terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

O selo e o parecê-lo


No último programa "Contraponto", transmitido no Domingo à noite pelo canal 1 da TDM e repetido ontem à tarde, estiveram em debate dois temas que considero fundamentais para Macau, cada um dentro do seu género: a qualificação da mão-de-obra, tanto no sector público como no privado, e a liberdade de imprensa, nomeadamente a independência jornalística. O painel era composto por Paulo Rêgo, Frederico Rato e José Luís Sales Marques, que com a habitual moderação de Gilberto Lopes debateram muitos pontos interessantes, e ficaria sempre qualquer coisa por dizer.

Onde o chão dá mais uvas é sem dúvida na questão da qualificação dos quadros, ou dá falta dela, neste caso. Falar deste problema é como falar do Universo: nunca mais tem fim, e não se sabe onde começou, ou quando, e por isso vou guardar o tema da liberdade de imprensa para amanhã, se tiver tempo. É observável a olho nu que os quadros em Macau estão mal preparados, ora por falta de formação, devido a formação incompleta ou de qualidade duvidosa, ou por desaproveitamento dos conhecimentos técnicos adquiridos. Neste último aspecto é o sector privado que mais se ressente, pois seja qual foi a área em que o quadro obteve formação superior, acaba na grande maioria dos casos afunilado para o sector do jogo, que onde estão os empregos, falando realisticamente. O resto do que compõe o sector privado, ou do empresariado, é uma apenas uma "brincadeira".

Quem trabalha por conta de outrém sem ser na indústria do jogo é porque nem para isso está qualificado, não precisa, ou então não quer - há um pouco de tudo para todos os gostos, como se sabe. Quem quiser levar as coisas mesmo a sério, estudou engenharia e quer ser engenheiro, estudou bioquímica e quer ser bioquímico, estudou criminologia e quer ser criminólogo, o melhor é procurar a sorte lá fora, ou se for esperto, nem se incomoda em regressar, que assim não perde tempo. No último exemplo que dei, é muito mais fácil seguir carreira como "criminoso" do que propriamente como "criminólogo". A única carreira ainda com alguma saída é a dos operadores do Direito, onde continua a existir "falta de juristas". Ser advogado é cada vez mais complicado, mas o que eu não entendo é que por mais juristas e licenciados em Direito que apareçam, continua sempre a haver falta. Mistério.

Como o que não falta é dinheiro, o Executivo insiste em subsidiar o laxismo, tornando a preguiça uma opção de carreira. Conheço pessoas que não trabalham nem nunca trabalharam na vida e ganham em subsídios um total superior ao que ganha a maioria dos trabalhadores não-residentes, trabalhando 9 horas por dia e seis dias por semana - às vezes mais. Não querem trabalhar, coitadinhos, e por isso há falta de mão-de-obra? Contratam-se mais TNR, que aceitam um salário que os anjinhos daqui recusam, porque ganham mais no fazendo puto. Isto quando se trata dos casinos, restaurantes, bares e não-sei-quê tudo bem, mas no caso de um técnico especializado, o caso torna-se sério. Um jovem de Macau que invista no seu futuro e vá para o exterior estudar medicina, volta para Macau e se quiser mesmo ser médico tem duas hipóteses: 1) abre um consultório privado, o que é difícil, a não ser que seja rico ou tenha um patrono, e 2) entra nos quadros dos Serviços de Saúde, e exerce na rede pública. Aqui é que começa a segunda metade do problema.

O sector público em Macau anda pelas ruas da amargura. Não, anda pelo esgoto das ruas da amargura. Como funcionário público, falo do que vejo, e não tenho receio de falar, pois só estou a dizer aquilo que já toda a gente sabe. Trabalhei seis anos para a Administração Portuguesa, e desde os últimos 14 para a actual. Recordo-me como se fosse ontem a forma como a anterior administração era acusada de certos "vícios", nomeadamente quanto à questão dos meios de provimento. Acusavam certos departamentos de fazer entrar primos, afilhados, amigos e os amigos de todos estes por portas e travessas, promovendo a cultura da cunha, e especialmente os que não tinha uma, choravam e batiam com o pé no chão, bradando "injustiça". Com a mudança de senhorios, e quando todos pensavam que tudo ia mudar, foram fazer pior. Muito pior, e é mesmo caso para dizer que só se queixavam que a marmelada não prestava porque não lhes davam nenhuma, mas agora que lhe tomaram o gosto, lambusam-se à fartazana. A conduta que tanto criticaram na anterior administração é a mesma que adoptam agora, mas elevada à infinésima potência, muito mais descaradamente, e sem achar que devem qualquer explicação seja a quem for. É apenas "porque sim". Eu até não os censuro, mas também não era preciso serem tão mentirosos.

Sejamos realistas: além dos casinos, e nem sempre, é a Administração que mais bem paga, e ainda oferece regalias impensáveis no sector privado. Em 90% dos cargos públicos, ou mais, arrisco, não é necessário nenhuma qualificação específica ou sequer uma especialização; qualquer indivíduo alfabetizado e lúcido aprende a desempenhar a maioria destas funções. Alguém com o 9º ano de escolaridade e 10 anos de experiência é uma mais-valia em relação a outro que tem um doutoramento, mas acabou de chegar. Para as funções que requerem conhecimentos técnicos, têm quadros formados para esse efeito em número que dê para cumprir os serviços mínimos, e para que aceitem fazer o trabalho é só pagar-lhes o dobro daqueles que estão ali a decorar o Presépio, e as coisas vão andando para frente, com um ou outro trambolhão aqui e ali, sem grande importância.

Por tudo isto e por muito mais interessa à Administração alargar os quadros de modo a empregar os tipos que saem das incontáveis universidades e institutos que foram proliferando depois de 1999. O dr. Frederico Rato chamou a atenção para esse facto, como se passou do 8 para o 80 em matéria de instituições superiores de ensino em Macau. Ora é claro que o causídico sabe tão bem como toda a gente em Macau, que depois de descobrirem que o ensino superior era um negócio lucrativo, foi um ver-se-te-avias. Os meninos pagam, levam um canudo, arranjam um tachinho na Administração, e ficam todos felizes. Agora, onde é que entra o médico neste conto da carochinha? O que o vai levar a fazer parte deste esquema, ainda mais sabendo que o sistema de saúde é o que é, e que vai ser obrigado a atender 20 doentes por hora, ganhando o mesmo do que se atendesse um ou dois? Que realização profissional retira disto, que justifique o investimento que fez na sua formação. Nenhuma, e por isso arruma a viola no saco e vai tocar para outra freguesia. Mas e agora, quem é que vai fazer de médico nesta ópera-chinesa? Não se preocupem, arranja-se uma bata branca do continente, que sai mais em conta e não reclama tanto.

Outro aspecto em que o dr. Frederico Rato toca na ferida é no facto de dar a entender que na Administração não existe uma "meritocracia", ou seja, o saudável e recomendável hábito de premiar quem tem mérito. Na realidade é muito pior do que isso: não existe um espírito de servidor público, e vive-se sobretudo das aparências. Um tipo que fique sentado em frente ao PC o dia todo sem fazer a ponta de um corno é mais valorizado que outro que apresenta trabalho feito, mas gasta meia hora por dia a beber um café e a ler o jornal. Na hora de dar o selo, dá-se preferência ao parecê-lo. Quem demonstra iniciativa, inteligência ou pensa pela própria cabeça, é tido como um "elemento destabilizador", um eufemismo para designar a autocracia vigente. Se for preciso saneá-lo, basta alegar que não sabe trabalhar em equipa, e os recursos hierárquicos existem, estão ao acesso de quem acha que está a ser vítima de uma injustiça, mas não pense que lhe vão dar razão. Cultiva-se a obediência cega, o anuísmo, criam-se delatores e limita-se a capacidade negocial dos agentes com contratos além-quadro e outros vínculos precários. Em alguns casos os modelos de gestão são absurdos, e alguns departamentos parecem estar servir de uma espécie de tubo de ensaio ou rampa de lançamento para quem ambiciona outros vôos, e quase sempre de natureza política. Perante este cenário, hajam pataquinhas que vão chegando dos casinos, porque se for para meter a política nisto, Deus nos acuda. Se isso acontecer, não sei se os canudos que existem na Administração chegam para segurar o tecto.

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