quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Crónica de uma gripe passageira


Esta tem sido uma semana complicada para este vosso mais que tudo, caros leitores, e tudo porque estive...doente! Porquê a exclamação? Porque é a primeira vez que fiquei doente em quase três anos, e quero dizer mesmo doente, e não "doente". A diferença? As aspas implicam que a "doença" (e aí estão elas outra vez) não é causada por vírus, bactéria, fungo, protozoário, bacilo ou outro microorganismo, mas sim devido a uma "indisposição", que é um eufemismo para "preguiça". Sabem como é: fica-se a beber uns copos com os amigos até tarde, ou a jogar na PlayStation até às três da madrugada, no caso das senhoras por vezes as "regras" chegam com mais intensidade que o habitual, enfim, um dia em que ir trabalhar e aturar os outros não se apresenta como opção. Quem tem um "medico de família on-call" arranja um atestado com a facilidade de um simples telefonema, ou quem quiser confiar no seu jeito para as artes dramáticas, pode ir até às urgências dizer que está às portas da morte. Se optar pelo Kiang Wu, o hospital "do regime", dão-lhe um atestado e nem lhe fazem muitas perguntas - desde que pague, é claro.

Mas no meu caso foi mesmo doença, garanto. E foi viral. Foi o vírus da gripe, que já não me apanhava desde Fevereiro de 2011, a última vez que me recordo de ter metido baixa médica. Só as pessoas com que privei estes últimos dias repararam que realmente andei engripado, e peço desculpa se não divulguei nas redes sociais e afins, mas não tenho por hábito publicar o meu quadro clínico nesses media de modo a torná-lo público, informando depois a evolução do meu estado de saúde em tempo real. A culpa foi minha, e andava a pedi-las, com aquela mania de sair de casa com uma simples camisola, mesmo que esteja um tempo frio - e tem estado bastante frio esta semana. É que detesto andar "agasalhado"; sou adepto da simplicidade e isso de "andar agasalhado" parece uma coisa da terceira idade. Os velhos é que se apetrecham de cachecóis, luvas, gorros, ceroulas e sei lá mais quê quando as temperaturas descem dois graus. Armei-me em espertalhão, confiante na eficácia a toda a prova do meu sistema imunitário, e "chupei" uma gripe.

Posso precisar o momento exacto em que o vírus me apanhou com as defesas em baixo: na sexta-feira à noite. Saí para um breve compromisso, e lembro-me de no regresso ter sentido bastante frio, e ainda de não ter dormido o número de horas ideal depois de mais uma semana de trabalho duro (sim, pensam o quê?). No Sábado sentia algumas dores de cabeça, e ao fim do dia comecei a tossir, e sentia-me excepcionalmente cansado, e logo eu que costume aproveitar ao máximo as primeiras horas de Domingo. Na manhã seguinte tinha uma tosse seca acompanhada com uma especturação verde, aquele verde vivo que lembra a côr do Incrível Hulk, e aí pensei: já foste. Já era tarde para fazer o que habitualmente faço quando começo a sentir os primeiros sintomas da gripe: tomar dois Panadol e ir cedo para a caminha. A gripe estava oficialmente implantada, e começava aquela travessia do deserto que nos rouba três ou quatro dias de vida. Passei um Domingo de caca, com dores do corpo, cabeça quente e uma sonolência que me deixava numa letargia que odeio, e com a esperança de melhorar na segunda, tomei os tais Panadol e fui dormir cedo.

Segunda-feira, primeiro dia de mais uma semana de trabalho. Não passei mal a noite, mas os sintomas da gripe manifestavam-se em todo o seu esplendor. Tosse persistente, ao ponto de causar dores abdominais, nariz entupido, sonolência, voz alterada, conflito interior: por um lado não me sentia em condições de ir trabalhar, por outro lado não estava tão mal que me levasse a considerar uma espera de horas nas urgências como uma alternativa. Fui trabalhar. Como este mês estou novamente a desempenhar funções na linha da frente, no atendimento, deixei bem evidente o meu débil estado de saúde, mas nem por isso me deram descansado. Fiquei impressionado com a capacidade de observação de algumas pessoas, que ao me verem todo dengoso e molengão me diziam "estás com gripe", com um ar muito sério, muito afirmativo. "Fantástico" - respondia eu - "perdemos um grande médico". Pelo menos o sarcasmo não tinha sido afectado pela gripe.

Ia reparando como muita gente usava máscara nesse dia, e fui sabendo de alguns colegas noutros departamentos que estavam de baixa médica. Isto fazia-me sentir um pouco melhor, sabendo que era apenas mais uma vítima de um surto de gripe que por aí andava. Senti-me menos pestilento, menos contagioso. Quando estamos com gripe, no nosso estado mais vulnerável, é comum escutar recomendações de gente saudável, que perante a doença dos outros se julgam imortais, indestrutíveis. Entre os conselhos do costume, alguns disparates e nada que nunca tenha ouvido já centenas de vezes, há algo que dizem sempre: ingerir líquidos quentes, e evitar as bebidas frias. Mas porque diabo? Eu adoro bebidas frias, mesmo no Inverno, e mesmo doente. Pronto, há coisas que evito beber quando estou doente, como bebidas alcoólicas e refrigerantes, mas sabe to bem uma água de coco, ou um Smoovlatté de mocha da Nescafé. Além disso não consigo beber nem água quente, nem no chuveiro, a não ser que esteja infusa em chá ou café. Já quando vivia em Portugal ficava irritado por não poder comer um gelado no Inverno. Mas que ditadura termo-alimentar é esta? Por essa lógica, só podiamos comer e beber coisas frias no Verão.

Os três dias desde que os sintomas se começam a manifestar em todo o seu esplendor até que nos deixamos de sentir como se tivessemos levado uma valente tareia são uma merda. Só apetece ficar na cama, falta o apetite, falta o paladar, falta o cheiro, falta a tesão, não há pachorra para aturar ninguém, assoamos o nariz até este cirar carne viva, tornamo-nos hiper-sensíveis aos barulhos estrientes, à poluição, ao fumo dos cigarros, e não há nada que levante o astral - nem um copito se pode beber, e a mais bem tirade das bicas não sabe a nada, com um camano. É como se fossemos um morto-vivo, e ainda demora mais uma semana até que nos livremos dos ataques de tosse e recuperemos o sono. O que me aconteceu entre segunda e quarta foi chegar a casa e atirar-me na cama, dormir até às onze, acordar e comer qualquer coisa enquanto actualizava o blogue, convencido que não ia voltar a adormecer, ser acometido do sono outra vez pelas duas ou três da manhã, e demorar mais de meia hora a tirar o cu da cama depois das 8. Era como se o dr. Frankenstein tivesse recriado o João Pestana.

A excepção foi na terça, onde depois de ter passado um dia de cão no trabalho reuni as minhas últimas forças e foi ao Hospital Kiang Wu, em busca de alívio na forma de antibióticos (e talvez alguns opiáceos, quem sabe?). Esperei menos de uma hora numa sala repleta de outros engripados como eu, cada um com uma interpretação muito pessoal do virus. Parecia uma daquelas entrevistas de emprego em que os candidatos trazem debaixo do braço o diploma juntamente com o curriculum vitae. Fizeram-me as perguntas da praxe, todos os testes que o dinheiro pode pagar - incluíndo o da gripe aviária, que tem tido muita saída nesta estação - e como não tinha uma fibre além dos modestos 38,3º C, não obtive os mínimos que me qualificassem para as Olimpíadas do atestado, e por isso conteitei-me apenas com os medicamentos. Neste momento sou um gripómano em recuperação, a teclar enquanto o sono não chega, e agradecia que me dessem qualquer coisinha, uma moedinha que seja, por misericórdia, e...ah deixem lá, estou a entrar no personagem errado.

Quando António Lobo Antunes escreveu "Todos os homens são maricas quando estão com gripe" para a voz do cantor alentejano Vitorino, referia-se apenas aos homens casados, enamorados, juntos ou amantizados. Para os "corações solitários" como eu é mais revolta que mariquice. Sim, só me apetece ficar na cama a curtir a virose, mas o que dava mesmo vontade era andar por aí aos pulos; esta inoperância derivada da impotência deprime-me. Só quero mesmo que saiam da minha frente quando ando pela rua na companhia da puta da gripe. Quero arranjar uma camisola trilingue - de lã, já agora - onde se possa ler: "Tenho gripe. Não fale comigo deixe-me passar senão espirro-lhe em cima". Demasiado cruel? Dizem vocês agora, aí no pleno gozo da saúde, a ingerir "bebidas quentes" como os esquimós, e todos agasalhados como os velhotes. Mas não pensem que espacam, pois a "mosca" da gripe acaba por nos picar a todos. Para mim uma vez em cada três anos chega, obrigado.

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