O Grupo Doçi Papiaçam di Macau levou hoje a cena mais uma peça em língua maquista - que se não estou enganado deverá ser a vigésima, ou anda lá perto. Sem brincadeira: foi consultar mesmo agora uma página dedicada ao grupo, e em rigor é a 22ª. Os espectáculos da companhia liderada pelo incansável Miguel Senna Fernandes têm sido incluídos anualmente no Festival de Artes de Macau, que vai este ano na sua 26ª edição, e a "troupe" que tão despretensiosamente tem mantido viva a chama do crioulo do português desta parte do Oriente (um tema que dá pano para fábricas inteiras de camisas) apresenta no Grande Auditório do Centro Cultural de Macau em duas noites o produto do seu trabalho de meses - e vê-se que ali há muitas horas de ensaio, honra lhes seja feita. Sou espectador assíduo (apenas) desde 2007, e tenho elogiado aqui vastas vezes os Doçi na "review" que faço de cada um dos espectáculos a que assisto, e tudo porque são da minha parte merecedores dos maiores encómios. Assim sendo não podem esperar de mim senão honestidade e rigor, assumindo desde a primeira hora que nunca perderia o meu tempo a "dar graxa", ou no sentido contrário falar mal "por falar". Dito isto, recordando que não sou crítica especializada e ainda acrescentando que tenho andado um pouco engripado, portanto o meu julgamento poderá estar condicionado por esse desagradável detalhe, considero que este ano tivemos mais pontos negativos que nos anos anteriores. Atenção, não quer dizer que não gostei, porque gosto sempre, mas pelo menos ontem foi um daqueles dias em que "a bola não entra". Talvez por culpa daquele avançado com a camisola 7 da selecção portuguesa que surge em cena algures durante o vídeo, que também devia ter sido "os vídeos". Mas sem querer baralhar mais do que o último acto da peça de ontem, vamos a isto, ponto a ponto.
O título da peça é "Macau tem talento", e aqui entra o que pode muito bem ser um elevar das expectativas da minha parte que talvez não devia ter acontecido. Há dois anos o tema foram as eleições legislativas em Macau, um terreno fértil para a sátira que foi muito bem aproveitado, com resultados hilariantes, enquanto no ano passado o tema foi o preço da habitação, algo sensível e demasiado deprimente para se poder rir a bandeiras despregadas, mas que mesmo assim conseguiu ser bem trabalhado, contornando os aspectos menos risíveis da questão. Já quanto a esta temática dos "talentos", confesso que estava à espera de outra coisa. Esta expressão, "talentos", foi utilizada pelo actual Chefe do Executivo há mais ou menos dois anos para (pensa-se, não se sabe ao certo) convocar os residentes com mais valias técnicas para se afirmarem, e assim dotar a RAEM de matéria humana em número e qualidade para que não se dependa unicamente da importação de mão-de-obra em situações em que se requer a especialização da mesma? Pode ser isso? No entanto algo ficou perdido na tradução, e a interpretação de "talento" varia conforme uma série de factores, tendo para mim, por exemplo, como sendo "talento" um valor inato, que depois poderá ou não ser desenvolvido. Pormenores. Talvez por culpa da ambiguidade do conceito tenha faltado "talento" aos Doçi Papiaçam para pegar no tema e dar-lhe o tratamento que muitas vezes tem dado a outros, quiçá mais difíceis de trabalhar, e em alguns momentos ficou a sensação que lhes "faltou o chão". Mas claro que para os fãs voltou a ser um deleite, e voltámos a ter alguns momentos de génio, dignos de profissionais desta arte, que os elementos do grupo não são, ficando evidente que elevam a componente do "amar" em "amador" ("amador" é aquele que ama, portanto). De forma a se separar o trigo do joio, por assim dizer, vou primeiro falar do que não esteve tão bem.
Podemos começar pelo argumento, por exemplo, que esteve a meu ver bastante "desconectado" desta vez. Das pessoas que vieram comigo (e éramos oito, "respect"), alguns partilharam da opinião que o último acto foi demasiado longo, e o enredo foi tão "enrolado" que a certo ponto para ter uma conclusão só mesmo colocando a palavra "fim". É também possível que para a ideia da cena final dar resultado fosse necessário outro local, bem como outros meios. Aquela barafunda com os personagens principais em plena interacção já foi tentada antes com melhores resultados, mas desta vez fiquei sem saber bem o que ia com o quê. Quanto ao problema da "premise", bem, aqui se calhar é onde a porca teatral torce o rabo. É sabido por que tivesse interesse nisso que o encenador e argumentista esteve recentemente em Angola, e parecia que na peça queria contar um pouco do que viu, ou talvez mais, e não fosse possível contar tudo, ou passar os factos para um guião, é difícil de entender bem o que se passou. O problema não foi tanto os personagens "angolanos", interpretados por um actor cabo-verdiano e uma actriz de ascendência goesa, falando ambos com sotaque de Moçambique - isto até tem o seu charme, inserido no contexto do burlesco. Talvez tenha sido esse o senão: o contexto. Macau, talentos, empresários angolanos prospectores de diamantes, passaportes falsos, hospedaria económica, trabalhadores em greve, duas empresárias rivais sem que saiba bem porquê ou para quê, um cantor, pasme-se, que não foi por cantar mal que não me encantou, mas porque foi mais um dos ingredientes deste "chau-chau" pele em que dá vontade de perguntar: "côza?". Depois houve o problema do VT, que voltou a falhar (penso que aconteceu o mesmo há dois anos, se não estou em erro) e os espectadores que insistir em vir à estreia ficaram sem visionar um dos vídeos. Miguel Senna Fernandes prometeu que amanhã (Domingo) o incidente não se volta a repetir, e que vai ser possível ver o filme. Pois, 'tá bem, que bom para quem vai nesse dia. Então e nós?
Agora falando das coisas boas, que sempre me dá mais prazer, lógico, comecemos exactamente pelo vídeo que foi possível visionar. Penso que a ideia de aproveitar o Micorene, o Carnaval maquista fora de época, foi óptima: conferiu ao filme um realismo e uma vitalidade que nunca seria obtida através da encenação. Estiveram todos muito bem, com destaque para o duo Rita Cabral e Judite Antunes (especialmente esta última), que parecem ter nascido para contracenar juntas. Bem também esteve Hugo Silva Jr., que no ano passado fez o papel de vilão e némesis de "Bichoman", se bem que desta vez no papel de mestre de cerimónias do Micarene pareceu menos solto do que quando foi deixado "ao natural". Sérgio Perez, o realizador residente dos Doçi, está mais uma vez de parabéns e volta a demonstrar que em termos de talento (já agora...) não fica em dívida com os astros. Se no ano passado o estilo foi sem dúvida nenhuma o "Sin City" de Robert Rodríguez, este ano fica mais difícil de adivinhar qual era a inspiração. Arriscava David Lynch, talvez? Em momentos fez-me lembrar da mini-série "On the air", que o criador de "Twin Peaks" assinou em parceria com Mark Frost em 1992. Gostei dos planos, e este ano o som esteve muito melhor (em Macau a sonoplastia parece ser um problema recorrente nos filmes). Gostei especialmente do personagem do secretário-adjunto inspirado em Alexis Tam, e representado por Hermann Comandante, de quem já tinha saudades, confesso. O mesmo não posso dizer do "cameo" do Cônsul-Geral, Vítor Sereno, que aparece no vídeo "in vivo", mas...a piada era essa? Ele aparecer? OK. De resto o filme foi mais uma vez uma barrigada de riso do princípio ao fim, talvez porque tenha conseguido condensar em dez minutos o que há de engraçado de entre tudo o que vai acontecendo em Macau, onde nem sempre acontecem coisas de que valha a pena rir, enfim. Mas a representação...e é disso que vou falar a seguir.
A representação é sem dúvida o grande forte dos Doçi Papiaçam di Macau. Quem fosse cair hoje do céu dos anjinhos de cu no chão em Macau ia pensar que aqui era alguma academia onde eram formados os actores de todo o mundo. Este ano tivemos de novo Carlos Cabral, José Basto da Silva, a sempre encantadora Nair Cardoso e ainda Aleixo Sequeira, que este ano teve mais protagonismo, e só foi pena que o material não fosse outro, que ele merecia. De Carlos Cabral pode-se dizer que começa a assumir a função de "estrela da companhia", como foram antes dele Carlos Coelho, Luís Machado ou mais recente Germano Guilherme. José Basto da Silva tem nele um Ribeirinho
Os habituais personagens secundários, que ficam sempre a cargo de José Carion e Alfredo Ritchie, dos homens, mais Rita Cabral e Sónia Palmer, nas senhoras (o que se passou com Fátima Gomes este ano?), tiveram ainda mais "palha" que o habitual para dizer. São eles quem representa a "velha guarda" - e não me refiro apenas ao "patuá". Não queria ser desagradável com eles dizendo que são uma espécie de "últimos moicanos" em versão macaense, até porque existe uma geração de filhos e de netos destes que, e não vou aqui mencionar essa "pescadinha de rabo na boca" que é a identidade macaense, são pelo menos portadores dos mesmos traços culturais e até de um certo "jeito" que os caracteriza. Agora sem dúvida que os tempos são outros, portanto não serei eu a pessoa mais indicada para analisar o que é e o que não é engraçado. E isto leva-me a outro ponto:
A "frente sínica", este ano sem Machi Chon mas com Lou Pui Leng (há mais de dez anos com o grupo) acompanhado de Cheang Sin Hou e Cheong Ka Chio tiveram a seu cargo as habituais larachas do dialecto cantonês, trocadilhos, segundos sentidos, pronúncias duvidosas, etcetera, etcetera. O costume. Alguns portugueses, especialmente os que chegaram há pouco tempo a Macau, e especialmente os outros estrangeiros que não falam português e cantonense e dependem das legendas em inglês para entender tudo isto, ficam um pouco baralhados quando vêem a pessoa sentada ao seu lado a rir histericamente de certas cenas que ele próprio considera banais. Às vezes dá-se o caso de entender a piada mas não achar tanta graça que justifique tamanho alarido. Mas é aí que reside a essência do patuá: é humorismo que dá para as duas línguas oficiais de Macau e em certos particulares uma "cosanostra", que não é feita para portugueses nem para chineses. Aliás os próprios portugueses podem achar o tipo de humor um pouco a atirar para o revisteiro, do mais datado, mas vá lá, lembrem-se das velhas frases feitas e da retórica dos nossos Descobrimentos quinhentistas, tanto mar que nos separa, blá blá blá. O que tem graça aqui pode não ter graça acolá e vice-versa.
Mas onde o céu chegou a adquirir um brilho ofuscante próprio da intensidade da luz das estrelas que o ilumina, foi nas figuras de Marina Senna Fernandes e Paula Carion, e permitam-me este desabafo: porra, pá! Se Miguel Senna Fernandes fosse um Pedro Almodôvar, estas eram as suas Carmen Maura e Victoria Abril - são as divas, e não há papel que ele lhes dê em que se saiam mal. Não consigo é ainda entender como é que Paula Carion, não dominando a língua portuguesa, se sente tão à vontade no patuá. E refira-se que este é, segundo os "puristas" (ie toda a gente menos a pessoa de que se fala) "um patuá mais aproximado do Português". Mistérios. Da Marina só tenho isto a dizer: "I'm your fan". A senhora passou ao lado de uma carreira brilhante no...na...seja lá no que for! Mal empregados os Oscares entregues à Meryl Streep, Jodie Foster, Helen Mirren, Cate Blanchett e mais o raio que as parta, e Marina vale mais que todas elas juntas! Custa a acreditar que não tenha tido escola, pois é muita "fruta" para acreditar que é apenas uma natural. A Paula tinha participado pela última vez como actriz em 2008 (penso eu), e o seu regresso só peca por tardio. As duas juntas foram uma ode rendida a Dionísio (ou Baco, se preferirem, que além de muitas outras coisas é também deus do Teatro e da Comédia).
Finalmente as estreias, e aqui, ui, ui, ui. Dois casos paralelos a analisar com perícia. Já fiz aqui referência a uns certos personagens "angolanos" que de angolanos tinham muito pouco, e de facto tratava-se de um casal de pressupostos impostores que vieram a Macau tratar de...bom, e isso lá interessa? Sei que metia pelo meio um caso de falsa identidade e mais um ou outro detalhe de somenos que suspeito poderem estar relacionados com alguma história de que o autor do guião teve conhecimento e se calhar achou graça. Era muito "pesado" para se andar ali a puxar pela cabeça e tentar ler nas entrelinhas do que se tratava exactamente. Agora, gostei foi das interpretações, que tiveram uma enorme dose de "kitch", e parabéns ao Miguel pelo atrevimento; tivemos ali chalaças de um teor ético delicioso, rebuscados da mais profunda tradição do teatro "minstrel" ou do humorista moçambicano Parafuso (será que isso explica o sotaque?). Noutras jurisdições PARVAS, de gente RELES, que além disso sofre de alguma espécie de sentimento de culpa que os leva a ter e achar tudo pela medida do penico e da sarjeta, o Miguel, os actores e quem sabe até os espectadores eram corridos com processos por "racismo". Sim, e tudo pois coisinhas de nada, frases como "o meu cu preto", ditas por...um preto. Ou ainda referências à lendária "vantagem" em relação ao tamanho de um certo membro nos africanos, a começar até pelo nome do personagem: Hortênsio Bem Grosso. Triste, triste é o povo que desaprendeu a rir de si mesmo, e canalha aquele que dita o que deve e não deve ser engraçado. A encarnar os personagens estiveram Daniel Pinto, ou Dani, que pela primeira vez em muitos anos assume um papel que não ou de figurante, ou de "cameo", e a estreante Violeta Couto do Rosário. Olhe querida, sabe o que eu penso? Esteve "bem". Sim, "bem". Mais do que isso e borrava a pintura (isto é um elogio, caso alguns estejam a fazer segundas leituras, e aposto que estão).
A outra estreia, este um autêntico "case study", foi a de Mané Crestejo. Aqui permitam-me ser curto e grosso: foi completamente à margem do enredo, não foi? Acho que fizeram bem, fizeram optimamente, e gostei muito do artista, que fiquei agora a saber ter uma banda com trabalho editado e tudo - e parece que cantou ao vivo, em pleno palco, também. Se a ideia é destronar Casimiro Pinto do trono de "rei da canção maquista", já ganhou!
Já sabemos que isto não é fácil, que exige tempo, esforço e uma disponibilidade que às vezes custa a arranjar, e Deus sabe, para depois vir para aqui este "mofino" (eh, eh, adoro essa palavra), mas isto não se trata de falar mal nem bem: trata-se de falar. Caso contrário que valor tem a arte, se for só para ir picar o ponto como descargo de consciência, do género "ai coitadinhos que estão quase extintos, como o rinoceronte não-sei-de-onde", ou então "ah eu vou porque o Miguel é um gajo porreiro", como se se estivessem a referir a alguém que está nas últimas - e salvo seja. Eu até gostei, mas mesmo que tivesse adorado prefiro encontrar pormenores, por mais pequenos que sejam mas que considere que podiam ser melhorados, do que não gostar e sair de lá na risota fingida, a dar palmadinhas nas costas e a dizer "ah, ah...póde, iá", e depois desabafar com os amiguinhos em surdina: "qué você achou? grande cááágada, é não é?". Pois é, isto parece familiar para muitos.
Houve quem me tivesse dito que achou que o argumento foi feito um pouco "à pressa". Eu duvido, sabendo que esta é a grande paixão do seu mentor e responsável máximo, e ele nunca deixaria o trabalho "mal feito, mas feito". Outra vez: do que não esteve assim tão bem, para colocar noutros termos, vê-se que o material estava ali, só que não saiu bem num ou noutro particular. E é só. Se isso é razão para gritar, arrancar os cabelos, cortar os pulsos e atirar-se da janela? Claro que não, que disparate. É para continuar, e sabendo disto tirar a musa da criatividade do "tilt" em que se encontra. Já sei que esta comparação não é muito bem tida em conta, mas lá vai na mesma: nem o próprio Adé ia produzir de forma tão expedita material novo ano após ano. Um "brainstorming" antes do próximo, valeu? Porque de certeza que vai haver um próximo, e muitos mais, e enquanto houver forças, são os Doçi a "dále di bem", e malta "todo tavai", sân nunca?
Parabéns e obrigado, mais uma vez.
PS: E como é que a malta vê o vídeo, pá???
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