sábado, 2 de fevereiro de 2013

O rei frango


Já falei aqui de batatas, carne de porco e leite, e agora chegou a hora de falar da galinha, esse nobre animal que só serve para duas coisas: dar ovos e ser comido. Existe uma confusão entre “galinha” e “frango” que ainda não entendi muito bem. Tenho a noção que uma galinha é uma fêmea adulta, enquanto frango designa um galináceo jovem de ambos os sexos. O que lança a confusão é que muitas vezes o mesmo animal entra ora num “caril de galinha”, ora num “frango assado”. É raro ouvir dizer “caril de frango” ou “galinha assada”. Não que tenha muita importância, pois com a excepção do detalhe dos ovos, ambos são deliciosos cozinhados de qualquer jeito.

A etimologia da palavra é curiosa, e as designações de “galinha” e “frango” vão além da limitada esfera das aves de capoeira. Na língua chinesa “galinha” pode servir para designar uma prostituta; pessoalmente considero que existem outros animais, mesmo os de quinta, mais sexualmente atraentes que a galinha. Em Portugal diz-se de alguém muito tagarela e falador que “parece uma galinha”. De entre todas as aves, porque não um papagaio? Uma galinha não fala... Em gíria futebolística, diz-se quando um guarda-redes permite um golo facilmente defensável que “deu um frango”, e quando esses erros são frequentes, o próprio guardião é um “frango”. Existem no reino animal muitas espécies que dariam um guarda-redes pior que um frango. Uma minhoca, só para citar um deles.

A galinha (fiquemos por esta designação generalista) é uma ave, e como todas as restantes aves comestíveis, é considerada uma “carne branca”, e portanto mais saudável, de fácil digestão. A galinha cozinha-se, come-se, aproveita-se a proteína e o resto é transformado em cócó. A carne bovina e suína têm o senão de emparedar-se nos intestinos e por isso levam com o pouco recomendável epíteto de “carne vermelha”. Ao contrário de outras aves, que migram, nidificam e adoptam comportamentos remotamente sociáveis, as galinhas são um animal estúpido. A minha avó criava galinhas (além de coelhos e patos) no seu quintal, e recordo-me da inactividade mental das bichas, que passavam o dia a bicar o chão, olhando surpreendidas para qualquer coisa de espantoso que não estava lá. Uma galinha não serve de companhia, não interessa nem ao Menino Jesus. Não surpreende que ninguém se tenha lembrado de decorar o Presépio com uma galinha. Se Marx, Nietzsche e outros ateus fossem galinhas, tinham menos uma razão para acreditar em Deus.

Em Macau a carne de galinha rivaliza com a carne de porco como a mais consumida. No Islão a galinha é muito apreciada, já sem a competição do porco e beneficiando da escassez de vacas. Na Índia, onde a vaca é sagrada e o porco não é popular, a galinha é líder. Nestas sociedades “esquisitas” a ave tem apenas a competição do carneiro, o que não chega a ameaçar o seu cacarejante império. Curiosamente o método islâmico de matar as galinhas e livrá-las desse sofrimento que é a existência é o mais eficaz e aceite: depena-se o pescoço, corta-se a jugular e deixa-se sangrar até à morte. Por vezes a galinha resiste e escapa à sangria, e corre com o pescoço pendurado por um tendão, tropeçando a cada passo fazendo uma figura ainda mais triste que o habitual. Qual a alternativa a este método? Não se lhe pode dar um tiro, e espancá-la ia prejudicar a qualidade da carne. Afogá-la também não me parece uma forma muito humana. Sugestões?

Voltando a Macau, não há banquete que se preze que não inclua a galinha. A tradição manda que se sirva a ave cozida a vapor ou frita mas inteira, cabeça e rabo incluídos. Ver uma galinha cozinhada com a cabeça não é muito agradável, pois para nós esta é uma das primeiras partes que vai parar ao lixo aquando do processamento. Só que os nossos amigos chineses correspondem ao que se espera deles, e comem quase tudo, talvez com a excepção das penas. A cabeça também não se come, apesar de dizer presente à mesa, mas comem-se os rins e os intestinos, os orgãos excrementários que também rejeitamos. Quanto à carne propriamente dita, eu pessoalmente prefiro o peito, mas de um modo geral os chineses escolhem as pernas. Os consumidores locais optam por galinhas frescas, compradas no mercado e de preferência mortas à sua frente. Eu não me consigo adaptar a esta galinha local, que é rija como os cornos, e aqui em casa dou preferência à galinha congelada brasileira, uma garantia de qualidade.

Facto: os brasileiros não comem pés de galinha. Ora aqui está um gosto que tantos portugueses como chineses e outros povos têm em comum. O Brasil é o maior exportador mundial de carne de frango, e como não comem os pés, o mundo pode ficar descansado quanto à abundância deste bem. A minha avó costumava juntar os pés na canja, e aqui na Ásia estes chegam a desempenhar um papel principal em muitos pratos. Os chineses fazem “min” com pés de galinha, bem como outro prato com sutate e amendoins que é normalmente servido no “yum cha”. Os tailandeses inventaram um prato fabuloso, desossando as patas de galinha e temperando-as com vinagre, malagueta e coentros. Todos já provámos e aprovámos. Os pés de galinha são até bastante comestíveis, ricos em colagéneo, e em suma, os brasileiros não sabem o que perdem. É verdade que a galinha usa os pés para remexer a porcaria, argumento válido, mas depois de lavados, desunhados e retiradas as peles, tornam-se uma parte apetecível da ave.

De resto existem mil e um pratos de galinha, um animal muito útil depois de depenado e depleto das miudezas. O nosso clássico frango no churrasco, uma alternativa prática, barata e deliciosa para quem não sabe o que fazer para o jantar é quase um símbolo nacional. Muitas cidades portuguesas têm uma churrascaria com o nome “Rei dos Frangos”. Em mais nenhuma monarquia a coroa foi tão disputada. Alegadamente este pitéu teve a sua origem na pequena localidade algarvia da Guia, concelho de Albufeira, e espalhou-se por todo o país. Talvez apenas o saudoso prof. José Hermano Saraiva nos pudesse dar umas luzes sobre a verdadeira origem do frango no churrasco. Seja como for, basta muitas vezes atravessar a rua, assistir ao bailado de frangos a rodar no assador e encomendar um deles. Há que goste dele cortado ao meio, em quatro partes, em pedaços mais pequenos, besuntados ou não com piri-piri, depende do gosto. É um elemento indissociável da nossa cultura.

A galinha tem uma carne que não sendo muito rija, adapta-se facilmente a todos os gostos, liga bem com qualquer tempero e adapta-se a qualquer modalidade de cozedura. Assim temos o frango frito, que tem na multinacional americana KFC o seu expoente máximo, o frango grelhado, o frango assado, o frango cozido, que é servido aos bebés e aos acamados, a galinha cozida a vapor com gengibre e cebolinho, outra especialidade oriental, ou a cabidela, esse prato tétrico que implica que a ave seja cozinhada no seu próprio sangue, como num ritual de bruxaria destinado a evocar os espíritos do mal. Os franceses têm o “coq au vin”, uma forma de cozinhar o galo, o marido da galinha, “ao vinho”. Na Índia, um dos tais sítios onde a galinha é imperial, a imaginação é fértil. Além do já referido caril, que ultrapassou as fronteiras daquele país e foi adaptado aos mais variados ambientes, têm ainda a massala, o vindaloo, a korma e muitos outros, dependendo da região da imensa União.

A forma mais deliciosa que os nossos amigos indianos arranjaram de cozinhar a galinha foi o tandoori, assada numa espécie de bidão de metal com um molho vermelho, que a torna ao mesmo tempo sequinha e consistente, bem como deliciosamente especial.
Não podia terminar esta dissertação sem referir os meus pratos favoritos feitos com galinha, que são dois. O primeiro é o Frango na Púcara, originário de Alcobaça, cozinhado num simpático pote de barro, com chouriço, presunto, tomate, cebola, cenoura, manteiga, vinho do porto , aguardente, mostarda, alho, sal, louro, sal e pimenta – com isto tudo só podia ter um resultado delicioso. O outro é a Galinha à Cafreal, um prato moçambicano de frango grelhado com limão, azeite, pimenta-do-reino e piri-piri, tão picante como sensual. Na cozinha macaense não são despeciendos a “Galinha à Portuguesa”, cozinhada com chouriço, caril e coco ralado, ou o “Mo lo kai fan”, ou galinha dos mouros, uma perna inteira frita com molho de caril servida com arroz de açafrão com passas. Até a galinha seca entra no tradicional “tacho”, a versão macaense do nosso Cozido à Portuguesa.

Temos aqui uma ave, deliciosa como as outras aves mas menos dotada de inteligência, que existe no nosso planeta em número suficiente que justifique a sua massiva matança diária. O criador, se o há, não teria outro propósito ao colocar a galinha no mundo a não ser para nos encher a barriguinha sem que a chacina não nos pese muito na consciência: se custa muito matar uma vaca, que tem olhos ternurentos, ou um porco, que grunhe de dor, não custa nada torcer o pescoço a uma galinha e depois chamá-la de almoço. É só usar a imaginação.

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