A reportagem de Maria Caetano
publicada hoje no Ponto Final sobre a exigência de uma parte ofendida em que se mude a designação em chinês da Shelley Street, em Hong Kong, de
mo lo miu kai (Rua do Templo dos Mouros) para uma que "não ofenda" é deveras interessante. Leva-me a dissertar um pouco sobre algumas especificidades desta região, e de como em Macau e Hong Kong o racismo e a descriminação por etnia e religião são uma coisa descabida. Simplesmente não existe, e quando se verifica esporadicamente não devia, porque não faz sentido nenhum.
"Mouro" é a designação antiga usada na região para designar os maometanos, dop latim "maurus", que significa literalmente "indivíduo originário da Mauritânia", ou por extensão, da África muçulmana ou do magrebe. Foi nas primeiras lições de História que tomei contacto com os "mouros", os tais que D. Afonso Henriques, o nosso herói genocida, e os reis que lhe seguiram expulsaram da Península Ibérica. É errado chamá-los "árabes", opção considerada politicamente correcta, pois não eram originários da península arábica. Em Macau os "mouros" são os maometanos, pronto. Os islâmicos, se quiserem. Muito mais ofensivas são designações como "Towelheads" (cabeças de toalha), como lhes chamam os ingleses ou americanos.
Existe um prato regional que se chama
mo lo kai fan, uma perna de galinha assada com molho picante de coco, com arroz de açafrão e passas, uma verdadeira delícia. E nem sabia tão bem se lhe mudassem o nome! É o arroz de galinha dos mouros, portanto. Temos ainda em Macau o Ramal dos Mouros, onde se encontra a única mesquita e cemitério maometano do território, e ainda o Quartel dos Mouros, um dos
ex-libris de Macau, perto da Barra.
Macau sempre foi um ponto de encontro de etnias e culturas tão díspares: chineses, portugueses, africanos, sul-americanos, indianos, malaios, filipinos, tailandeses, enfim, uma verdadeira caldeirada de sabores. E para mim ainda sabe a pouco. É normal que se distingam os diferentes habitantes de acordo com a sua origem, língua ou religião, sem que para tal exista alguma forma de intolerância. Essa bitola do "todos diferentes, todos iguais" funciona aqui de um modo diferente, sem complexos de ordem histórica. Aqui não cabem leis anti-descriminação pensadas
à la minuta, pois Macau sempre funcionou bem sem elas. Se existe descriminação entre residentes quanto à língua, religião ou origem, a Lei Básica já contempla formas de resolver o problema. Se é ou não bem aplicada, isso já é outra conversa.
Os portugueses, por exemplo, sempre foram conhecidos por
kwai lo (鬼佬, diabos brancos) ou
ngao (vacas). esta última designação deriva do facto dos antigos militares portugueses, que sempre se deram mal com o clima quente e húmido do território, cheirarem a "vaca", de acordo com os chineses. Não que os chineses ou qualquer outro povo cheire bem quando sua, mas era esse o cheiro que os distinguia: de vaca, que era um animalzinho que existia em grandes quantidades na altura no território. E o nome ficou, mesmo que a malta lusa use fatinhos caros e perfume Chanel, não se livram do epíteto. O que sinto eu quando oiço da boca de um chinês um piropo deste tipo? Nada. É normal. Às vezes até esboço um sorriso, como que a apreciar a perspicácia e a forma natural como se convive com este tipo de pequenez e ignorância, já que a cultura não está ao alcance de todos.
Mesmo entre os chineses do território existem distinções. Os continentais são conhecidos por
tai lok ian (pessoa do grande continente) ou simplesmente
a-chan (阿燦), um nome próprio. Esta designação tem uma história curiosa. Em 1977 o actor de Hong Kong Liu Wai Hung (廖偉雄) deu corpo a um personagem no filme "O bom, o mau e o vilão" (網中人), que contava a história de um imigrante do continente acabadinho de chegar a Hong Kong, e de como ficava deslumbrado com tudo o que via. Numa das cenas o personagem é desafiado a comer 20 hamburgers do McDonald's, uma imagem que ficou famosa e é ainda hoje lembrada como estereotipo. O personagem chamava-se, adivinharam, "A-chan".
Para o observador ocidental menos atento, "todos os chineses são iguais", mas os
ou mun yan pensam de maneira diferente. e tratam o
a-chan com algum desprezo. É o tal que se põe na rua de cócoras, tem a unha do dedo mindinho maior que as outras, usa chinelos de plástico e acompanha as refeições por uma embaraçosa banda sonora. Segundo a minha sinóloga de serviço, "mesmo a segunda geração de imigrantes chineses ainda se comporta de forma diferente dos locais", que é como quem diz, os
ou mun yan, os chineses de terceira ou quarta geração, nascidos em Macau.
Mesmo entre os macaenses - ou portugueses de Macau - mais antigos, fazem-se algumas distinções, ora a nível de "pureza", ora pela qualidade do português falado e escrito, uma característica que os distingue dos restantes naturais de Macau. Por exemplo os macaenses de ascendência indiana eram chamados de "Canarins" (Nhonha na jinela/Cô fula mogarim/Sua mãe tancarera/Seu pai canarim). Até os filipinos que trabalham em Macau não são apenas "todos filipinos". Os filipinos da área metropolitana de Manila "olham de cima" para os de Vissaya (a ilha central do arquipélago) ou os
igorot, uma etnia indígena da zona das cordilheiras.
Nos documentos mais antigos da província ultramarina de Macau, os chineses eram referidos como "chinas", seguindo-se o seu nome (ex: "o china a-fong"). São apontamentos da História, e não há que ter vergonha disto. São estas pérolas que tornam Macau um local especial, único. Neste âmbito não penso que Macau e Hong Kong sejam piores em termos de racismo de outros sítios onde já vivi. Em Portugal por exemplo, o convívio entre pessoas de diferentes origens está longe de ser pacífico, até a nível regional ou bairrista. Se em Hong Kong a convivência e as suas particularidades ainda incomoda muita gente, isso deve-se talvez à influência dos ingleses, que além de racistas por natureza são arrogantes ao ponto de fazer leis para regular o racismo dos outros.
Uma outra história em jeito de conclusão para ilustrar este ponto: existe uma pasta dentífrica baratucha produzida na região, a Darlie (黑人, literalmente, "gente preta"), que pode ser encontrada em qualquer farmácia ou supermercado. Na caixa original do produto vemos um negro de cartola, sorridente, a mostrar o esmalte branquinho característico das gentes de tez escura. Esta pasta dentífrica chamava-se "Darkie", mas porque ofendia sensibilidades, mudou o nome e o negro da cartola tornou-se pálido. Pode ser mais politicamente correcto, mas perdeu a graça, a matriz, a originalidade. É isto que temos que evitar que aconteça entre nós.
14 comentários:
Estas bestas mouras não se importam de ter as mulheres tapadas dos pés à cabeça nem que elas tenham de ficar nas traseiras da mesquita. Nem para rezar são iguais. Mas isto, é claro, não ofende estas luminárias.
Entao os portugueses(ngau) cheiram a vaca???loooool
"Macau sempre foi um ponto de encontro de etnias e culturas tão díspares: chineses, portugueses, africanos, sul-americanos, indianos, malaios, filipinos, tailandeses, enfim, uma verdadeira caldeirada de sabores. "
É bem verdade. Pena que agora queiram expulsar de Macau tudo o que não seja residente
Uma excelente aula de história, a do Leocardo e a do Ponto Final. Mas desde que inventaram o conceito de "politicamente correcto", estas bestas modernas sentem-se ofendidas por tudo e por nada, quando os ofendidos deviam ser os outros, os que respeitam a história que está por trás da toponímia. Se fosse eu o Chefe do Executivo da RAEHK, dizia-lhes na tromba: "Ou fica como está ou muda-se para Rua dos Cabeças de Toalha, agora escolham". Com gente dessa, é assim que se trata.
O Leocardo deveria dar credito a quem escreveu este texto. Excelente, por sinal, mas é mais que óbvio que foi escrito por algum Macaense, ou alguém que cresceu no território. Mas, volto a repetir- excelente artigo.
Pequeno reparo: a parte dos Ngaus não se limita aos cheiros, mas também à atitude, digamos, "frontal" com que a malta portuguesa ( atitude bem latina) resolve conflitos,e, bem, "comunica". Um verdadeiro choque à típica atitude Chinesa, que evita o confronto e é, digamos, bastante menos "emotiva". (Nao pretendo aqui fazer nenhum tipo de julgamento de valores ou definir qual a atitude "certa", atenção!)
Este texto é 100% da minha autoria. A única referência feita entre parentesis a um poema do Adé não é da minha autoria. Todo o resto, sim.
Cumprimentos.
Apreciei muito este seu artigo, Leocardo.
Continue. Mesmo que muitas vezes não concorde com a sua opinião (doutras concordo :) ) penso que neste blog existe realmente uma discussão saudável e o Leocardo põe, sem receios, a sua opinião "no papel".
Em relação a este artigo, não podia concordar mais consigo.
E reforço o que disse acerca da maior intolerância em Portugal em comparação com Macau. Quando me fui embora de Macau, ainda criança, senti bastantes dificuldades para me adaptar às gentes de cá.
"O Leocardo põe, sem receios, a sua opinião no papel"? Só se fosse receio de ser anónimo :)
Sem receio das críticas, sim.
Na verdade, pouco ou nada me importa quem seja o Leocardo na realidade. Mas, de qualquer forma, para quem vive em Macau, ele já deu imensas pistas sobre a sua identidade e, portanto, qualquer pessoa atenta saberá muito bem quem ele é.
Mas reforço que isso é o que menos importa. O que importa para mim são as questões que ele levanta e as opiniões que tem, que suscitam geralmente um debate interessante.
É óbvio que algumas vezes há pessoas que não sabem tolerar uma ideia diferente, e esses sim, são 100% anónimos.
Essas pistas podem ser para despistar, passe o trocadalho. Ou pode ser um alter-ego do Leocas.
O Clarim desta sexta-feira diz que o Leocas é o... Será que acertou?
Ja vi o artigo do clarim,da algumas pistas mas continuamos a nao saber quem é o leocardo,é 1 mistério ehhhh.Mas uma coisa tenho a certeza,o sr leocardo está há em macau há muitos anos e conhece muito bem Macau.
Já que entramos no campo das adivinhações/especulações/suposições:
1) O anónimo das 7:09 deve ser alguém ligado/a ao jornal O Clarim, visto ter dado a ideia, no seu comentário, de que a notícia tinha revelado quem era o Leocardo (o que não se verifica) e fazendo com que todos fôssemos ler o artigo impelidos pela curiosidade. :P raciocínio rebuscado mas até faz algum sentido.
2)Ao anónimo das 8:17
O Leocardo já referiu (penso eu) e está, inclusivamente, explícito no próprio artigo d'O Clarim (através duma citação doutro blog) que o Leocardo não vive em Macau assim há tanto tempo. Pelas pistas, no máximo há 10 anos (que por acaso foi a altura em que eu me vim embora de Macau). Resta dizer que para conhecer bem Macau não é preciso muito tempo, não é verdade? Tudo tão pequenino, toda a gente se conhece e toda a gente sabe o que se passa, sendo esse, aliás, o principal defeito/inconveniente de Macau. Não há direito à privacidade, todo o mundo sabe e comenta as vidas uns dos outros. :s
Cumprimentos
Leocas. Gostei.
Paulo: vivo em Macau há quase 18 anos, o que acontece é que só entrei na blogosfera há três anos e meio.
Cumprimentos.
Ah, pronto. Então a minha suspeita não se verificou.
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