terça-feira, 22 de abril de 2014

Um dilema com asas e penas


Foram abatidas oito mil galinhas em Macau este fim-de-semana, depois de ter sido detectado o vírus da gripe aviária, o H7N1, no mercado abastecedor do Patane. Mais prejuízo para os comerciantes de aves no território, com uma quarentena que irá durar três semanas, a segunda este ano. Para os consumidores, tudo na mesma; não se come galinha, come-se "outra coisa", e quem quiser insistir pode sempre optar pelo frango congelado, que como já referi aqui dezenas de vezes, é melhor do que aquele que encontramos nos mercados - importado do Brasil, inspecionado, hermeticamente empacotado, uma garantia de qualidade, e mais tenrinho, ainda por cima. Estranhamente os locais preferem conhecer pessoalmente a galinha que vão comer, olhando o bicho nos olhos, soprando-lhe o rabiosque penoso, quem sabe para ver se ela pula e diz "ui!", que galinha com sentimento é sempre mais saborosa. O problema é mesmo da carne, dura, do tipo pastilha elástica, cheia de gorduras amarelas, carne que não se solta dos ossos, uma tragédia. Agora "mouah", aguardem pela nova geração.

Mas esta é uma realidade que o consumidor macaense não consegue aceitar; pouco lhes importa que a galinha que agora lhes chegou ao prato tenha passeado no calçadão em Copacabana ostentando um fio dental dos mais "sexy" que há, que tenha sambado na avenida este último Carnaval, e como não se esqueceu da "camisinha" respira saúde por todos os poros, ou que tenha crescido entre o xaxado nordestino, as matas do pantanal, a floresta virgem da Amazónia, e que no fim de tudo isto tenha sido "morta de acordo com os rituais islâmicos". O que eles querem mesmo é a galinha dos pagodes, a puritana pequinense que resiste ao mais charmoso dos patos à Pequim, a galinhola xangainense, de sombreiro de papelão e cabaia apertada, da "mui-mui" do interior, desde a picante de Sichuan à mandona de Fujian, ou algo exótico, como a nortenha de Heilongjian ou algo mais além, para as bandas da Mongólia Interior, a galinha que veio do frio. Tudo menos a galinácia de Xinjiang, pois pode vir equipada com um detonador na moela - nunca se sabe.

O próprio Chefe do Executivo dá o braço a torcer - e é um braço bem reconchudinho, aquele: a malta quer é galinha amarela, de crista encolhida da cozedura a vapor, de olhos cerrados, cadavéricos, a ave na íntegra, da cabeça ao rabito, para que fique claro que não foi interrompida, uma "Girl, Interrupted", só que sem Angelina Jolie e aplicada à avicultura. Com cabeça e rabo, mesmo que não se consumam nenhum destes; é só para poder dizer: "viste como te comemos todinha? agora bufa, filha, bufa...". E a recordação vai estar com eles onde forem, citando aquela velha letra da Lambada, dos Kaoma. Horas depois de se ter comido aquela galinha chinesa, fibrosa, teimosa, uma verdadeira patriota, ainda se está a retirar dos dentes os seus restos mortais (de preferência com a unhaca do dedo mindinho). Isto para os que não optam antes por mastigar, mastigar e mastigar mais ainda, e depois de processada na boca a primeira fase da digestão, regorgitar o quimo num guardanapo, após estar absorvida a essência da galinha, os seus nutrientes, na forma de uma espécie de quimo, de bolo alimentar.

Mas pronto, há quem agora de sujeite a comer galinha congelada, em vez de "comer galinha viva", como disse uma senhora no Telejornal de hoje. Realmente isso de "comer galinha viva" implica uma certa ginástica, de forma a conseguir chegar à carne através das penas, e ainda por cima com a bicha a mexer-se, a dar com as patas e a bater as asas. E deve ser uma boa porcaria, ali toda cheia de terra e vermes e sabe-se lá se coberta da "alegria" do seu marido, o sr. galo, que no dia antes lhe foi dar uma extrema unção antes de ir servir de alimento aos humanos. Mas há ainda quem desiludido com tudo isto prefira abster-se de comer frango, pois ouviram dizer por aí que "comer aves congeladas faz mal à saúde". Estes são de Olhão e jogam no Boavista. São os mesmos que esgotaram o sal dos supermercados quando se deu o acidente nuclear de Fukushima, porque "o sal neutraliza a radiação", e o vinagre aquando da crise da SRAS, "porque mata o vírus". Estes é que a sabem toda, pá. Qual fundamentação científica qual carapuça. Perguntem lá à vossa ciência o que aconteceu ao avião da Malaysian Airlines? Ah bem...

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