quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

Direito ao deserto


Há alguns dias li na coluna que o meu colega e amigo José Rocha Dinis assina na última página do JTM um apelo ao fim dessa mania que algumas pessoas têm de considerar Macau um “deserto cultural”. Gostava de poder concordar com JRD, mas infelizmente não consigo. Uma coisa é aquilo que gostávamos que Macau fosse (ou não fosse), outra coisa é a realidade, aquilo que Macau é. E Macau é um deserto cultural. Não um deserto no sentido de que temos areia e cactos, apesar de não faltarem “cowboys” e até uma quantidade respeitável de abutres, mas um deserto no sentido da aridez em termos de oferta cultural. O que existe é pouco, mal feito, mal pensado e sem qualidade, até porque não existe um critério ou sequer um grau de exigência que justifique um investimento na cultura.

Começemos pelo último ponto. Em Macau a esmagadora maioria da população não tem cultura geral, não tem sensibilidade artística e está-se nas tintas para tudo o que não lhes diga directamente respeito, especialmente se isso significar ganhos financeiros. A única “arte” que esta gente conhece são as notas, moedas e selos comemorativos que se adquirem sasonalmente nos bancos ou nos correios, que podem ser revendidos com lucro a colecionadores e outros especuladores (a especulação é já em si uma “arte”). Muitos revendem as notas dos dragões e das serpentes sem sequer olharem uma única vez para o detalhe gráfico ou sem se importarem com a estética da nota. Isso enche a barriga e engorda a conta bancária? Não? Ah, bem…

É de facto frustrante onde um personagem como Pan Nga Koi é mais conhecido que Picasso. Fosse feito um inquérito à população sobre quem foi Leonardo da Vinci, mesmo usando o nome chinês do génio renascentista italiano, e os resultados seriam vergonhosos – e é por isso que não se fazem este tipo de inquéritos à cultura geral da população local: para evitar embaraços. E não se pense que o problema é puramente étnico. No outro dia ouvi um aluno da Escola Portuguesa afirmar que Galileu Galilei foi “o maior filósofo grego de sempre”. A exposição mais mediática dos últimos anos foi a dos cadáveres plastinados no Venetian, a tal cuja origem dos corpos ficou por explicar. Para ter sucesso, é preciso juntar à componente artística o elemento de choque, da polémica, uma controvérsia qualquer que dê a conhecer o evento e aguçe a curiosidade. Uma exposição que trouxesse ao território os frescos originais de Van Gogh não teria tanta adesão – a não ser que se divulgasse o valor de mercado das obras, claro.

Os artistas locais, que até são cada vez mais e com mais qualidade, estão perfeitamente conscientes que precisam de acumular a sua vocação com outra actividade que lhes garanta sustento. Não dá para viver apenas da arte, e seja essa a intenção, não lhes resta senão andar a pedinchar subsídios ou procurar outras paragens onde as pessoas comprem arte e paguem bem por ela. Neste particular gostava de destacar a recém-criada Fundação Rui Cunha, que tem na Av. Praia Grande uma galeria onde dá a conhecer o trabalho de artistas plásticos de Macau. Tiro-lhes o chapéu. Não é difícil imaginar o choque de uma família média do território quando um dos seus filhos lhe diz que quer ser artista, que é ainda sinónimo de “vagabundo”. Se o jovem tem mesmo aptidão para o desenho, encoraja-se que se torne arquitecto, desenhador gráfico ou qualquer coisa que dê dinheiro.

As restantes “artes performativas” (detesto esta expressão) têm uma expressão insignificante, talvez com excepção da ópera chinesa, que parece atraír a população idosa da mesma forma que o flautista de Hamlin atraía ratos. O teatro é todo amador, e surpresa ou talvez não, não existe uma companhia de teatro. Nem de bailado. Existe uma Orquestra de Macau, sim senhor, composta por assalariados do Instituto Cultural com um estatuto de semi-funcionários públicos e que há poucos anos esteve no centro de uma polémica que prova que nestas coisas da arte e da cultura ainda se metem os pés pelas mãos. Os Doçi Papiáçam di Macau, grupo de teatro em patuá, debate-se actualmente com dificuldades para encontrar um lugar onde possa realizar os seus ensaios, sem apoio das entidades públicas que se escudam em tecnicalidades para não disponibilizar um canto qualquer para este efeito. É triste mas é verdade. Quando é para complicar, os regulamentos e leis são escrupulosamente cumpridos.

A vertente “cultural” da responsabilidade do Executivo resume-se aos anuais Festival de Artes e ao Festival de Música, e mesmo nestes a aquisição de bilhetes para os espectáculos é um pretexto para mais especulação. Não surpreende que o tal investimento nas indústrias criativas não passe do papel. Para quê andar para a frente com um projecto que é apenas do interesse de uma meia dúzia de iluminados com um visão mais larga do mundo? Pensam que toda a gente visitou o Louvre como V. Exas.? Sabem o que há em fartura onde faltam indústrias criativas? Agências de imobiliário. Isso é que faz muita falta, que essa coisa das artes é muito engraçada mas não tem lugar numa sociedade orientada para o lucro.

Portanto tenho pena, mas sim, Macau é um deserto cultural. E falando a sério, era mesmo interessante fazer um levantamento sobre o nível de cultura da população, e uma vez identificado o problema, começar a atacá-lo na sua origem: nas escolas, onde se formam gerações atrás de gerações de gente mesquinha, que é preparada somente com a finalidade de competir neste mundo pequeno do jogo, da especulação, dos negócios sujos. Pouco importa saber o que originou a Primeira Grande Guerra, a capital da Albânia, quem foi Shakespeare, quem enunciou as leis da gravidade ou quem inventou a lâmpada. Saber isto “não dá dinheiro a ninguém”.

1 comentário:

Anónimo disse...

Subscrevo completamente.
É confrangedor o nível de interesse cultural, artístico ou literário demonstrado pela população local.

Um exemplo. É perfeitamente comum encontrar jovens a ler livros nos cafés, jardins, autocarros e metro em cidades da Ásia como Hong Kong, Singapura, Tóquio, Seúl, Taipei (cidade onde aliás o gosto pela leitura é generalizado e encontram-se livrarias por todo o lado).

Até em cidades como Banguecoque ou Manila é comum encontrar jovens a ler em locais públicos.

Pois confesso que nos mais de 10 anos que vivência nesta cidade, praticamente não me lembro de alguma vez ter visto um jovem local a ler um livro onde quer que fosse.

E não estou a exagerar, para além de às vezes encontrar um ou outro a ver banda desenhada, a maior parte desta gente passa o tempo agarrada aos telemóveis e pouco mais. Nem jornais vejo muitos jovens a ler.

A triste realidade é que não estão interessados em mais nada para além do material e do imediato. Tudo o resto é considerado uma perda de tempo inútil. E quando os próprios pais na maior parte dos casos pensam exactamente da mesma maneira, então não há mesmo nada a fazer...