segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Quem somos, realmente? Parte XII: o luto


Comemorou-se no passado Sábado mais um Dia de Finados, o feriado católico destinado a homenagear os mortos. Tarefa ingrata, prestar uma homenagem a quem não pode apreciá-la, agradecer o incómodo e beber um copo com a malta. O sentido que se dá a esta festividade depende da fé, da força com que se acredita que aqueles que passaram para o outro lado estão atentos ao que se passa no mundo dos vivos, dos seus vivos, e aprecia que nos lembremos deles nesta data. O ritual passa por visitar o mausoléu do ente ou entes queridos, e no caso de se tartar de uma lápide edificada no cemitério, deixar lá flores, contemplar o monumento de pedra, olhar para a fotografia, ficar a recordar os tempos em que ainda o tinhamos entre os vivos, e numa última reflexão pensar que um dia somos nós que ali estamos, debaixo do chão, e alguém virá pôr flores na nossa sepultura, e assim renovar este deprimente ritual. Não tenho a certeza, mas penso que nunca fui ao cemitério no Dia de Finados. Imagino que é um dia que a frequência é maior, e que no meio dos mortos anda uma quantidade considerável de vivos.

Quando era mais jovem e precisava de um local tranquilo onde pudesse meditar e organizar as ideias, ia ao cemitério de S. Sebastião, no Montijo. Perdoem-me aqueles que pensam que esta minha procura de um refúgio silencioso é um insulto à memória dos defuntos, e desengane-se quem pensa que o fazia por rebeldia ou meninice. Aplicando a lógica, não há outro local onde podemos passar uns momentos em paz, longe da agitação e da correria do mundo dos vivos do que no cemitério. Quem acredita em fantasmas e almas penadas, problema seu, e recomendo que consulte um psiquiatra. Posto isto, durante as minhas visitas ao jardim das tabuletas, observava a quantidade de pessoas que levava isto do culto aos mortos mesmo a sério. As mais assíduas eram as viúvas, senhoras de idade já avançada, trajando de preto, que faziam a habitual romaria à campa do marido defunto, trocar as flores, lavar as jarras, enfim, manter o contacto possível com alguém que lhe era querido mas já não se pode sentar com ela ao serão a ver a novela. Por vezes dava com algumas a falar com o morto, crentes que nem a morte era uma razão suficientemente forte para terminar com a cumplicidade que desenvolveram durante décadas. A indumentária era o que mais me chamava a atenção. A predominância do preto era verdadeiramente fascinante. Vestido preto, meias pretas, sapatos pretos, lenço preto a cobrir-lhes a cabeça. Podiam estar quarenta graus à sombra, mas era sempre de preto que se cobriam. Estavam de luto, sempre de luto, até que a sua vez chegasse e a morte juntasse o que por instantes separou.

Qualquer católico que se preze cumpre esse período destinado a carpir a dor pela perda de alguém que lhe era próximo, e que se designa por luto. O luto manifesta-se de várias formas, varia em intensidade e período, dependendo da relação que se tinha com o defunto. Quando morre uma figura pública que tenha prestado valorosos serviços ao seu país, ou acontece uma tragédia que vitima um grande número de pessoas, coloca-se a bandeira da nação a meia-haste e/ou cumpre-se um ou mais minutos de silêncio. Quando o chefe de um clã cigano perde um filho, fica um ano sem fazer a barba, e quando morre uma celebridade, recorda-se a sua obra. Se for um músico, os seus discos tornam-se os mais procurados nas lojas, e se for um escritor, os seus livros saltam da prateleira para a montra. Quando morria alguém na minha família, não ligávamos o televisor, pelo menos no próprio dia e no dia do funeral. Isto era aborrecido para mim e para o meu irmão, que ainda bastante jovens, não entendiamos que sentido fazia não poder ver os desenhos animados só porque alguém tinha morrido. Ainda hoje quando estou em casa incomoda-me ter a televisão desligada, talvez por essa mesma razão. Fiquei com um pequeno trauma. Mas o mais comum a todas as formas de luto é a ausência da cor: o preto e o branco. Para nossa cultura, o preto é o tom oficial do luto.

Esta presunção de que alguém que se veste de preto está de luto foi um incómodo durante a fase metaleira da minha adolescência. Quando me vestia todo de preto, lá vinha uma vizinha perguntar-me "quem morreu", e sei que estava a falar a sério, pois punha assim um ar muito consternado antes de me abordar, como se estivesse realmente solidária com a minha perda, a haver realmente uma. Penso que ficavam desiludidas quando lhes dizia "ninguém morreu" ou até ofendidas se lhes topava o raciocínio e acrescentava "eu é que gosto de me vestir assim". A notícia da morte de alguém é sempre uma lufada de ar fresco na vida de quem não tem mais que fazer do que se meter na vida dos outros. Ou na morte dos outros, neste caso. Imagino que se lamentavam mais tarde às outras coscuvilheiras que "aquele rapaz é muito esquisito, anda de preto mas diz que não lhe morreu ninguém". Cheguei a pensar em estampar numa das minhas camisolas pretas a frase "estou de preto porque me apetece, não morreu ninguém, obrigado pelo interesse, e agora voltem à faxina, suas intrometidas". Ia demorar a ler, e se calhar iam perder o interesse a meio do texto.

O período de luto é, como já referi, variável. Pode ser alguns dias, uma semana, um mês, um ano ou toda a vida, como no caso das viúvas que referi acima, por exemplo. Uma senhora na casa dos sessenta ou setenta anos perde o marido, e remete-se ao luto para o resto da sua própria vida, dando a entender que depois do seu falecido, mais ninguém poderá usufruir das suas vergonhas. Uma viúva que insiste no vestuário preto está a passar a mensagem de que o seu tempo já passou, e o próximo destino é a cova. Se um outro velhote a achar engraçada e estiver a pensar em lhe piscar o olho ou pagar-lhe uma meia de leite, a cor preta bloqueia as suas investidas. Se mesmo assim insistir, é um "desenvergonhado, que não respeita uma viúva" - mesmo que tenham passado dez anos ou mais desde a viuvez. Estas viúvas militantes julgam-se as guardiãs de toda a virtude, e orgulham-se de passar a imagem de que são "mulheres de um homem só", mesmo que por vezes a solidão aperte e lhes dê vontade de arranjar um velhinho para dançar no bailarico da Junta de Freguesia. Censuram as viúvas que voltam a casar, que para elas são "levianas", e o único homem além dos filhos ou dos netos a quem permitem um contacto mais próximo é...sim, adivinharam, o padre da sua paróquia, que fica condenado a aturá-las, coitado.

Eu nunca fiz luto por ninguém, nem pelo meu próprio pai, mas é claro que não fiquei indiferente ao seu desaparecimento. Fiquei triste, reflecti intensamente sobre a minha perda, lutei com os meus demónios interiores, mas achei que vestir-me de preto ou deixar de fazer a minha vida normal não o ia trazer de volta. Respeito quem se entrega ao luto, quem cumpre os rituais, mas tenho pena de quem não consegue superar essa fase. Recordo-me de uma senhora, uma vizinha minha, que há vinte e poucos anos perdeu o filho num acidente de viação, e nunca conseguiu aceitar a sua sorte. Ainda hoje se veste de preto, visita com regularidade o cemitério, e fá-lo pela manhãzinha, aguardando num café ali próximo a abertura do portão. A pior coisa que nos pode acontecer é perder um filho, e a segunda é perder um irmão ou um cônjuge, dependendo da maior ou menor afeição que sentimos por cada um deles. A ordem natural leva a que aceitemos melhor a morte de um ascendente, mas seja qual for o objecto da nossa dor, nunca devemos entregar os pontos e morrer com ele. A minha vizinha tinha pouco mais de 40 anos quando perdeu o filho, e a sua atitude derrotista que teima em manter até hoje tornaram o tempo que lhe resta um calvário que tenho a certeza que o Zé, esse era o nome do seu filho, não ia querer que ela atravessasse.

Entregar-se à angústia, à dor da perda de um ente querido, é deixar a morte vencer. A morte leva quem mais amamos, e um dia leva-nos também, e deixa outros sobreviventes lamentando a nossa partida, mas é quando nos impede de viver o que nos resta da vida que a morte triunfa. A morte alimenta-se das nossas lágrimas, dos nossos prantos, das nossas fraquezas. O aperto que sentimos no peito quando nos morre alguém é o orgasmo da morte. Todos aprendemos a lidar com a morte mais cedo ou mais tarde, recebemos a morte como uma besta, uma faca que nos dilacera por dentro. A morte é como um choque que bate de frente e nos deixa caídos e nos deixa cicatrizes. Levamos a enterrar os mortos, rodeados de caras tristes, vultos que nos abraçam e partilham da nossa dor, mas depois a vida continua. Para os que ficam vivos continua, porque não pode continuar para nós também? Se devemos encontrar uma forma de encarar a partida de alguém que nos fazia feliz, e se essa forma for o luto, que seja, aceita-se. Mas até o luto tem uma finalidade, um princípio, um meio e um fim, e se não serve para digerir o veneno que a morte nos serviu, então não serve para nada.

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