Uma "Auschwitz of sorts" para os galgos em Macau.
A ANIMA, associação de protecção dos animais inspirada na Greenpeace, mas sem o extremismo e as iniciativas de pendor terrorista, ou na Quercus, mas sem a corrupção, veio dar ao Canídromo de Macau a extrema-unção: "não organizarais mais corridas de cães, e se o fizerdes, o Senhor enviará pestes terríveis sobre vocês e sobre vossos descendentes, desgraças horríveis e prolongadas, doenças graves e persistentes" (não liguem, estou só a citar o livro bíblico de Deuterónimo, numa daquelas passagens que prova de Deus nos ama muito, e se for necessário - e é - esmaga-nos com carinho). Albano Martins, que tem dado a cara pelas criaturas de focinho, vaticinou o fim das apostas nas corridas de galgos, pois "não é lucrativo", e claro, cruel para com os bicharocos, que quando não podem correr mais vão fazer de sabão - ou de borrego, se estiver frio e convidar ao ta-pin-lou num dos muitos restaurantes da especialidade na Areia Preta e arredores.
A Juventude Salazariana.
O Canídromo de Macau, ou em chinês 逸園賽狗場 (literalmente "Praça de Corridas de Cães) era até há cerca um século apenas mar, e depois do respectivo aterro, a administração colonial construiu em 1940 o "Estádio 28 de Maio", baptizado com a data da implantação do Estado Novo e da ditadura em Portugal, no ano de 1928 - que homenagem tão comovente, pá! Para os chineses era conhecido por "Campo Lin Fung", este "lin fung" (蓮峰) significa "monte das flores de lótus", e assim era conhecido por se localizar perto do templo budista com o mesmo nome, que de um modo geral é o nome daquele bairro na zona norte da cidade, que compreende a área entre a Av. Tamagnini Barbosa e os bairros da Ilha Verde, Iao Hon e T'oi San - ninguém sabe muito bem onde acaba um e começam os outros, sinceramente, e só o edifício Wan Son é referido como fazendo parte integrante da Ilha Verde, Fai Chi Kei e Lam Mau. É a versão local do "four corners" norte-americano, o ponto onde se cruzam quatro estados federais distintos.
A visita dos "cães vermelhos".
Por detrás da construção do Estádio 28 de Maio estava um ideal olímpico. Talvez inspirados pelo sucesso que foi a organização dos Jogos de Berlim quatro anos antes, os cães-de-fila do regime pensaram num espaço para a população local concretizar a máxima do corpo são em mente sã, mas o "timing" não foi o mais indicado, pois com a Guerra do Pacífico em curso, o único desporto que se praticava na região era a corrida...à frente dos soldados japoneses. Passada a tormenta, foi ali que se passaram realizar competições de atletismo e de futebol, e o local seria a sala de visitas dos jogos internacionais disputados por Macau, chegando a receber por duas vezes a equipa do Benfica - primeiro a de Eusébio e companhia, em início dos anos 70, e mais tarde em 1996, durante a pré-época sob o comando do brasileiro Paulo Autuori, e onde faltavam João Pinto, Hélder Cristóvão e Dimas, que tinham regressado pouco antes do Europeu de Inglaterra e estavam ainda de férias. Foi interessante, mas nada de espectacular, um pouco como um queca paga: produz o mesmo efeito mas falta a componente emocional. Depois da inauguração do Estádio de Macau (que fica na Taipa, o que dá origem a uma certa confusão) em 1997, ficou ainda mais acentuado o isolamento do Canídromo, localizado na parte da cidade que não crescia para receber os grandes projectos, e mais tarde os novos casinos, trazidos pela liberalização dos jogos de fortuna e azar.
Que bem que se está na Taipa, sem o fedor a mijo de cão...
Antes da edificação do estádio, por volta de 1932, data de que há documentação comprovando esse facto, já se realizavam corridas de cães junto à praia onde foi levantado mais tarde o Canídromo. Assim, e a bem dos usos e costumes, o espaço tornou-se a "catedral" da modalidade, e a partir dos anos 60 e com a legalização do jogo, a STDM encarregou-se de criar uma bolsa de apostas - como fez com todo o resto, aliás. Tenho um colega, especialista em apostas e probabilidades e quejandos, que me diz que "não vale a pena" apostar nestas corridas, pois o retorno é mínimo, ao ponto de não justificar o tempo que se podia gastar noutra batota qualquer mais substancial. Há ainda uma percepção de que este é um tipo de passatempo antiquado, mais ao gosto de uma facção mais tradicional e menos educada de apostadores, e a julgar pelo cheiro que fica entranhado na terra e que se pode sentir quando se ia assistir aos jogos de futebol, isto é gente para quem um odor fétido e podre que induz o vómito é "uma coisinha de nada" - quem sabe se ainda sorriem quando lhes chega às narinas, e pensam nas 30 patacas de lucro que podem obter numa noite de cães a dar à perna atrás de uma lebre de pano. E é por isso que Albano Martins tem tanta certeza deste eclipse, que só peca por tardio. Mas fosse o Canídromo um espaço que gerasse um lucro considerável, não adiantava piar, quanto mais ladrar: ficava ali e acabou a conversa, e ninguém ia querer saber desse Auschwitz em que se tornou para os cachorros, coitados.
Fujam, meus lindos! Vem aí a camião da fábrica de cola!
Esta questiúncula entre a ANIMA e a direcção do Canídromo vem durando a algum tempo, praticamente tanto quanto a existência da própria ANIMA. Antes parecia que ninguém se interrogava sobre para onde iam os cães depois da sua (curta) carreira nas corridas, ou melhor, se calhar até faziam uma ideia, mas preferiam não pensar muito nisso - de facto não é um pensamento agradável. Chegaram a decorrer negociações entre as duas partes no sentido de (reportagem Ponto Final) promover a adopção dos galgos retirados da competição, mas sem efeito. E de facto que sentido fazia isto? Quem é que no seu perfeito juízo ia meter em casa um quadrúpede anoréxico encharcado em "doping" e amassado da competição com outros da sua espécie? O galgo é um cão pernudo e esguio, que necessita de um espaço amplo, e não é para meter uma fitinha na cabeça a brincar às casinhas com o bebé dentro de um apartamento. Nem Macau é Campo Maior, nem aqui há sequer um campo em condições para que existam galgos. Se o objectivo é poupar os animais à morte-macaca, tudo bem, mas espero que não hajam ilusões a este respeito: acabar com as corridas de galgos em Macau inviabiliza qualquer possibilidade de virem para cá esses animais, que só serviam para este fim. E "fim" aqui assume um significado arrepiante, diga-se em abono da verdade.
Kesafoda!
Há 14 anos
Sem comentários:
Enviar um comentário