segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Ai o carrinho...


Quem vive na zona antiga da cidade depara certamente com aqueles indivíduos que conduzem um carrinho onde vão recolhendo cartão dos caixotes do lixo ou dos supermercados. Um mundo de gente à parte, com uma identidade muito própria, e a estranha convicção de que estão a fazer um grande favor à humanidade com este acto de recoleção primária. Não requer licença, não segue códigos de ética ou quaisquer outros (nem respeita o da estrada) e é quase sempre uma actividade lucrativa. O que não falta por aí é cartão deitado fora aos molhos, mas este é um negócio competitivo, e o sucesso depende a argúcia, da persistência e da oportunidade, e por vezes até da inteligência. É um misto de bacará e xadrez, só que praticado debaixo dos rigores do clima e com a condicionante de andar a meter as mãos no lixo dos outros. É só para os mais bravos.

Na minha terra quem andava “ao cartão” eram normalmente indivíduos da ralé, marginais ou alcoólicos, que juntavam umas caixas espalmadas e molhadas no meio, para acrescentar peso. Vendiam o cartão no ferro velho e usavam o produto do seu esforço para alimentar os vícios, uma imagem infeliz, com paralelo apenas nos arrumadores de carros, outro grupo que habita pelas sarjetas das ruas da amargura. Não sei se a recente austeridade praticada em Portugal levou cidadãos da classe média e alta a dedicar-se à apanha do cartão para equilibrar o orçamento, mas duvido. Em Macau, onde tudo é mais “zen”, andar a remexer nos imundos caixotes do lixo públicos não implica pobreza ou desespero. Requer talento e experiência, tempo livre e equipamento adequado. É, em termos técnicos, uma versão local de “empreendedorismo”.

Talvez muita gente não saiba isto, mas em Macau o desemprego e a inaptidão são devidamente subsidiados, e nenhum residente tem realmente a necessidade de andar a enfiar a cabeça nos insalúbres caixotes para sobreviver. Muitos destes garimpeiros urbanos são gente reformada, sem uma actividade com que preencham o tempo livre (que é todo), e que aproveita os dias sempre iguais e desocupados para ganhar uns cobres, indeferente aos ditames da higiene, e com pouco respeito pelos princípios básicos da dignidade. É preciso um cáracter forte para não se importar com o que os outros pensam. Espreitar para dentro de um cesto à procura de uma lata vazia ou penetrar de corpo inteiro dentro de um dos caixotes azuis não é javardice; é negócio.

Os cidadãos idosos e não só que andam por aí a conduzir os carrinhos cheios de material reciclável pelos passeios já por si exíguos, e por vezes até no meio da estrada exigem o devido respeito. O melhor mesmo é que os outros saiam do caminho, e que não reclamem desta árdua tarefa ou do incómodo que provoca ao comum peão. Não vêem que eles vão ali a fazer força a empurrar aquela merda? Já não há respeito pelo trabalho braçal? Se for atingido por um desses carrinhos de metal e ficar com uma concussão no fêmur ou um tornozelo esfolado, resista a tentação de mandar tudo pelos ares. Afinal estão ali umas 20 ou 30 patacas de cada vez! É dinheiro que custou a ganhar. Para quando uma associação de gajos que andam “ao cartão”? Já está na hora de se fazer ouvir a sua voz.

PS: Este é o post nº 8000 do Bairro do Oriente, Yupi!

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