E pronto, chegamos assim ao fim do terceiro dia do Ano Novo Lunar, o que significa que o Cavalo está aí a galopar com toda a pujança, e a serpente foi para Zhuhai fazer parte de uma sopa, ou enfiada num jarro com aguardente em alguma dessas lojas de vinho chinês. Para os menos experientes nestas andanças - e há muitos "marinheiros de primeira viagem" por aí, eu sei - a lógica diz que agora passados os três dias do tal Ano Novo, volta tudo ao normal, e a vida continua. É um pouco como quando desejamos "feliz ano novo" a alguém no dia 2 ou 3 de Janeiro, e dizem-nos "está maluco homem? isso já foi ontem". Como já devem ter lido, ouvido ou ouvisto, este é o único período do ano em que os chineses do continente gozam de férias, muitos vão passá-las à sua cidade natal com os familiares, causando a maior massa migratória do planeta, com 400 ou 500 milhões de pessoas em trânsito, que quais formigas, enchem terminais de autocarro, estações de comboio, aeroportos e estradas. Muitos ocidentais acham isto giríssimo, muito único, e chamam-lhe "cultura". Eu chamo-lhe enfado, e sinto-o quando saio de casa e é impossível circular a pé, de carro ou de trotinete, e o Buda me livre de tentar atravessar a fronteira das Portas do Cerco ou do Porto Exterior por alguma razão.
Os dias de férias que cada um destes chineses "tradicionais" goza depende de cada um, do seu trabalho, da vontade, tanta coisa, e pode ir de uma semana até vinte dias ou um mês. Como estamos naquela espécie de quarentena que se estabeleceu designar por "semana dourada", que é muito mais que uma semana, podemos esperar mais do mesmo até ao próximo Domingo, e lá pelo dia 10 começa a voltar tudo ao normal. Quer dizer, "ao normal" dentro do possível, pois como todos sabemos Macau deixou de ser "normal" há uns bons anos. Eu preferia que os tipos tivessem mais férias, de preferência distribuídas por meses diferentes do ano, sei lá, quando lhes desse jeito? Assim como as pessoas normais do resto do mundo? Pronto, não me acusem de ser insensível com a cultura ou as tradições dos outros. Aliás desconfio mesmo que um dos meus vizinhos suspeita da minha indiferença e desdém pelas tradições milenares dos seus ancestrais, e na sexta-feira pelas sete e meia da manhã rebentou panchões mesmo por baixo da minha janela, como quem me quer converter à força do rugido de cem dragões. Acordei sobressaltado, obviamente, e até me deu uma cãibra na perna esquerda. Enquanto recuperava o fôlego do princípio de traquicárdia de que fui acometido, sentia o inconfundível aroma do enxofre e do salitre a entrarem-me pelo quarto, através da janela. Senti-me um pouco como o Tenente-Coronel Kilgore, de "Apocalypse Now", e pensei: "adoro o cheiro a pólvora logo pela manhã...é o cheiro do Ano Novo Chinês". Mas voltaremos à temática dos panchões um pouco mais à frente.
Tenho evitado nestes dias deslocar-me para longe da minha zona de conforto, da minha "safe zone", e vou-me limitando a fazer o mínimo para sobreviver, enfim, sem grande entusiasmo. Aproveitei as mini-férias (e vou continuar a aproveitar os dois dias que me restam) para escrever, e para descansar - ou pelo menos para tentar - e com excepção daquele episódio desagradável da manhã de sexta-feira, não tenho muitas razões de queixa. Este ano estou especialmente satisfeito com o trabalho das instituições bancárias, pois não tenho encontrado problemas em levantar patacas, quer em notas de 500, quer em notas de 100. A falta de dinheiro nas caixas automáticas chegou a ser em tempos um problema característico destes feriados. Não faço ideia de como tem sido a afluência aos casinos, se os taxistas se estão a portar bem, se é fácil ou difícil reservar uma mesa nos restaurantes onde se realizam os habituais banquetes, se o preço das barbatanas de tubarão e dos pepinos do mar foi inflacionada, nada. Tenho-me remetido a um isolamento sabático. Sei que tem feito calor, e dei por mim a ligar o ar-condicionado duas ou três vezes. O Cavalo que agora chegou pode ser do elemento da madeira, mas chegou "quentinho" da carpintaria.
E agora falando do lado místico da coisa, que é sempre um tema pelo qual os ocidentais se pelam. Não acredito em almas penadas, assombrações, espíritos da sorte ou do infortúnio, e é claro, não sou supersticioso. Não acredito sequer na existência de energias positivas e negativas, mas respeito quem acredita, e censuro quem faz pouco da crença alheia. Sou mesmo capaz de participar de alguma cerimónia colectiva, nem que seja para não levantar ondas e querer ser "diferente", desde que não me sujeite a nada de humilhante, ou que me cause muito transtorno. Mas os chineses, que também não são nenhumas criaturas primitivas que sacrificam virgens ao deus Vulcão ou temem que o Céu lhes caia em cima da cabeça, tomam por esta altura cuidados redobrados com certos aspectos que têm a ver com os bons ou os maus ventos que sopram do além. Não sei até que ponto acreditam realmente nessas crendices, e penso que tem a ver também com a o nível cultural e literário de cada um, mas aqui os chineses aplicam o mesmo princípio de "nuestros hermanos", os espanhóis - não acreditam em bruxas, mas que as há, há.
Quem se interessa realmente por essas coisas, e quer saber o que se deve fazer e o que não se deve fazer por altura do Ano Novo Lunar para evitar andar montado no Cavalo manco do azar, procura saber mais junto dos locais, e fica um pouco baralhado com toda a informação difusa que lhe transmitem. Acho mesmo que algumas pessoas "inventam", se entendem onde quero chegar. Este ano, e apenas por acaso, tropecei num artigo do Yahoo! News intitulado "As 10 principais supertições do Ano Novo Lunar", que vou ter o prazer de partilhar aqui, numa versão adaptada. Para quem teve a paciência de ficar a ler estes cinco parágrafos cheios de "palha", é agora finalmente recompensado. E afinal quais são as dez superstições e tabús deste festival que mais devemos ter em conta, nem que seja apenas para evitar ofender os nativos? Aqui estão:
1)
Limpeza da casa. Deve ser realizada ANTES do Ano Novo Lunar, até à véspera e não no primeiro dia, como alguns sugerem. Dessa forma afasta-se o azar que ficou do ano anterior, e que assentou em forma de poeira, e recebe-se o novo ano com a casa "limpa". Antes da meia-noite do último dia do ano cessante, convém guarder os utensílios de limpeza, quer vassouras, esfregonas, panos ou espanadores num local fechado. Para quem acredita mesmo nestes miasmas do outro mundo, o melhor mesmo é deitá-los fora e comprar uns novos.
2)
Panchões. Voltamos, portanto, ao fascínio da cultura chinesa pelos explosivos. Os estalos produzidos pelos panchões são uma forma de anunciar a chegada do novo ano, e nada como fazer um estardalhaço do caraças para que todos saibam, mas também servem para afastar os "maus espíritos". Compreendo que os chineses não queiram entrar em detalhe sobre este assunto, especialmente com os estrangeiros, mas estes maus espíritos a que se referem é apenas um mau espírito. O que vos vou dizer a seguir é do mais macabro que há, e se tem menos de 18 anos ou sofre de doenças nervosas, insónias, tem episódios de sonambulismo ou incontinência urinária nocturna, algum tipo de psicose, ou anda medicado a anti-depressivos ou hipnóticos, não leia a partir daqui.
(...)
Este é o Nian, ou nian shou (年獸), uma criatura maligna que se assemelha a um híbrido de leão e de dragão, e que habita no topo das montanhas ou no fundo do mar - é por isso que não o vemos. O Nian aparece nesta alura do ano para assustar os humanos, e para devorá-los, também. O seu prato favorito são crianças, curiosamente. Diz a lenda que depois do ataque de um Nian a uma aldeia, os seus habitantes começaram a bater tambores e a rebentar panchões cada vez que suspeitavam que ele se preparava para regressar, ao mesmo tempo que usavam trajes de tom vermelho-vivo. O som estridente e o brilho das cores ofendiam os sentidos do Nian, que a partir daí nunca mais incomodou os aldeãos.
O significado simbólico do Nian tem variado ao longo da história, e com o período de crescimento económico que a China tem atravessado nas últimas três décadas, está actualmente associado à "pobreza". É comum encontrar este personagem nas tradicionais danças do Leão, normalmente encomendadas pelos comerciantes sempre que se inaugura uma loja ou estabelecimento. Assim o Nian dança em frente à loja, rebentam-se panchões e ele foge apavorado. Para quem não sabe do que se trata pode parecer um pouco exótico, mas é apenas uma recriação da lenda. Portanto já sabe: convém ter em casa uns panchões na dispensa, não vá aparecer aí um Nian, levado por algum tufão. Em alternativa, e pelo sim, pelo não, é melhor adquirir uma bazuca!
3)
Linguagem e atitude. Os chineses acreditam que a forma como correr o primeiro dia do ano, assim será o ano inteiro. Assim não é nada recomendável discutir, entrar em conflito, dizer obscenidades, transmitir pensamentos ou ideias negativas, falar de morte, doenças ou contar histórias sobre fantasmas, ou mencionar algo relacionado com os maus espíritos. Nesse dia devem ser todos bonzinhos, fazer votos de prosperidade, desejar saudinha e andar bem disposto (mesmo que lhe doa um dente). Este é um tabú levado muito a sério pelos chineses, e por acaso reparei como nos dias que antecederam o Ano Novo, os meus colegas tornavam-se bastante cautelosos e pouco receptivos a entrar em conflitos ou polémicas, e abstinham-se de fazer comentários depreciativos de qualquer espécie. Se tiver alguém a quem precisa de dizer "das boas", pode sempre aguardar pelo terceiro dia do ano, que é reservado às discussões e quezílias entre amigos, cônjuges e familiares. Para quem é mesmo supersticioso, e o primeiro dia do ano lhe tenha corrido mal, o melhor é esconder-se debaixo da cama até 15 de Fevereiro de 2015, e esperar pelo Ano da Cabra.
4)
Lavar o cabelo. Os chineses têm por hábito nãp lavar o cabelo ou a cabeça no primeiro dia do ano, de modo a não sacudir as energias positivas que chegam da Lua. Portanto da mesma forma que se limpa a casa, a lavagem da cabeça deve-se realizar antes da chegada do ano.
5)
Não usar cor preta. O preto é a cor (ou a ausência da cor, como preferirem) associada com a morte, portanto a evitar no dia da chegada do novo ano. Atenção a este detalhe, ó Carlos Morais José.
6)
Hora de dormir/longevidade. Esta é talvez a superstição mais interessante. Na noite da chegada do novo ano, é suposto toda a gente ir dormir tarde, mesmo as crianças. Existe uma crença que nessa noite, enquanto as crianças estão acordadas estão a a "guardar a vida" dos pais, e portanto quanto mais tarde forem para a cama, mais tempo os pais vivem. Se nesse dia o seu filho ou filha se quiserem ir deitar cedo, se calhar anda um Nian do fundo do mar atrás de si. O melhor é ir comprar uns panchões, nunca se sabe.
7)
Não chorar. Quem chorar no primeiro dia do ano, vai chorar o ano inteiro, e por isso os pais evitam castigar as crianças, mesmo que elas façam algumas travessuras. Mas aqui pode-se dar uma contrasenso; remeto ao ponto anterior por exemplo: e se a criança chorar porque está rabujenta de sono, pois ficou a pé até às cinco da madrugada para que os pais vivam mais? E já agora o ponto nº 3: e se a criança contra histórias de fantasmas, disser palavrões ou desejar que a família toda morra? Questões a levantar ao oráculo mais próximo.
8)
Loiça partida. Não se deve começar o ano com loiça partida, rachada ou lascada, pois isso dá azar. No último dia de cada ano certifique-se da integridade de pratos, travessas, potes, canecas, etc., e se necessário vá às compras.
9)
Cortes. Esta pode apanhar os mais distraídos: dá azar cortar seja o que for durante o período do Ano Novo, pois isto pode-se reflectir na sorte e na fortuna. Torna-se complicado ter isto em mente, pois pode aparecer um pacote de leite que seja necessário abrir cortando uma das pontas, ou uma malha na roupa. O melhor mesmo é não levar esta regra muito à letra.
10)
Vermelho. O vermelho é a cor da sorte, da prosperidade, da fortuna e tudo mais, por razões que já expliquei acima e que têma ver com o tal Nian. Por isso é comum observer o vermelho vivo nas inudmentárias, nas decorações nos envelopes de "lai-si", em tudo o que esteja relacionado com o Festival. Para quem não gosta de vermelho, pode optar pelo amarelo-ouro, que também se aceita, as a regra de ouro é esta: vermelho, bom; preto, mau. Entendidos? Uhn? Carlos Morais José? Ok.
E depois há tudo aquilo que já se sabe: não oferecer livros, que em chinês têm uma sonoridade semelhante ao da palavra "perder", comprar sapatos, pela mesma razão, mas neste caso o som é semelhante a uma interjeição de dor, e uma dica que vos deixo que aprendi por experiência própria: não tocar em alguém que esteja à mesa dp jogo, nem que seja apenas mah-jong. Quanto aos "lai-si", os tais envelopes vermelhos que contêm dinheiro "abençoado" e que se começam a distribuir esta semana, a regra é simples: os casados dão aos solteiros, os ricos dão a toda a gente, e as crianças recebem de todos. Pode dar "lai-si" à vontade, pois como naquela canção dos Beatles, "o amor que você recebe é igual ao amor que você dá". E já que estamos numa de citações na esfera da cultura "pop", lembram-se daquela personagem da série 'Alo 'Alo, a Michelle, que era a chefe da Resistência Francesa? "Escutem com atenção, que eu só vou dizer isto uma vez": KUNG HEI FAT CHOI!
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