quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Direito ou 法律 ?



O Hoje Macau deu conta na sua edição de hoje uma espécie de desaguisado dentro da Associação dos Advogados de Macau (AAM), e tudo porque os advogados de etnia chinesa que dominam a língua chinesa estão contra um protocolo assinado pela entidade que os representa e que está agora a ser revisto, que prevê a vinda de mais profissionais do Direito de Portugal para a RAEM. Mais uma vez em causa está a questão do idioma, que tem sido um dos principais obstáculos...a tudo, portanto, na área jurídica. São problemas atrás de problemas, com a falta de intérpretes-tradutores, que leva a que os processos por vezes se arrastem por demora na tradução, que se redijam sentenças, e mais grave, acusações numa língua que o seu destinário desconhece por completo, e talvez o mais importante, tem servido de pretexto para que alguns responsáveis desta área defendam a gradual integração no sistema jurídico chinês, e aqui é que reside o busílis da questão.

Vejamos, A RAEM é como se sabe uma região autónoma da R.P. China, e que em relação a esta tem duas diferenças fundamentais: são falados dois idiomas oficiais, o português e o chinês, e vigora (supostamente) o segundo sistema, que garante a separação do Estado, neste caso o Governo da RAEM, e dos Tribunais, que são independentes do orgão Executivo - se isto é ou não aplicado em certas circunstâncias é questionável, mas com toda a certeza que os residentes da RAEM dormem mais descansados sabendo que as coisas são postas nestes termos. Quem defende o contrário ou tem uma agenda política (e às vezes é fingido), ou então é um daqueles patriotinhas parvinhos que não sabem do que dizem. Se no caso do idioma o mais falado é de longe o cantonense, e o escrito o chinês (que engloba o cantonense e o Mandarim), não há discussão quanto à língua que se deve dominar caso se queira vir para Macau residir ou investir. Mas nem o tribunal é uma mercearia nem as suas decisões e despachos são as contas da luz ou do telemóvel. Trata-se de uma área muito específica, fecunda em ambiguidade e diversa em interpretações, e uma simples palavra pode alterar por completo todo o sentido de uma ideia, e é aqui que a língua portuguesa ganha.Não é uma vitória da quantidade, e é muito mais que uma questão de qualidade - é algo demasiado sério para se tratar de ânimo leve.

Sendo que a esmagadora maioria da população fala, lê e escreve chinês, o senso comum leva a que devam ter acesso a praticamente todos os documentos oficiais na sua língua materna, e mesmo na área da justiça, e penso que disto ninguém tem dúvidas, é possível obter a maior parte da documentação nessas condições. Contudo é nos ramos do direito cível e de grande parte dos litigiosos que é importante manter-se fiel ao sistema jurídico que vigora em Macau para evitar a corrupção dos seus fundamentos. Reparem como destaquei aqui este "sistema jurídico", que difere de "ordenamento jurídico", sendo este último o princípio "um país, dois sistemas", contudo este princípio não substitui o sistema jurídico que vigorava antes da criação da RAEM, ou seja, durante a administração portuguesa. Isto consta do artº 145º da Lei Básica, que nos diz o seguinte:





E pronto, como vos deixo aí a lei a tudo em boneco, e assim o artigo diz-nos que: “ao estabelecer-se a Região Administrativa Especial de Macau, as leis anteriormente vigentes em Macau são adoptadas como leis da Região, salvo no que seja declarado pelo Comité Permanente da Assembleia Popular Nacional como contrário a esta Lei. Se alguma lei for posteriormente descoberta como contrária a esta Lei, pode ser alterada ou deixa de vigorar, em conformidade com as disposições desta Lei e com os procedimentos legais”. E assim manteve-se o nosso sistema jurídico de matriz portuguesa, o que vigora em Portugal, o direito de modelo continental (sendo este "continente" a Europa, claro). Curiosamente só aqui no delta do Rio das Pérolas temos três modelos jurídicos diferentes: em Hong Kong o "common law", que vigora também nas ilhas britânicas, e no continente chinês o modelo socialista, que como se sabe não é um dos mais flexíveis, ou sequer abrangentes, pois a sua directiva rege-se no sentido de concentrar todos os poderes no partido único, o P.C. chinês.

Uma vez elaborada a Lei Básica, esta foi aprovada na Primeira Sessão da Oitava Legislatura da Assembleia Popular Nacional da República Popular da China, a 31 de Março de 1993. Com pouco menos de sete anos antes da sua entrada em vigor, e decidido que estava manter o sistema jurídico, foi necessário traduzir resmas de legislação para a língua chinesa: leis, decretos de lei, regulamentos, estatutos, códigos completos, um esforço épico, que não terá ficado completo até alguns anos depois da transferência de soberania. Portugal é um país um enorme passado na Jurisprudência, existindo uma vasta literatura na área do Direito, mas por seu lado a China viveu durante praticamente toda a sua história debaixo de regimes totalitários, portanto nunca existiu a necessidade de produzir legislação abrangente, uma vez que os poderes estavam sempre concentrados, ora primeiro no imperador, depois durante um curto e conturbado tempo, marcado sobretudo pela guerra, esteve com os nacionalistas, e desde 1949 com o Partido Comunista.

Posto isto, só para que se entendam as diferenças entre uma e outra realidade, o Código Civil da R.P. China contém 225 artigos, enquanto o Código Civil de Macau, praticamente o mesmo que os portugueses deixaram há 15 anos, tem 2161 artigos - cinco vezes mais. Portanto nem é preciso ser um entendido na matéria para se perceber que existem figuras jurídicas na legislação de Macau que não existem e em alguns casos nunca existiram no continente. Assim com a necessidade de traduzir toda a legislação, certos conceitos muito próprios da linguagem jurídica foram traduzidos do Português para o chinês não de uma forma concisa e directa, mas através de uma "explicação", ou seja, uma ideia que transmita o que significa aquele conceito, e não conceito propriamente. Já vou ilustrar com alguns exemplos, mas primeiro vou adiantando que esta especificidade da legislação de Macau torna complicado "dispensar" o corpo jurídico português, pois no texto original da lei, elaborada no seu idioma, o que é, é, aplica-se e não se explica. Vamos lá então tentar entender isto um bocadinho melhor.

Em chinês, por exemplo, não se faz bem a distinção entre "penhora" e "apreensão", que se traduz apenas para "cha fong"(查封), que pode também sentido de "deter", ou "capturar" - penso que não é preciso explicar a diferença entre uma penhora e uma apreensão, que apesar de se incluirem na mesma família das execuções, a primeira será necessariamente judicial, a outra nem por isso. Outro caso, o da hipoteca. Quando nós lemos "hipoteca" vem-nos à ideia uma situação específica, ou seja, um empréstimo ou outra vantagem traduzida em numerário normalmente concedida por um banco ou instituição de crédito perfeitamente reconhecida e que como figura jurídica está claramente legislada e obedece a um conjunto de regras específico, e na esmagadora maioria das vezes o bem hipoteca é um imóvel, ou em alguns casos um automóvel. No entanto para chinês temos "on kit" (按揭) e "da yat" (抵押) que são dois conceitos antigos relacionados com penhores ou garantias menos específicas que a "hipoteca" na versão portuguesa possa sugerir. Mas isto são apenas preciosismos.

Mas olhemos por exemplo para o arresto, que apesar das semelhanças em termos práticos com a penhora, é um pouco menos agressivo - é um embargo, por assim dizer. A tradução para chinês ficou "ka kau hak" (假扣押) e tem piada, e porquê? Este "ka" (假), sozinho, significa "falso", enquanto "kau hak" (扣押) é outra forma de apreensão, ou seja, o arresto é uma "apreensão falsa". Se isto já é estranho vamos continuar a explorar o potencial destes caracteres; o "kau" (扣) isolado significa fivela, como que a prender alguma coisa, e "hak" (押) é cobrar. Então a conclusão que podemos tirar da linguagem jurídica destas duas normas é a seguinte: a palavra "arresto" serve para nos transmitir a finalidade dessa figura jurídica - "vamos arrestar os bens de fulano", diz-se. Na língua chinesa temos literalmente "vamos fingir que o fechamos com uma fivela para o poder cobrar". Agora antes que me digam que "não é bem assim", e que os três caracteres usados em conjunto têm o sentido de "arresto", e eu digo-vos também que para produzir uma palavra que designa um conceito jurídico imune a quaisquer segundas interpretações requer séculos de prática do Direito, senão em vez de "arrestar" bastava dizer "fingir que lhe metemos uma fivela até que ele pague". Entendido? 你明白?

O arrolamento, a figura que representa o levantamento e lista de pessoas e bens foi também uma tradução que "se viu chinesa" para aqui chegar. Arrolamento é "choi chan cheng tan" (財產清單), que literalmente e com tudo no sítio significa "lista de propriedades". Portanto este "choi" (財) tem o sentido de "fiscal", sujeito a taxação, e juntamente com "chan" (產), que é "bem", ou "acessibilidade", temos "choi chan" (財產), ou seja, "propriedade ou imóvel". Já quanto à segunda parte do caracter, essa requer um pouco de maldade "sínica". "Cheng tan" (清單), assim juntinho, é simplesmente "lista", mas como tudo tem uma explicação, e neste os meus parcos conhecimentos de chinês só me chegam para deduzir, vou arriscar. Este "cheng" (清) poderá adquirir vários sentidos, conforme o caracter que se seguir. Neste caso julgo tem o sentido de "descriminar", "quantificar" quantas unidades, e "tan" (單) significa exactamente "unidade(s)". Tudo bem, é desonesto da minha parte e os falantes de língua materna não entenderiam muito bem esta minha exposição, mas vamos lá ver, o que é preciso para representar em português o facto jurídico acima exposto? Uma palavra: arrolamento. E em chinês? Isto: "quantificar as unidades de bens sujeitos a taxação". Boa!

Agora antes de passarmos ao prato principal vamos forrar o estômago com uma "sopinha" de exemplos de traduções que não sendo tão curtas quanto isso, transmitem melhor e mais objectivamente a ideia que se quer fazer passar. Uma concessão por exemplo: "bai tei" (批地), significando a primeira "lote", e a outra "terreno" - um lote de terreno, portanto. Indo mais longe, ou por um prazo mais longo, temos "cheong" (長) que significa "longo" e se calhar já este "garfinho sentado" em alguma etiqueta de roupa, "kei"(期) que é simplesmente prazo, "chou" (租) que significa aluguer, e se a este último juntarmos "che" (借) particula que significa "por, pelo, para", ficamos com "arrendamento" ou "chou che" (租借), e tudo junto: "cheong kei chou che pai tei" (長期租借批地), literalmente "aluguer a longo prazo de um terreno", ou simplesmente "concessão por arrendamento"! Agora se tirarmos o "tempo" (期) e ficarmos só com o longo (長), o aluguer (租) e a tal partícula "por" (借), ficamos com (長租借), ou "cheong chou che", que é o regime da enfiteuse! It's magic! Outro "prato rápido", a simples posse, ou também "mera posse": é só ter um "tan" (單), que como já vimos lá em cima significa "unidade", juntar-lhe um "son" (純), que quer dizer "pura" ou "simples", e finalmente um "tsim" (佔) que sozinho quer dizer "assumir", e assumir o quê? "Yao" (有)? Que tem? Então é seu, parabéns! Pois assumiu que tem uma simples unidade! É a "mera posse"! Sortudo...

Agora falemos de um exemplo verdadeiramente alucinante: a insolvência e a falência. Coisas tristes é verdade, e ditas apenas numa palavra com o mesmo significado mas com objecto diferente - diz-se que fulano é "insolvente", ou seja, gasta mais dinheiro do que aquele que aufere, e que tal empresa está "falida", portanto não tem liquidez para continuar a operar. Em chinês isto não é assim tão simples, e faz-se mesmo questão de distinguir muito bem o inanimado do humano. Portanto "insolvente" é "mou seong wan lan lek" (無償還能力), que se desmonta desta forma: "mou" (無) é uma partícula de negação, e "seong" (償) quer dizer "reembolso", no sentido de "pagamento de dívida". Agora isto complica-se um pouco e tem a sua piada: estes dois caracteres juntos, "mou seong" (無償) significam "grátis", "oferta", o que é bestial. Só que juntando "wan" (還) que é "também" ficamos com "mou seong wan" (無償還), literalmente "insolvente". Grátis...pudera,não tem onde cair morto, o tipo! Finalmente juntamos "lan" (能), que é "pode" do verbo poder e "lek" (力), "força", e dá "lan lek" (能力), ou habilidade. Portanto o insolvente é alguém não só é "grátis", ou seja, está teso, como não tem "habilidade" para sair dessa situação. Um mau partido para a filha de um pai que se preze, digo eu. No caso de ser uma empresa "falida" diz-se "pou chan cheng choi" (破產程序), e aqui a táctica é a do 1+3, ou seja, os caracteres isolados vão fazendo pouco sentido até se "colarem" os sentidos do primeiro com os outros três. Portanto "pou" (破), significa "quebrado" ou "partido"? Bom, para já o "chan" (產), ou seja, a "produção", mau sinal, e depois a juntar-se o "cheng choi" (程序) que juntos ou separados transmitem a mesma ideia de "lógica", "sequência" ou "série", dá para finalmente juntar as peças todas do puzzle e afirmar com seguerança que o ideógrafo chinês para "falência" é "quebrada a série e a sequência da produção". Não podiam ter apenas um caracter para isto?

Uma das medidas que tornam o nosso sistema jurídico não perfeito (nada que possa ser subjectivo o é) mas relativamente seguro - pelo menos em comparação com o da R.P. China - é a possibilidade de requerer medidas de segurança, e uma dessas é a "Providência Cautelar". Não existindo algo semelhante em chinês, improvisou-se este "pou chun chu si" (保全措施), quatro caracteres que significam respectivamente "protecção", "completa", "medida" e "imposta", ou seja, "uma medida de protecção completa imposta", neste caso por uma entidade judicial, claro, e faz todo o sentido. Mas e se a tal medida for "não especificada"? Ou seja, uma Providência Cautelar não Especificada? Este "não especificada" é composto por "fei chi teng" (非指定), sendo o primeiro uma partícula negativa, o segundo tem o significado de "directo", o terceiro "dado" - "dado directamente" ou "especificado", juntando-se a partícula "zi" (之) dá-nos "fei chi teng zi pou chun chu si" (非指定之保全措施), ou literalmente "não directamente específica medida completa de protecção imposta". Uh? E que tal antes "Providência Cautelar não Especificada"? Pensem como apenas uma palavra fora do lugar, ou mesmo um acento pode fazer toda a diferença. Perante este cenário, o melhor mesmo é ter alguma paciência, meus amigos sínicos e causídicos.

E não é apenas esse o problema, pois interpretar leis, identificar lacunas ou descobrir áreas não requer inteligência sobre-humana ou visão raio-X, mas é preciso ter pelo menos alguma visão, alguns horizontes. Da mesma forma que não é correcto que um juíz solteiro julgue um caso de divórcio litigioso, ou uma juíza que ainda não foi mãe vá decidir sobre a custódia do poder paternal de um menor, também os nossos advogados deveriam viajar mais um pouco, descobrir sítios, pois aqueles que aqui nasceram, sempre viveram e que depois de uma instituição superior de ensino local sairam, têm umas vistas muito curtinhas ainda, e vão depois misturar o "grátis" com o "insolvente". Os da China continental conseguem ser ainda piores, em alguns casos, pois têm aquela maldita mania de que aqui é a República Popular, devia ser assim e pronto, mais nada. Pode ser que eles leiam este texto do segundo ao quarto parágrafo e depois procurem saber mais. Se eu der umas pistas já sinto que fiz uma boa acção. Quanto aos restantes, os que se preocupam mais com coisas pequenas como o idioma dos operadores do Direito em vez de por o Direito a operar em condições, guardem os "patriotismos" para outra coisa, que estragando esta depois quem fica com as calças na mão somos todos nós. Olha, vão ali até às ilhas Diaoyu apanhar um bocadinho de ar, valeu?


2 comentários:

Anónimo disse...

Ultimamente estas a escrever cronicas muito extensas, com interesse sem duvida mas demasiadas analises :)
Opiniao de leitor.
abr.

Leocardo disse...

Há temas em que se torna necessário elaborar, e não deixar (quase) nenhuma aresta por limar :)

Obrigado