Está aí mais um Festival de Artes de Macau, e como sempre o momento alto do certame, pelo menos para mim e para grande parte da comunidade macaense, é a peça do Grupo Doçi Papiaçam di Macau. Falo por mim quando digo que "Festival de Artes" se confunde com patuá e com os Doçi Papiaçam, e na verdade não me recordo de outra coisa que tenha ido ver inserida no Festival que não isto. Ah sim, fui ver o Ennio Marchetto em 2009. Mais do que isso não tenho memória. Mais uma vez prometo estar no dia 10 ou 11 de Maio (ainda preciso de consultar a agenda) no Centro Cultural, como é hábito, e passarei de Domingo a uma semana pela loja da Kong Seng para adquirir os bilhetes que sobrarem do costumeiro açambarcamento destas ocasiões.
Para esta XXV edição do Festival de Artes, Miguel Senna Fernandes propõe-nos "Vivo na únde?" - ou "Onde vou viver?", uma sátira ao problema da habitação em Macau. Da habitação ou da falta dela, ou mais precisamente, dos preços proibitivos das fracções autónomas, que tornam impossível a qualquer cidadão da classe média que viva honestamente do suor do seu resto adquirir casa própria. Tenho a certeza que o incansável encenador dos Doçi nos vai voltar a divertir e surpreender, mas desta vez mexe num tema muito sensível. Num autêntico ninho de vespas, e só o tema dá muito pouca vontade de rir. Vai ser necessário um esforço suplementar do grupo que nos tem entretido nos últimos anos com as suas farsas dedicadas a temas da actualidade do território.
Para quem está de fora deste nó cego que é a habitação em Macau, resumo sucintamente: o preço das fracções e do metro quadrado decuplicou nos últimos dez anos, desde o fim da SRAS, a pneumonia atípica, altura em que se podia adquirir um T2 decente por menos de um milhão de patacas. A especulação imobiliária, um fenómeno que começou em 2005 com a liberalização do sector do jogo e instensificou-se a partir de 2009, fez os preços das casas disparar, e actualmente o tal milhão que comprava uma casa decente em 2003 não chega sequer para comprar um lugar de estacionamento, que é apenas um rectângulo de tinta pintado no cimento. O Governo recusa-se a intervir, com o pretexto de que "o mercado é livre". O preço dos espaços comerciais acompanhou esta loucura especulativa, e existem lojas no centro da cidade cujo aluguer ultrapassa os dois milhões de patacas mensais - e há quem pague esse valor sem fazer ondas.
Os efeitos práticos disto no quotidiano fazem-se sentir sobretudo em quem procura adquirir casa pela primeira vez. Imaginemos um jovem residente que ambicione a uma moradia que possa chamar sua, e perante os preços proibitivos, opta por um humilde T2 na zona do Patane, com uma área de 45 m2, num prédio com mais de 20 anos, e sem elevador. São-lhe pedidas 4 milhões de patacas, e recorrendo ao banco para obter crédito, é-lhe dito que só lhe concedem um empréstimo de metade do valor do imóvel, ou seja, 2 milhões de patacas. E onde vai buscar os outros dois milhões? Se não os tiver na caixa das bolachas ou debaixo do colchão, pode sempre pedir aos pais, que hipotecam a sua própria casa em nome do filho. E assim temos um monte de gente endividada e trabalhar para pagar a casa ao banco durante vinte ou mais anos.
Este é um cenário mais adequado para um melodrama, do tipo daqueles sobre o Holocausto, do que propriamente para uma comédia. É lógico que os Doçi e o seu líder de sempre sabem o que fazem, e tentarão procurar no humor algo que redima esta lamentável situação - só gostava de saber como, que volta a dar a tudo isto, e estarei lá para ver, garantidamente. Se aquando da peça "Côza Dotô" Miguel Senna Fernandes foi no final pedir desculpas a quem eventualmente possa ter ficado ofendido com a sátira aos cuidados de saúde em Macau, talvez neste caso tenha que pedir antes, durante e depois. Em todo o caso, e como se diz na linguagem teatral, partam uma perna!
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