O Bairro do Oriente, convalescendo ainda da batalha sangrenta de que saiu vencedor, tem o prazer de assinalar mais um aniversário das aparições de Nossa Senhora de Fátima com um texto publicado
na edição de quinta-feira do Hoje Macau. Bom fim-de-semana!
Estamos a chegar ao 13 de Maio, data que para os portugueses está associada ao culto mariano, à adoração de Nossa Senhora de Fátima. Em Macau a data é assinalada com uma romaria até à Ermida da Penha, acompanhada de cânticos de louvor, e mesmo para os não-crentes insere-se numa espécie de evidência da especificidade cultural do território, com o condão ainda de ser um acontecimento única nesta região do Globo.
Se em Macau se presta o culto pelo culto, sem se pedir dos fiéis mais do que a mera participação, em Portugal o 13 de Maio é o ponto alto de uma indústria alimentada pela fé e pela superstição, e nesse dia todos os caminhos vão dar ao santuário da Cova da Iria, na localidade de Fátima, no concelho de Ourém, distrito de Leiria, onde muita gente acredita que a mãe de Jesus apareceu pela primeira vez a três crianças que pastavam gado num monte. Para que não se pensasse tratar-se apenas de coincidência, a Virgem apareceria mais cinco vezes no mesmo local, uma delas a 19 de Agosto, quiçá já com a devoção dos emigrantes em perspectiva, mas teve a delicadeza de não aparecer entre Outubro e Maio, para não interferir com Natal e Páscoa, festivais por excelência reservados à adoração do Seu filho.
Não quero estar aqui a questionar a veracidade das aparições, mesmo que pareça estranho uma divindade desta importância se vir dar a ver no Portugal profundo e rural, enquanto no Vaticano teria uma recepção muito mais digna da sua graça – se foi por “humildade” que o fez, não terá sido com o sumptuoso santuário que ali se erigiria em mente. O que aqui me incomoda não é tanto “o quê”, pois cada um acredita no que muito bem entender, mas o “como”, ou seja, aquilo que leva a fé a sair do âmbito do privado e bate na porta dos que em vez de irem na procissão preferem ficar em casa a ver a bola – se há bola para ver, e agora há sempre.
Uma “prova”, se assim lhe quiserem chamar, ou demonstração de fé muito comum de observar quando se visita o Santuário de Fátima, são as voltas que alguns fiéis fazem ao santuário, recorrendo para tal ao uso dos joelhos. Se há quem “respeite” esta forma de devoção feita na posição com que se esfrega o chão de casa ou se lavam escadas, eu não me incluo nesse grupo. Não respeito, não tolero, e qualquer divindade que aprecie este tipo de submissão, ou Igreja que a ratifique não valem a pena, pura e simplesmente. Se aqui o prémio é a “salvação eterna”, que outro tipo de humilhações nos reserva essa perspectiva de “eternidade”? E não me venham dizer que não é humilhação, pois acredito que estou a ser lido por pessoas de bem, civilizadas e alfabetizadas. Se ainda duvidam, deixem-me que vos faça esta pergunta: gostariam de ver um familiar vosso prostado de joelhos num local ironicamente chamado de “joelhódromo”, em esforço, denotando sofrimento, feito centro das atenções? Tudo bem, está a pagar uma promessa, mas não o pode fazer de outro jeito? Que queime a cera toda que encontrar, ou que reze avé-marias de manhã até à noitinha. Mas aquilo não, por favor.
E não é tudo. Há ainda a peregrinação a pé ao Santuário realizada anualmente por milhares de devotos, que em muitos casos fazem centenas de quilómetros, chegando a iniciar o precurso com semanas de antecedência. Não tenho nada a apontar a este tipo de manifestação de fé, a todos os títulos pessoal, comum a praticamente todas as romarias – ao contrário do lamentável espectáculo que é ver gente a rastejar de joelhos em agonia. Contudo a caminhada implica riscos, como outra caminhada qualquer que se faça de dia e também de noite, por estradas mal sinalizadas e à mercê de automobilistas que nem sempre retêm na memória a presença destes peões sasonais. No último fim-de-semana deu-se exactamente o pior dos cenários, quando cinco peregrinos foram mortalmente colhidos por um veículo de pesados. Uma tragédia a lamentar em qualquer circunstância.
Estava em Taiwan quando soube da notícia através da edição online de uma conhecida publicação portuguesa, mas o que mais me chamou a atenção foi a secção reservada aos comentários dos leitores, que mais parecia um oratório. Havia um pouco de tudo, desde preces a “ai jesuses”, e até apelos a que o país inteiro ficasse suspenso para deixar os peregrinos rumar com segurança até Fátima. Seria como o Carnaval brasileiro, mas bem mais funesto,com gemidos graves no lugar do samba, e em vez de mulatas desnudadas tinhamos idosas de ceroulas e xailes pretos. O mais surrealista era ver apelos à virgem no sentido de “dar protecção aos restantes peregrinos”, como se estes não fossem merecedores de tal graça. Talvez fossem uma família incestuosa, como a primeira família segundo a Bíblia. Idólatras eram com toda a certeza, e nisso não eram diferentes de todos os outros peregrinos.
Talvez inspirado pelos ares da ilha nacionalista, não resisti e deixei um comentário com laivos de remoque, chamando a atenção para a ironia que representava o facto de nem em pleno acto de devoção os crentes poderem usufruir da protecção divina. Foi aí que um indivíduo resolve atirar os sais de fruta que fazem efervescer a minha de outra maneira impávida gasosa, e qual juiz em causa própria delibera que eu NÃO POSSO DIZER estas coisas. Aí está: 41 anos depois da Revolução dos Cravos e poucos meses após tantos se terem rebaptizado de “Charlie”, é este o bagaço que estoira com o barómetro do nosso provincialismo – pode-se falar de tudo, minha gente!...mas alto lá. Depois de ter dito àquele Torquemada do Correio da Manhã para ir mandar rezar uma missa em memória dos peregrinos defuntos (por uma questão de coerência, entenda-se) debitei habitual profuso verbatim destas ocasiões, com ênfase nos prejuízos que a fé pode trazer à saúde, e de como quem preferiu ficar em casa em vez de ir a pé a Fátima aumentou em grande número a possibilidade de vir a usufruir mais tempo das suas funções vitais. Porquê? Ora essa, cinco exemplos não são mais que prova suficiente?
Já o calor da discussão ia na sua fase mais incandescente, cheguei mesmo a ser ameaçado de porrada! Por um indivíduo tão crente que o fiz ir esperar pela minha chegada, mesmo depois de o deixar saber que me encontrava a milhares de quilómetros de distância. Reparei contudo que a animosidade ia aumentando à medida que aumentava também o número de “likes” ao meu comentário inicial. Enquanto os crentes irados reconheciam em mim o poder da “desenvagelização”, para qualquer outra pessoa com dois palmos de testa isto só pode querer dizer uma coisa: em pleno século XXI, depois das fogueiras do Santo Ofício, do Homem Novo ter separado a Igreja do Estado, Marx ter decretado a morte de Deus, o evento do laicismo, a afirmação plena do ateísmo e do agnosticismo, há que continue amordaçado e de joelhos, à volta do Santuário de Fátima.
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