, persistem teimosamente, e há quem ainda neles encontre a verdadeira percepção da realidade, quando já ficou provado que não é assim. Não é mas já foi, ou pelo menos foi assim que se entendeu um mistério que entretanto deixou de ser mistério. Passo a comparação algo grosseira, mas da mesma forma que o Homem chegou a temer certos fenómenos meteorológicos, como os relâmpagos, ou até a chuva, como manifestação do divino, apenas até conseguir explicar esses fenómenos, há também mitos que a religião criou para preencher o vazio deixado pelo que a ciência não conseguia explicar. Aí está outra vez a natureza "bisbilhoteira" da humanidade em entrar em acção: tudo quer saber, e quando não se sabe, "inventa-se". Peguemos então na Bíblia, ou em algumas partes que ajudam a ilustrar aquilo que o Hugo Gaspar fala de boca cheia: a interpretação, que segundo ele requer o auxílio de da exegese e da hermenêutica, bem como um enquadramento histórico correcto. Isto pode ser verdade em algumas situações, mas noutras pode-se dar aquilo que é muito comum entre os crentes que se preferem abster de discutir algumas evidências menos convenientes: serve para atirar areia para os olhos. Permitam-me que faça uma breve introdução a este respeito.

A Bíblia e os livros que a compõem não são da autoria da mesma pessoa ou pessoas, nem escritas no mesmo local ou época, e muito menos com o fim de elaborar esse compêndio a que se deu o nome de "Bíblia". Muita gente acha a Bíblia um livro "confuso", e por isso remete a sua interpretação para os entendidos, e posto isto, estando aqui a falar de algo tão sensível como a fé ou a crença de cada um, há quem manipule os textos, ou lhes dê um sentido diverso daquele que tem - ou não tem. Aqui estamos na presença de uma espécie de "Código", assim como os códigos jurídicos, que são não mais do que compilações de leis, e tal como a Bíblia diverge quanto os seus autores, local, circunstâncias ou até época. A diferença reside no objecto e na finalidade - as leis são claras, ou pelo menos devem ser, e produzem um efeito concreto e aplicável em situações reais, tendo mormente um carácter regulador, ou se nos referirmos ao Direito Penal, preventivo. Por outro lado a Bíblia serviu de inspiração a muitos dos códigos actualmente vigentes, e é fonte de um tipo de Direito - o chamado "direito canónico", que mantém hoje limitado apenas à Igreja, sem influência no Direito Civil, podendo no entretanto encontrar-se neste várias influências suas. Aliás é essa a razão de não me poder alienar da importância da Igreja e da religião, no meu caso a Católica, uma vez que não sendo a minha confissão, é a pedra basilar da cultura onde nasci e cresci, bem como onde assentam os fundamentos da "moral", esse conceito abstracto que mesmo assim emana directivas que funcionam um pouco como uma "voz da consciência" - temos por garantido que existem actos que não sendo "ilegais", são "imorais", e na maior parte das vezes isto leva-nos a abster-nos de praticá-los. A influência que a Igreja teve na própria estrutura do Estado faz com que seja ténue esta linha que separa o ilegal do imoral.


Neste piquenique nudista, ou os leões são vegetarianos, ou não sabem por onde começar.

Agora passo para um exemplo de dogma que, seja qual for a perspectiva, enquadramento, ou até a força da fé que o tenham como autêntico ou credível, é simplesmente falso. E aqui, meus amigos, mais uma vez peço desculpa, mas mesmo que todas as teorias criacionistas avançadas por Charles Darwin ou qualquer outra depois dele estejam erradas, e que nos ossos dos dinossauros encontrem uma estampa onde se lê "Made in Taiwan", esta é também uma teoria impossível de ser válida, pelo menos à luz do conhecimento actual. O livro de Génesis, o primeiro do Antigo Testamento, e por isso o primeiro de todos de que consiste a Bíblia, é um delírio, e apesar de ter parcialmente o seu encanto, ou até um certo charme "kitsch", faz-me dar graças a ? (o "deus" dos agnósticos) por não ter qualquer fundamento que o apresente como "verdadeiro". Durante as minhas aulas de Antropologia Cultural chegámos a realizar um ou dois debates entre partidários do criacionismo e do evolucionismo, e parecia sempre existir uma queda para não constatar o óbvio: a evolução, quer seja ou não a que os seus detractores reduzem ao simplismo do "macaco-homem", existe. Vê-se, sente-se, acontece à nossa volta, e está neste momento a acontecer. Para perceber isto é muito simples: se Deus tivesse criado o mundo e especialmente o Homem nos moldes que o livro de Génesis descreve, a única maneira da serpente obter a atenção de Eva seria aparecer-lhe no ecrã do televisor no intervalo da novela, ou numa alternativa que há vinte anos não entrava nos debates, aparecer-lhe num "pop-up" no ecrã do PC.


Para os primeiros habitantes da Terra, Eva era mãe, irmã, ou as duas coisas juntas.

Pronto, o meu raciocínio parece um pouco trocista, e pode ser que haja quem entenda que terei "faltado ao respeito" a alguém que possa ter fé nesta versão da Criação, mas não acredito: ninguém semi-alfabetizado vai dar crédito a uma "criação às três pancadas". Vou mais longe: quem acredita ou disser que acredita nesta fábula do sétimo dia, e do homem feito de barro e da mulher que sai da costela dele estará antes a insultar pessoas que dedicam anos da sua vida, fazendo o uso de meios materiais e humanos que requerem investimentos avultados e sempre com a consciência de que apenas poderão levantar o véu sobre algo de que não podem possivelmente vir a saber tudo. "Bah, para quê escavar fósseis ou provar através de métodos científicos que uma pedra tem milhões de anos, quando Deus criou o mundo há pouco mais de 5000 e nós descendemos todos do Adão e da Eva?". Nem vale a pena chamar a atenção para a tal eventualidade do incesto, caso isto fosse mesmo assim, pois ainda perguntavam "o que tinham Adão e Eva a ver com basquetebol". Já encontrei pessoas que "sacudiram do capote" este (grande) "senão" que constitui a origem incestuosa da humanidade dizendo que Adão, Eva e Caím, a dado as únicas três pessoas existentes à face da Terra, todas ligadas por parentesco em linha directa, tiveram filhos com "outras pessoas" - inventadas por eles, é lógico. O pior é que depois veio um tal de Dilúvio, e havendo apenas um de cada animal na tal Arca, lá foi preciso ir buscar novamente "outras pessoas" para que os exemplares humanos não andassem outra vez a comportar-se como cachorros. E isto já contando com a participação de Noé, e para ele isto deve ter sido divertido. É que mesmo que Noé se juntasse à "festa", e de acordo com a descrição não seria nenhum galo que pudesse povoar uma granja inteira, haveria incesto na mesma: só havia uma "tomada" para duas "fichas". Para bom entendedor...


O Dilúvio, que serviria também de inspiração para o Fungagá da Bicharada

A própria Igreja admite que se tratam de fábulas que se põe apenas como uma hipótese num tempo em que não existiam meios de provar através da ciência que de facto não foi assim que aconteceu. O próprio Dilúvio, por exemplo, é gritante: de que tamanho seria uma arca daquelas, feita de madeira, para que hoje não exista uma lasca dela? E algo como um dilúvio, um mundo submerso, deixaria certamente muitas pistas, o que não aconteceu. O problema é que a Igreja não fala disto com muita convicção, uma vez que se arrisca a que seja interpretado como sendo "mentira", e daí se parta para a generalização habitual nestes casos: é tudo mentira. Não me surpreendia, partindo de quem acredita nestes dois episódios em particular como tendo sido verídicos. O que acontece é que a Bíblia tem lá muita coisa, mesmo para os não crentes, e apesar de existir muito material datado, ou que não seja aplicável nos dias de hoje, há lá muito por onde escolher, e quase de certeza que toda a gente encontra qualquer coisa que lhe sirva - é como as liquidações dos armazéns Conde Barão. Há lições que se podem retirar, episódios apaixonantes, lindas parábolas que nos deixam a reflectir e que nos levam a conclusões arrebatadoras, e o contrário de tudo isto também é verdade - não fosse a autoria dos manuscritos difusa e dispersa, como já referi. Vou passar a um episódio que considero ser uma daquelas coisas que NÃO se aproveitam na Bíblia.


E ainda dizem que "é deles que elas gostam mais"!

Um bom exemplo de que a Bíblia teve a contribuição de gente muito pouco...er..."pia e santa", chamemos-lhes assim, é o 2º capítulo do Segundo livro de Reis, que nos fala do profeta Eliseu (ou Elias, em algumas versões), e que depois de ter recebido a benção do senhor, é molestado por um grupo crianças que zombam dele pelo facto de ser calvo. Atenção que isto, sem exegese, e hermenêutica ou o raio que o parta conta-se assim: Eliseu, que é de facto calvo (já isto se poderia considerar irrelevante, de tão normal que é; se fosse numa mulher entendia-se melhor esta menção) volta de um encontro com Deus que se poderá numa palavra descrever como "mágico", e no regresso a casa cruza-se com um bando de crianças que lhe dizem "sobe, calvo, sobe". Para entender esta do "sobe", convém analisar o resto do capítulo, mas para aquilo que se segue não tem muita relevância - nada tem, nem nada explica. Perante o insulto (?), e dotado da procuração divina que lhe dá poderes de representação, Eliseu "amaldiçoa-os (às crianças, especificamente "meninos") em nome do Senhor", e logo a seguir "saem da floresta duas ursas" (meninas, portanto) que - atentem a isto - "despedaçam quarenta e dois desses meninos". Posto isto Eliseu vai para casa todo feliz da vida. Aqui não há qualquer possibilidade de se ter perdido (ou acrescentado) algo na tradução, pois todas as vers­ões, bem como todas as traduções falam de "duas ursas que dilaceram 42 meninos", e nenhuma de "Fada Sininho que leva os meninos para a Terra do Nunca". Tudo bem, há versões que falam em "despedaçar", outras em "dilacerar", mas em "dar miminhos" não vão encontrar uma que seja.



Para o castigo ser mais "justo", espero que as ursas estivessem famintas. Já agora...

Portanto aqui certamente que é preciso puxar de todas as ferramentas da exegese, hermenêutica e tudo mais, e vamos arregaçar as mangas para provar por A+B que Deus não considera "ser despedaçado por ursos" a mesma coisa que um puxão de orelhas. Resultados? Convido-vos a ler esta interpretação do Presbítero André Sanchez, da Igreja Presbiteriana Bela Jerusalém, de Ribeirão Preto, estado de S. Paulo, Brasil, que vai ilustrar exactamente aquilo que quero dizer: há morais infelizes e despropositadas na Bíblia, e podem crer que são muitas. E não vale a pena ir buscar a origem Presbiteriana do pastor como desculpa, pois basta ir à secção de comentários para perceber que entre as pessoas normais que consideram isto uma loucura, há outras que acham "muito bem" esta postura de "mafiosi" evidenciada por Deus, e quem se meter com os seus capangas, leva. E "mánada". Ainda por cima "sobe, careca, sobe", um insulto que quase justificava outro Dilúvio. Agora percebo porque é que a Manuela Bravo mudou o título e o refrão da canção que levou ao Festival da Eurovisão em 1979 para "Sobe, Sobe, Balão, Sobe", trocando "careca" por "balão". É que para mais o festival foi em Israel, com Deus a jogar "em casa" (omnipresente, mas com sede própria, atenção), e ainda saíam dos bastidores do Centro Internacional de Convenções de Jerusalém dois ursos que depois não descansavam enquanto não pusessem as tripas de fora a 42 crianças, estivessem elas entre os espectadores ou não -  a providência divina encarregaria-se de garantir que estivessem. À Manuela estaria reservado outro castigo mais à sua medida, quem sabe estupro seguido de degolação, com uma ou outra víscera mastigada, sei lá. No fim tudo coberto de enxofre, para dali não brotarem mais impropérios a carecas.


Então como é? "Fifty-fifty". Querem mais justo do que isto?

Esse é um dos meus problemas com o evangelho - e atenção que falo por mim, apenas: a figura do "julgamento divino", ou a versão muito própria que Deus dá à "justiça", que vendo bem as coisas, entre a Sua e a dos Homens, penso que a última ainda é menos penosa. Fico mesmo a pensar que os castigos que vemos Deus a aplicar na Bíblia, ou aquilo que entende como "justo", atenuam um pouco qualquer culpa que a Inquisição possa ter durante os séculos em que semeou o terror: "O que é que vocês querem? É assim, pronto, não há outro jeito" - consigo ouvir o Torquemada a queixar-se enquanto acrescenta orifícios que não existiam antes num pobre diabo, e faz churrasco com outros 130. Reparem na fábula bíblica do Rei Salomão, também do livro dos Reis, do Antigo Testamento: aquela noção de justiça que ficou com o seu nome, por ele a ter aplicado de forma tão criteriosa e sábia, não me cai no goto, não sei porquê. Ameaçar cortar um bebé ao meio para apurar quem era a sua verdadeira mãe, mesmo que não tivesse causado um arranhão na criança, parece-me um método perverso. Já profanar um cadáver com flechas foi uma empreitada que acabaria por ir em frente, mesmo que o "filho legítimo" se tivesse recusado a fazê-lo. Pode ser que haja quem sorria e acene com a cabeça em tom de aprovação, mas quando escuto a expressão "justiça salomónica", sinto calafrios.


Não sei o que vos disseram que seria o "Apocalipse", mas vou adiantando já que esta é...a melhor parte! Brrr....

Mas demos à Bíblia as resmas de benefícios da dúvida que a remendem e a mantenham de pé, e fiquemos a esperar que os argumentistas que trabalharam a personagem de Deus estivessem num dia "não", e que já haviam esgotado o reportório todo de bondade com o Pai Natal, ou os métodos de " disciplina suave" com o João Pestana. Não vou ser "torto" e dizer-vos que o padre da vossa freguesia, ou o vosso/a catequista não são pessoas indicadas (em teoria serão, mas como "pessoas" não os conheço) para vos elucidar de qualquer dúvida que tenho a este respeito, pelo que os recomendo como autoridade na matéria, ao contrário deste vosso servo, apenas um curioso. Contudo, não se satisfaçam com respostas evasivas às vossas dúvidas, ousem questionar, que já passou o tempo em que a Igreja convencia as pessoas de que estava "alguém lá em cima" a escutar o que vocês dizem, ou a ler os vossos pensamentos. Não se contentem com meias-explicações, e não caíam naquele papo-furado de que o Antigo Testamento é que "é horrível" (pudera, tem imenso em comum com a Torá e o Alcorão), e que o Novo Testamento é "a nova aliança, a oferta de Deus com o seu filho". Pensem bem em aceitar uma "oferta" que acaba com o livro do Apocalipse.


Duncan Heaster: para começar, é alguém que lê. Nada mau...

Como conclusão gostaria de deixar aqui um sugestão de leitura, a versão traduzida para Português do livro "The Real Devil", do teólogo Duncan Heaster, que desmistifica muitos dos episódios bíblicos com uma maior carga sobrenatural, além de - e como o Hugo Gaspar gosta - inserir outros episódios menos "digeríveis" no contexto histórico-cultural onde se inserem. E garanto-vos que ele faz um excelente trabalho, justificando as suas interpretações com factos, e sem entrar em "transe chalupa", como fez mais acima o tal Pastor Presbítero, a quem, coitado, a Bíblia ser vedada da mesma forma que o "Mein Kampf" a um alemão que se diga "agastado com o número de não-alemães que visto no seu bairro e arredores". Destaco do trabalho deste pastor a forma com que prova a não-existência de Satanás (pelo menos na forma como a maior parte o entende), ou de como o Inferno escocês faz umas belíssimas batatas assadas. Claro que esta "ousadia", de negar ao já de si anti-herói, o Deus bíblico, uns vilões para  combater, deixa-o um bocadinho a sós com a sua perversa natureza. Mas no fundo é que levam da Bíblia: é linda, contém imensas lições que podem usar no vosso dia-a-dia...os ensinamentos de Cristo...amai o próximo...e Deus sobre todas as coisas...senão ele!....oops, quer dizer, é infinitamente misericordioso, e em conclusão tudo o que vos parece bem, aconteceu mesmo; tudo o que parece horrível, carece de interpretação; e se ousaram interpretar e mesmo assim é mau, sois uns palermas que não sabem interpretar coisa nenhuma. Mas Deus ama-vos. Ide com Ele.

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