Bem, agora deixemos os ignorantes e os pobres de espírito entregues à sua triste sina, e fiquemos com alguma escrita de qualidade,
como o artigo de quinta-feira do Hoje Macau, por exemplo. Tenham a continuação de um óptimo fim-de-semana.
Mais de mil trabalhadores residentes dos casinos do território saíram à rua no último Domingo, insurgindo-se contra a contratação de mais mão-de-obra estrangeira. Os manifestantes, que responderam mais uma vez em massa à convocatória das associações que os representam, voltam a criticar a política das concessionárias de jogo, que para responder à falta de matéria humana no mercado de trabalho local, quer em número quer em qualidade, opta pelo recrutamento de não-residentes, que os locais consideram ser “uma ameaça” para o si em termos de empregabilidade, quer actual, quer futura. Uma das vozes que se fez ouvir no Domingo ia mesmo mais longe: “Agora são os trabalhadores dos casinos, depois é toda a gente em Macau que fica sem emprego”. Perdoem-me a comparação, que parece descabida, mas ao escutar isto recordei-me do Bispo de Bragança aquando do primeiro referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, em 1998: “Começam com os bebés, e qualquer dia chegam aos velhinhos”. Os velhinhos, que apesar de não terem muito tempo pela frente não gostavam de ser recordados desse facto, ficaram do lado do bispo, claro, e votaram no “não”.
E o que distingue um residente de um não-residente, causando esta fissura na mão-de-obra que tanta tinta tem feito correr praticamente desde a criação da RAEM, e com mais intensidade desde a liberalização do sector do jogo, que gerou milhares de novos postos de trabalho? Uma coisa, e uma coisa apenas: o Bilhete de Identidade de Residente de Macau, ou BIR. Este BIR passou a ser sinónimo de “emprego”, o que como muito boa gente sabe, não é a mesma coisa que “trabalho”. Falar de “emprego” é falar de um lugar sentado, de preferência entre quatro paredes e um tecto, com ar-condicionado, um salário razoável que dê para comprar um carro, pagar as contas e ainda ter uns trocos para beber um copo com os amigos, e já agora para ir de férias no Verão a um dos países da região onde se come bem e se dão uns mergulhos, ou quiçá um pouco mais longe, à “Europa”, por exemplo. Convém portanto que se tenha um horário que não seja sobrecarregado, e um cargo em que não seja preciso puxar muito pela cabeça, e especialmente tomar decisões ou assumir responsabilidades. Quer dizer, tudo a que um BIR dá direito.
E o “trabalho”, quem o faz? Quem é que se vai sujeitar a trabalhar por turnos, nove ou dez horas de cada vez, com um dia de descanso semanal e 11 de férias anuais, e troco de 5 mil patacas? – “Cinco mil patacas semanais? Nada mau…para começar” – “Não, cinco mil mensais”. – “O quê? Nem pensar. Isso não é compatível com o BIR”. – “E que tal ir trabalhar nos dias de tufão? Afinal os hotéis têm turistas na mesma, e os casinos continuam cheios”. – “Nada disso, que o BIR não permite”. – “ E quem serve às mesas? E quem limpa? E quem arruma os quartos?” – “Não será quem tem um BIR, certamente”. – “E qua tal contratar trabalhadores não-residentes para o efeito?” – “Não, isso nunca!” – “E porque não? – “Porque não têm BIR, ora essa”. – “Então quem? E onde vamos buscar os milhares de trabalhadores para os novos empreendimentos hoteleiros?” – “Residentes em primeiro lugar! Mais não-residentes nem pensar!” – “E se os residentes não chegarem para satisfazer as necessidades?” – “Sei lá…mas não-residentes é que não. Eu tenho um BIR, ouviu?”.
Na hora de recrutar mão-de-obra qualificada que preencha os “empregos” de maior responsabilidade – e por isso mesmo também mais bem remunerados – o que os residentes têm para mostrar é…o BIR. Para quê estudar, se o BIR vale mais que qualquer diploma universitário? Sociologia, Psicologia, Bioquímica, Nutrição, Veterinária…estão a sonhar ou quê? Acabam a trabalhar no casino, na mesma. A idade para se poder trabalhar nos casinos passou de 18 para 21 anos? Porreiro, pá – mais três anos para acabar o secundário. E se for mesmo, mas mesmo muito necessário ter ali gente com o mínimo de conhecimentos técnicos na área de hotelaria e de gestão? E que tal gente bonita e simpática que atenda os clientes com um sorriso no rosto, e com a amabilidade que os faça dizer lá fora que foram bem tratados em Macau? Que os contratem, ora, desde que tenham o BIR. E se não tiverem? E se os “croupiers” não chegarem? E se for preciso ir buscar mão-de-obra estrangeira? Nunca! Tudo bem, e sugestões para contornar este problema? Os turistas que façam sozinhos a cama, e que virem as cartas eles mesmo.
E finalmente a sacramental pergunta: como obter este BIR, este tapete voador que nos leva à terra das mil e uma noites, essa chave que abre a gruta de Ali Bábá? Bem, a maneira mais fácil é através da hereditariedade, sendo filho de alguém que já tenha BIR, ou do casamento, contraindo matrimónio com um portador do BIR. É assim como o HIV, só que melhor. Ambas as situações requerem força: envolvem uma cama, um par de pernas abertas, e qualquer coisa a entrar ou a sair. E ainda pontaria: é preciso que esteja envolvido alguém com o BIR. Ou então compra-se. Em Macau as coisas compram-se, pá: os BIR, as quotas para não-residentes, as manifestações, tudo. A propósito, este ano quanto é o cheque? É que nós, malta com BIR, queríamos marcar as férias. Portanto, se não se importam…
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