quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

O jogo à nossa mesa


Bem-vindo a Macau, capital mundial do jogo. Chegando da fronteira das Portas do Cerco, da Ponte Flor de Lótus ou do Terminal do Porto Exterior, tem imediatamente ao seu serviço uma vasta gama de transportes que o levarão direitinho a um dos trinta casinos a operar no território - quem sabe se hoje é o seu dia de sorte? Se por acaso não é, e saíu "depenado" e apenas com dinheiro no bolso que mal chega para voltar a casa, pode fazer o percurso contrário, obrigado pela visita e volte sempre. Já agora traga um amigo também. Se acredita que aquelas 200 ou 300 patacas que lhe valiam o regresso a Hong Kong ou ao continente estão bafejadas pela sorte, do que está à espera? Vale a pena arriscar. Se perder, pode optar por empenhar uma jóia, o telemóvel ou qualquer outro objecto de valor numa das muitas lojas da especialidade, que lhe oferecem pelo iPhone que lhe custou 5000 patacas há duas semanas a impressionante quantia de 600/700 patacas, que pode ir de imediato apostar, e quem sabe se não é o início de uma grande fortuna, e a melhor decisão que alguma vez tomou na sua vida? Se for mulher e tiver um corpinho que não é de deitar fora, pode fazer uso dele, e lembre-se que o dinheiro fala sempre mais alto, e quando o dinheiro fala, a moral baixa as orelhas. Pode ainda tentar assaltar um coitado qualquer que encontra na rua, mas lembre-se que isso é um crime! Mas caso tenha sucesso, venha apostar o produto do roubo, e quando ganhar, divida a sua fortuna com a vítima! (E já agora peça desculpa...)

O jogo é uma indústria que lucra, lucra, lucra, que nunca mais acaba. Os casinos nunca perdem dinheiro, ou melhor perdem: se num mês têm um lucro de 5000 milhões, e no mês seguinte esse lucro é "apenas" de 4000 milhões, dizem que "perderam" mil milhões, e ai Jesus e agora os investidores, e é preciso cortar aqui e ali, reduzir as despesas, mandar funcionários para o olho da rua, rever a estratégia de "marketing", ai ai, ai ai, que estamos a perder dinheiro e se isto continua assim ainda vamos acabar na rua a pedir esmola. E quem alimenta esta indústria tão louca, que cinicamente chama de "entretenimento"? Os jogadores, claro. Os que vêm aqui trazer o "saco da roupa" para lavar, e os jogadores compulsivos. Estes últimos, coitados, são as verdadeiras vítimas deste esquema diabólico cujas receitas alimentam o crime organizado e financiam eleições (uma redundância), enquanto aumenta o fosso entre ricos e pobres, mais precisamente os que são podre de ricos e os que são apenas podres.

Quando os jogadores compulsivos, indivíduos que estoiram o orçamento familiar, contraem dívidas e empenham tudo o que têm chegam de fora, ainda é um mal menor, mas quando são de Macau, o caso muda de figura. A ideia que nos estão a vender é que o jogo é bom para Macau, é bom para a nossa Economia, e que os residentes de Macau vão beneficiar com os lucros do jogo. Pois é claro que não há bela sem senão, e ninguém incentiva os residentes de Macau a jogar - jogam porque querem. Para aqueles que pensam que isto se está a tornar um problema, têm um leque de opções que passa pelo aconselhamento...pelo aconselhamento...uh, e pelo aconselhamento. Pois. Podem optar por tentar deixar de jogar, isso é lá com eles, desde que as insitituições que providenciam esse serviço não metam o bedelho nos casinos. Até as próprias autoridades fecham um olho a certas situações, e assobiam para o lado, tudo "a bem da nação", como se lia no fim das comunicações antigamente aqui na ex-colónia. Mas porquê? O que leva esta malta a ir torrar o seu dinheiro, que tanto lhes custou a ganhar, e tantas vezes o dinheiro dos outros nas mesas dos casinos?

Nunca entendi muito bem a razão porque as pessoas ficavam viciadas no jogo; não se trata de uma dependência física, como acontece com algumas drogas, com o álcool ou com o tabagismo. Ninguém fica trancado no quarto a contorcer-se com dores, aos gritos e arrancando os cabelos por ter que ficar sem jogar: está tudo na mente, e basta ter força de vontade. Pelo menos era assim que eu pensava até começar a conhecer alguns jogadores compulsivos, e pode-se dizer que hoje conheço mais do que aqueles que desejaria conhecer. Estes são indivíduos que estão convencidos que vão ganhar um dia, porque podem ganhar - e podem mesmo, quem disse que não podem? Estão rodeados de luzes, de cifrões, do som do tilintar das moedas, dinheiro por toda a parte, basta deitar a mão a algum dele. Mesmo os tais agiotas emprestam com a condição de "receber 30% dos ganhos", como se ganhar fosse fácil - até parece um negócio da China, e que só um pateta recusaria tanta "generosidade". O problema é que isso nunca vai acontecer, e mesmo que esteja na eventualidade de acontecer, eles continuam a jogar e perdem tudo. Mas para morder o isco, é preciso um anzol.

Como Funcionário Público, não me é permitido entrar no casino a não ser por ocasião do Ano Novo Lunar, durante os primeiros três dias. O ano passado foi ao Casino Lisboa, o antigo, com um amigo que por acaso chegou a ter problemas com o jogo compulsivo, mas apenas com a condição de ficar a ver, e não jogar uma pataca que fosse. Olhávamos para a mesa do "Big and Small", e fazíamos previsões. A certo ponto acertei cinco vezes seguidas, e este meu amigo ficou eufórico: "estás com sorte! vai jogar!". Aí é que está o engodo: fazem-nos acreditar que "é fácil", e que também podemos ganhar, e que existe algo tão absurdo como uma "maré de sorte". E de facto na maior parte das vezes começamos a ganhar. Se eu me fosse ali sentar nesse dia e apostasse 500 patacas, podia estar a ganhar 2000 - 400% do investimento inicial - e em vez de me ir embora com aquele dinheiro "grátis", ficava ali a jogar até perder tudo. Depois disso ia buscar mais 500 para "recuperar as primeiras que perdi", e pronto, começava um ciclo infernal que me levaria ao jogo compulsivo. Sim, ganhei uma vez, quem me diz que não posso ganhar mais vezes?

Quem conhece um jogador compulsivo fica abismado com o seu discurso pateta. Alguns deles inventam desculpas absurdas para ir jogar, e pensam que o casino é uma máquina de multiplicar dinheiro. Imaginemos que encontramos um amigo que nos pede 500 patacas emprestadas para tratar de um assunto qualquer. Passadas algumas horas voltamos a encontrá-lo, abatido, e ele explica-nos que levou o dinheiro que lhe emprestámos ao casino "para depois nos devolver e ficar com algum para ele", mas "perdeu tudo". Claro que só dá vontade de lhe encher os cornos de porrada, mas se lhe explicamos diplomaticamente que fez um disparate, e que nunca poderia ganhar, faz um sorrisinho trocista, como quem nos diz: "ai não posso ganhar? empresta aí mais 500 e já vais ver". O problema é que mesmo que estejam a ganhar uma quantia mais que suficiente para resolver todos os seus problemas e ainda sobra, vão continuar a jogar. Se têm um milhão querem dois, se chegam aos dois querem dez, e por aí fora, até ao zero final. E mesmo que arrecadem uma boa soma, e depois de se confirmar que não fizeram batota (só os jogadores fazem batota, os casinos nunca) são convidados pelo para continuar a jogar, oferecem-lhes mil e um confortos, tratam-nos como realeza, até acabarem de os depenar e metê-los na rua com um chuto no rabo.

Ao contrário dos alcoólicos ou dos toxicodependentes, cuja aparência ou o comportamento denuncia, é mais difícil detectar um jogador compulsivo a olho nu, e os mais incautos correm o risco de cair no seu conto do vigário. Pode ser um homem ou uma mulher, jovem ou idoso, bem vestido, bem falante, atraente, e no caso de estar viciado no jogo, pode inventar as histórias mais incríveis para obter dinheiro para alimentar o seu vício. Quem está a par do seu problema nega-lhe uma pataca que seja, e na maior parte dos casos evita-o, não lhe atende as chamadas, muda de passeio quando o vê na rua, manda os colegas dizer que "não está" se ele o vai visitar ao emprego. Sabem que de nada adianta explicar-lhe que está errado, que está a arruinar a dua vida, pois para ele o que interessa apenas é jogar, e quando acaba o seu dinheiro, o dinheiro dos outros também serve - e quem empresta dinheiro a um jogador, sabe que nunca mais o vai ter de volta. O jogador compulsivo, o viciado no jogo, pede mil patacas emprestadas, e mesmo que esteja a ganhar cem mil nessa noite, volta a perder tudo sem sequer pensar em deixar de parte o dinheiro que pediu emprestado. Para convencer os que ainda não estão a par do seu problema, é preciso arte. É preciso mentir bem. Uns mentem muito bem, outros nem por isso. Vou contar três casos de jogadores compulsivos que conheci.

Uma delas foi uma trabalhadora não-residente, empregada num clube nocturno de um dos hotéis-casinos do NAPE, que conheci através de amigos comuns. Uma criatura angelical, com o ar mais inocente do mundo, que não imaginariamos numa sala de um casino nem que se tivesse perdido a caminho da missa. Um dia, e ainda a conhecia mal, ligou-me e perguntoume se a podia ajudar, pois a mãe "tinha cancro do útero, ia ser operada, e ela precisava de lhe mandar 3000 patacas". Pediu-me encarecidamente se lhe podia adiantar a quantia, que me pagaria "em dois meses, em prestações de 1500 patacas de cada vez". Para tornar o seu argumento ainda mais convincente, disse-me que se eu não pudesse ajudar "agradecia na mesma", e que nesse caso "a família vendia uma das propriedades" para costear a operação, que era "muito urgente". Como já era um pouco tarde e eu tinha um compromisso, combinei que falávamos no dia seguinte, mas confesso que tinha ficado mais ou menos convencido. Por sorte, ou apenas por mero acaso, jantei nesse dia com um grupo de pessoas entre as quais se encontrava uma colega de trabalho dessa jovem, e ao perguntar-lhe se sabia o que se passava com ela, alertou-me de imediato: "não lhe emprestes um centavo, pois ela é jogadora crónica", acrescentando que no dia em que recebem o vencimento, juntam-se vários credores à porta do local onde trabalho, esperando ver o seu dinheiro devolvido. Fiquei estupefacto mas convencido, e só bastava confrontar a suspeita, o que fiz no dia seguinte. Encontrei-me com ela, como tinhamos combinado, e confrontando-a com o seu "esquema" para me enganar, ela simplesmente olhou para o lado, e deu um sorriso maroto, como quem pensa: "pronto, este 'pato' já bateu as asas". Imagino quantas "operações" a mãe, o pai ou os restantes familiars já fizeram, quantas vezes morreram e foram enterrados.

Outro caso é o de um casal de residentes: ele empregado na hotelaria, ela desempregada. Vivem com o filho de seis anos num quarto na zona da Barra em condições miseráveis, pois todo o dinheiro que auferem gastam no casino. Não tenho muita intimidade com eles, apesar de os conhecer há algum tempo, mas contam-me que por vezes deixam o filho com estranhos, ou mesmo sozinho em casa enquanto vão jogar, e que depois de perderem tudo, discutem na rua - provavelmente na tentativa de encontrar qual deles é o maior pateta. No início de Dezembro a mulher deste casal mandou-me uma mensagem pedindo-me "com o coração nas mãos" que lhe adiantasse 2000 patacas para "pagar as propinas da escola do filho". Acreditei nela, até porque foi nessa mesma altura que paguei as propinas do meu educando, mas é claro que não só não lhe emprestei o dinheiro, como ainda lhe dei um raspanete: "as continhas primeiro minha amiga, e depois se sobrar, faça o que entender". Podem até não comer, andar rotos e descalços, mas primeiro tratem daquele inocente que trouxeram ao mundo, e que no fundo é mais uma vítima deste monstro que é o jogo.

O terceiro caso, e também o mais recente, é o de um indivíduo filipino que vive aqui perto de caso, que conheci através de amigos comuns, mas sabendo à partida que frequenta diariamente o casino da Ponte 16, nunca dei muita confiança. Um destes sábados, por volta das 10, recebi uma mensagem sua no telemóvel pedindo-me ajuda, pois "tinha ido ao supermercado fazer compras, partiu uns objectos no valor de 1700 patacas mas só tinha 1100, gaurdaram-lhe o passaporte e tinha que pagar as restantes 600 antes da meia-noite", pelo que me pedia ajuda. Como tinha mais que fazer essa noite, comecei por ignorar a mensagem, mas encontrei-o no dia seguinte, e de dedo espetado a tocar-lhe no ombro perguntei-lhe como tinha obtido o meu número, que me explicou ter sido "através de terceiros", e disse-lhe para não me incomodar mais, pois não ando a trabalhar para os outros gastarem o meu dinheiro a jogar. A jogadora do primeiro caso que falei era uma exímia mentirosa, o casal da segunda história não mentia, mas era patético, enquanto este é um péssimo mentiroso; além da léria do prazo dado pelo supermercado para devolver o dinheiro (nem as casas de penhores vão tão longe), como é que ele me queria convencer que sendo um jogador tinha no bolso 1100 patacas?

E estes ainda são os casos em que os jogadores compulsivos recorrem ao conto do vigário ou a outros expedientes "rasteiros", mas e quanto aos que envedram pelo crime, optando pelo roubo e até pela via da violência para alimentar o seu vício? Os dados sobre a criminalidade em Macau divulgados ontem pela Polícia Judiciária mostram-nos que os crimes relacionados com o jogo aumentaram de 1655 em 2010 para 2070 em 2012, e que são mais do que todos os outros tipos de crime juntos! No entanto o director da PJ diz que o mais importante é combater a droga, identificar os jovens consumidores, este é que o grande problema, etcetera e tal. Comparemos estas duas realidades: a droga e o jogo. Desconheço o preçário praticado no que diz respeito às substâncias ilícitas, mas posso arriscar que até um consumidor mais refinado no auge do vício não gasta mais de duas mil patacas por dia, pois está limitado pelo seu próprio corpo, e pela quantidade de substâncias que este consiga suportar. Por outro lado para o jogador compulsivo não existem limites; podem ser 500 patacas, mil, dez mil, centenas de milhar ou até milhões num só dia. E garanto ao sr. director da PJ que é muito mais fácil identificar um novo consumidor de drogas do que um novo jogador compulsivo - ambos potenciais criminosos.

Não quero dizer com este discurso que as drogas deviam ser toleradas só porque o jogo o é, ou que o jogo devia ser proibido só porque é tão mau ou pior que a droga. Não vou sequer discutir o impacto em termos de saúde, pois se por um lado a droga é o que se sabe, passar dia após dia metido num casino não é exactamente o mesmo que manter a forma através de uma corrida de uma hora por dia no circutio da Guia. Nem a isso me atrevo. Aprendemos a conviver com o jogo, conhecemos as regras, e pouco importa que faça milhares de vítimas por ano, pois acaba por servir "um fim maior". Agora não me peçam é que tenha orgulho desta forma que encontrámos para ficar bem nas contas da Economia. Sinto-me envergonhado, por tudo o que já referi e muito mais. Quando saio do território e digo a alguém que sou de Macau, e me respondem "ah sim Macau, conheço bem...a cidade do jogo", eu confesso. E peço desculpa.

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