sábado, 15 de outubro de 2016

Morrer? Tá bem, mas sem pressa


Um dos meus prazeres secretos desde a pré-adolescência é escutar o Leonard Cohen, o bardo judeu do Quebec, que começou a cantar já depois dos 30, depois de anos a daresposta os seus poemas para outros os musicarem. Não era nada de que me envergonhasse, e de facto até me dava um ar "distinto", menos "mainstream", mas era um bocado difícil encontrar colegas de Liceu com quem discutir este tipo de música tão "peculiar" - como dizia o meu irmão, era "uma das minhas pancadas". Recordo-me de um episódio meio bizarro que se passou quando tinha os meus nove anos, numa altura em a minha saudosa avó se encontrava acamada a residir temporariamente na nossa casa. Estava a arrumar o meu quarto (era sempre uma tarefa que me roubava apenas quinze minutos da tarde de Sábado), e fazendo jus à máxima "assobiem enquanto trabalho", ia cantarolando o tema "Dance me to the end of love", do último trabalho de Cohen desse tempo, o álbum "Various Positions". Quem conhece essa canção sabe que começa com um "la la, la la la la la la, la la la la la la, la la la" sombrio, arrastado, entoado em tom de sofrimento com a inconfundível voz cavernosa do canto-autor canadiano. Subitamente sou interrompido com um raspanete da minha madrasta, vinda do outro lado da casa: "Ó Luís, isto faz-se? Pensei que era a tua avó numa aflição". Sim, penso que esta é uma imagem que ilustra bem a música de Leonardo Cohen: dá a impressão que aquelas palavras que entoa sofregamente serão também as suas últimas.


Passaram-se mais de trinta anos, e aquele homem maduro que me encantava com a sua sensual morbidez é hoje um ancião de 82 anos. Entrementes presenteou-nos com os LPs "I'm Your Man" e "The Future", que são ao os seus dois registos mais comerciais, e aos mesmo tempo os mais geniais. Ok, isso é discutível, mas a genialidade está lá, e o mundo ficou-lhe a dever isso. Hoje não consigo ouvir as palavras "Manhattan" e "Berlin" sem pensar no seu êxito "First we take Manhattan (than we take Berlin)", ou a palavra "democracy" sem que me venha à cabeça o tema "Democracy", cujo refrão continha a frase "Democracy is coming/to the USA". Irónico, nos tempos que correm e com as nuvens negras que se avistam no horizonte. O todo do trabalho de Cohen daria pano para mangas, e para se gostar incondicionalmente de toda a sua discografia, é preciso colocar a poesia antes do ritmo. Musicalmente falando, o seu trabalho não é propriamente composto por aquilo que se determinou designar de "catchy tunes", e quem não está à vontade com a língua inglesa, pode esquecer. Ou ir aprender primeiro, podendo inscrever-se num daqueles cursos da "Óquesíforde", muito jeitosos, e tal.


E aos 82 anos que Cohen regressa com um novo álbum de originais, a que deu o título "You Want It Darker" - sem surpresa, e aí o artista tem pautado o seu reportório pela previsibilidade que se exige dele. Para suplício chegou vê-lo esforçar-se para entoar a letra de "Closing Time" ao som daquele ritmo danceteiro, tão não Cohen. Em matéria de música sintético, penso que "Take this waltz" é o limite da perfeição. Mais do que isso já é "inventar". E o que esperar deste novo registo do velho poeta maldito? A capa já nos dá algumas pistas; ainda canta, e prevejo que a idade lhe acentua o timbre profundo da voz; ainda fuma, um autêntico anti-poster dos males causados pelo tabagismo; bebe, como se vê na imagem acima desta. Quanto ao resto dos seus hábitos pessoais desconheço, mas tal como imaginava, este irredutível sedutor faz com o espectro da morte o mesmo que fez com um sem número de mulheres durante a sua já longa presença entre os vivos. Pisca-lhe o olho, sem a temer, promete que vai com ela sem dar luta, e garante-lhe que vão passar um belo tempo juntos durante essa viagem. Numa entrevista dada recentemente, e onde lhe perguntaram o que pensava fazer com o vasto arquivo musical que tem acumulado ainda sem ter visto a luz do dia, respondeu que "não promete que vai conseguir publicar tudo", e que "está preparado para morrer". Agora vem esclarecer o que queria dizer com isso; "preparado para morrer" está, no mesmo sentido que todos devemos estar, pois do carácter de inevitabilidade que a morte se reveste, a única incerteza que temos é do seu momento. Tanto pode ser daqui a dois minutos, como daqui a vinte anos. Cohen concluiu dizendo que faz planos de ficar por cá durante mais algum tempo, "até aos 120". Mais um dos seus excessos próprios de uma alma de poeta? Só o tempo o dirá.


Quando lá for vai-se reunir novamente com Marianne Jensen, a musa que o inspirou para uma das suas primeiras canções que entretanto se tornaram imortais, "So Long Marianne", e que partiu em Julho último. Foi uma das suas namoradas, ainda do tempo em que era apenas "un canadien errant", e antes de se tornar um "partizan". O que sempre foi e dificilmente deixará de ser é um "ladies man" - "he's your man". Goste-se ou não, de tudo ou apenas se apanhem as melhores, como quem colhe cerejas, há que lhe tirar o chapéu, e deixá-lo continuar a viver o presente, enquanto escreve o que nos deixará "in The Future". "And everybody knows".


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