domingo, 20 de janeiro de 2013

Controlo de qualidade


Há cinco anos estive em Cantão por alguns dias numa acção de formação para Funcionários Públicos, onde nos foi dado a conhecer um pouco do “primeiro sistema”, que afinal não é nenhum papão, como tantos pensam. Uma das actividades organizadas pelos SAFP foi um pequeno debate de duas horas com “colegas” nossos de Cantão, com quem trocámos alguns pontos de vista. Como estes só falavam Mandarim e existiam no grupo vários portugueses entre uma maioria de macaenses, o contacto era estabelecido com a ajuda de tradutores-intérpretes profissionais, que tinham viajado connosco.

Não me agrada a ideia de discutir com pessoas vindas de uma realidade tão diferente, apesar de respeitar essa diferença, ainda por cima com o óbice de ter a mensagem transmitida por terceiros, mas não resisti a propôr um tema. Perguntei ao painel de funcionários da China, constituído por quatro simpáticos quadros superiores, o que pensavam da questão do controlo de qualidade, um particular em que a China ainda tem imenso trabalho a fazer. A resposta foi-me dada por um juíz do Tribunal do Mar (que honra), que me disse qualquer coisa como: “todos queremos coisas boas, todos queremos produtos de marca, mas a prioridade é encher a barriga, e só depois pensar nisso”. Não sei se ficou algo perdido na tradução, mas os meus receios confirmaram-se: era uma discussão estéril. Curiosamente o escândalo do leite com melamina deu-se alguns meses depois desta viagem a Cantão. Tivesse lá ido por essa altura e se calhar o meretíssimo juíz ia perceber melhor a minha pergunta, que eu colocaria usando esse exemplo concreto.

Apesar do espectacular desenvolvimento económico dos últimos anos na China, que levou a grandes progressos em áreas como a ciência e a tecnologia, incluíndo a de ponta, o país ainda sofre com as deficiências no controlo de qualidade. Muita da tecnologia “made in China” que se compra um pouco por todo o mundo tem bastante aceitação e é confiável, mas isso deve-se sobretudo à supervisão dos especialistas das várias multinacionais que escolheram o continente graças ao convidativo preço da mão-de-obra para fabricarem os seus produtos. Mas enquanto o que se produz para a exportação tem quase sempre qualidade, o caso muda de figura quando está em causa o mercado interno, onde muitos consumidores não têm o poderio económico para adquirir bens de qualidade inquestionável.

O problema torna-se mais grave quando se trata de produtos alimentares. Não será uma tragédia que alguém compre um rádio que deixe de funcionar passados dois dias, ou que use um casaco onde se lê “Abibas” em vez de Adidas, mas o que entra na cadeia alimentar é uma questão de saúde pública. Não surpreende que agora se tenha descoberto agora que algumas cadeias de fast-food, ainda por cima bem conhecidas, tenham usado carne de galinhas doentes nos seus restaurantes. E porquê? Porque sai mais barato, e com isso o lucro é maior. Há mais alguma razão para que isto aconteça na China? A famosa imunidade dos chineses, que bebem a água da rede sem problemas enquanto um estrangeiro se desfaz em diarreia por causa de um cubo de gelo no whiskey, não dá para tudo. Ninguém é de ferro. Se comer um hamburguer feito com carne de um animal doente pode não matar imediatamente ou provocar uma indisposição temporária, certamente que o consumo frequente trará consequências graves a médio ou longo prazo. Quando Nietzsche escreveu “o que não me mata torna-me mais forte”, não se referia aos hamburgueres do McDonald’s ou do KFC.

Além do já referido escândalo da melamina no leite, não faltam outros casos de negligência com produtos destinados ao consumo humano na China. São os frutos impregnados de pesticidas, as sementes e frutos secos contaminados com químicos industriais que lhes conferem um melhor aspecto, o óleo produzido com carcaças de porcos putrefactos ou reciclado de esgotos públicos, um incontável número de casos de utilização de hormonas e outras substâncias tóxicas na produção de carne e vegetais, leite em pó, sumos, álcool e outras bebidas falsificadas, uma lista de horrores que parece não ter fim. Só porque alguém não tem a capacidade de adquirir produtos de consumo certificados e com uma garantia de qualidade acima de qualquer suspeita, não significa que se arrisque a morrer porque decidiu jantar nesse dia.

A própria dimensão do país torna o problema difícil de resolver. Não se pode esperar que 1300 milhões de pessoas tomem subitamente a consciência do valor de uma vida humana, ou que se elimine a corrupção com um passe de mágica. Ainda existe uma mentalidade do “salve-se quem puder”, e muitos ainda consideram uma boa ideia obter lucro à custa da vida ou da integridade física alheia, mesmo conscientes das consequências de que podem vir a sofrer caso sejam apanhados no crime de colocar em risco a saúde pública. É típico do carácter de “jogador” do povo chinês, que conhecemos tão bem, e que leva a pensar que se calhar vale a pena enriquecer, mesmo que o fracasso signifique a prisão, a ruína ou em última instância, um balázio na nuca. Às vezes o dinheiro turva a consciência e aniquila a moral, e a sede de lucro nunca é compatível com a reflexão profunda. Era algum dos filósofos que estudámos ao mesmo tempo um milionário?

Queremos que aconteçam cada vez menos destes casos, e penso que o Governo Central está atento ao problema, e que se estão a dar passos decisivos no combate a este defeito típico de uma economia de mercado ainda jovem. O que nunca pode acontecer é garantir a qualidade e reduzir as suspeitas sem uma aposta definitiva no controlo de qualidade – é uma proposta interessante para uma carreira com futuro no continente, e exige-se que a ética seja uma condição indispensável da formação. É um aspecto em que se deve investir sem olhar a esforços e a custos, pois é um investimento com um retorno garantido.

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