quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Que bolos são estes, pá?


Do que tenho mesmo saudades de Portugal é da nossa riquíssima doçaria e pastelaria. Enquanto lá vivi não dava muita importância a esse detalhe, e pode-se dizer que é uma daquelas coisas de que só sentimos falta quando estão longe. Quando passo algumas semanas em Portugal aproveito para recuperar o tempo que fiquei longe dos rins, dos babás com rum, das duchaises, das parras, dos jesuítas e sobretudo dos meus favoritos: os palmiers cobertos, com a sua crosta de açucar cristalizado que esconde o doce de ovo que se entranha pelo folhado e com ele se confunde.

As saudades chegam a ser tantas que nem desprezo alguma da pastelaria que as imensas opções de que dispunha me faziam relegar para segundo plano. Já me contentava se em Macau houvessem queques, parras, pirâmides, patas-de-veado, guardanapos, caracóis ou bolos de arroz dignos desse nome. Sempre que vou a Portugal, não descanso enquanto não degusto pelo menos uma vez delícias mais difíceis de encontrar e que fazem parte do meu imaginário infantil: as queijadas de amêndoa, as tigeladas, o toucinho do céu ou o bolo de chocolate com nozes.

Em Macau a pastelaria portuguesa chegou a ser um negócio bastante rentável. Pouco depois de ter chegado, em 1993, abriu no Largo do Senado o “Bolo de Arroz”, no sítio onde se encontra actualmente o “Vong Chi Kei”, e que quase imediatamente se mudou para a Travessa de S. Domingos, onde é hoje a “Toscana” do Oseo, e por lá ficou alguns anos. Quando o “Bolo de Arroz” fechou, abriu mesmo em frente “O Barril”, e perto do antigo Liceu (actual Instituto Politécnico) ficava o “Papatudo”, tudo locais onde se podia apreciar pastelaria de matriz portuguesa, todos propriedade de um conhecido casal português que mais tarde abandonou o negócio da restauração pela porta pequena. De matriz portuguesa sim, mas alguns furos abaixo da original. Mesmo os cafés agora existentes, como a “Caravela” ou o “Ou Mun”, oferecerem apenas o “gostinho” da imitação. É difícil fazer melhor com os ingredientes disponíveis deste lado do mundo, e é irrealista pensar em importar farinha, ovos, amêndoas, açucar e tudo mais de Portugal. Impossível não é, mas depois seria preciso pagar 100 patacas por uma Bola de Berlim com creme para justificar o investimento.

Apesar das distâncias que tornam impossível a concretização de uma pastelaria ao nível da lisboeta “A Suíça”, algumas ideias fizeram escola e foram adaptadas ao gosto local. Um bom exemplo disso são as “Portuguese egg tarts”, uma imitação dos pastéis de nata portugueses, mas que ficam a milhas dos nossos pastéis de Belém. A história destas “egg tarts” é curiosa. Nos anos 80 o nosso conhecido Chefe Silva trabalhou durante algum tempo no Hotel Hyatt, e teve dois alunos que fizeram história no ramo da restauração do território. Um deles foi o Afonso, da Rua Central, e outro foi o inglês Andrew Stow. Este último aprendeu a receita dos pastéis de nata, combinou elementos da “custard pie” inglesa e criou esta versão local, que é actualmente conhecida em toda a Ásia e produzida noutras paragens do continente. Depois da morte do Sr. Stow, o monopólio das “egg tarts” ficou repartido por duas lojas: uma na Vila de Coloane, explorada pela sua irmã, e outra perto do centro da peninsula de Macau, propriedade da sua viúva Margaret, que está podre de rica graças ao sucesso destes pastéis de nata a fingir. Outras lojas produzem “egg tarts” semelhantes, mas as da Margaret são uma referência, procurada por turistas de Hong Kong que chegam a fazer filas intermináveis à porta do seu estabelecimento.

Existe em alguns hotéis alguma variedade decente de pastelaria, que não sendo tão boa como a portuguesa, dá pelo menos para animar um chá das quatro. Exemplo disso é o Hotel Grand Lapa (antigo Mandarim), na Avenida da Amizade, que conta com os serviços de um pasteleiro francês que consegue fazer coisas muito boas com o pouco que tem para trabalhar. Quando vou ali ao buffet guardo sempre uma parte considerável do estômago para as sobremesas. A pastelaria Lafayette, com uma loja no New Yaohan e outra no velhinho Hotel Lisboa também saem aprovados desta prova de sabor do gosto ocidental, apesar de uma certa tendência para se abuser da decoração com fruta fresca (as metades de morangos que figuram nestes bolos são uma merda). Quem já foi tomar um “high-tea” à pousada de San’tiago (o que recomendo), ficará encantado com a beleza do local e com a magnífica vista, mas não tanto com os medíocres bolinhos que são servidos.

A pastelaria local é completamente diferente da nossa, e é difícil encontrar alguma semelhança que a redima. Basta recordar que os chineses consideram os nossos bolos “muito doces”. Não sei o que muito mais se pode esperar de um bolo a não ser que seja doce, mas a variedade oferecida pelas padarias locais inclui bolos com cores, formas e cremes que nos causam estranheza. A padaria Maxim’s vende um palmier estaladiço e delicioso, e croissants que merecem uma nota positiva, mas pouco mais que isso. Tenho um episódio trágico-cómico para contar: a primeira vez que entrei numa padaria Maxim’s encontrei um bolo que era em tudo semelhante às nossas Bolas de Berlim. Dei-lhe uma decidida dentada, e lá dentro deparei com um creme roxo, que era doce de feijão vermelho. Bolas de Berlim com…feijão. Se estão a ler isto aí em Portugal já devem estar a torcer o nariz.

Nestas padarias existe uma tendência bizarra para misturar os doces com os salgados, e é comum procurar os bolos entre as sandes de costeleta de porco ou salsicha enfiadas numa espécie de pão-de-leite, ou pastéis de massa folhada com recheio de caril de vaca e de porco. As concorrentes da tal Maxim’s, a New Mario, St. Honore’s, Coffee Free e afins têm uma oferta que simplesmente não satisfaz o nosso exigente paladar português. Por alguma razão que desconheço, o conceito local de bolo de aniversário passa por uma torta redonda cheia de creme branco e recheada com fruta e gelatina. O Chefe Silva devia ter ficado mais tempo e angariado mais discípulos.

Mas o que fazer? Estamos aqui a 15 mil quilómetros dos bolos que nos enchem as medidas, e não podemos esperar muito mais. Há quem se tenha adaptado à pastelaria local, mas isso é algo que não consigo, por mais tentativas que faça. Já cheguei mesmo a desistir da produção local da pastelaria lusitana, que além de mais cara, não lhe chega a fazer justiça. Resta-me esperar pela próxima vez que for a Portugal, e ficar novamente babado ao balcão de um café, escolhendo bolos, tortas e pastéis que comerei em jejum em substituição do almoço. Sim, podem aguardar a minha vingança, que será terrível.

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