sábado, 5 de janeiro de 2013

A cultura da telenovela


Quem tem a idade suficiente para se lembrar com clareza dos anos 80 lembra-se certamente daquilo que chegou a ser conhecido por “cultura da telenovela”. Durante vários anos, quando os canais de TV se resumiam à RTP1 e RTP2, a hora depois do Telejornal das oito era “sagrada”. O país chegava a parar para assistir às telenovelas que chegavam do outro lado do Atlântico, do Brasil. A moda foi inaugurada com “Gabriela, cravo e canela”, que consagrou a então muito sensual Sónia Braga, e a partir daí deu-se uma mudança radical nos hábitos televisivos. O serão passou a ser ocupado na sua boa parte em frente ao pequeno ecrã, e no caso das telenovelas com maior audiência, as ruas chegavam a ficar desertas entre as 8:30 e as 9:30.

Havia quem resistisse a esta moda, mas era uma minoria tão insignificante que não entrava para a estatística. Quem se atrevesse a criticar a dependência nacional da novela era visto como um tipo “esquisito”, ou um estraga-prazeres. A crítica que mais se ouvia prendia-se com o facto das telenovelas serem uma forma de entretenimento oco, de consumo imediato e onde “não se aprendia nada”. Outro problema era a língua, pois a exposição demorada às “radiações” do português com sotaque tinha o seu impacto sobre as pessoas mais influenciáveis, especialmente os jovens. A teoria não era de todo descabida, mas se era isto que o povo queria e gostava, e ninguém imaginava sequer outra alternativa para ocupar o “prime-time” televisivo. Os críticos eram deixados a falar para a parede.

Realmente passavam novelas brasileiras que eram uma parvoíce pegada sem ponta por onde se pegue. Lembro-me de uma em particular, o “Sassaricando”, com Claúdia Raia, Alexandre Frota, Paulo Autran e Tônia Carrero que era tão má que cheguei a pensar que era alguma partida que os brasileiros estavam a pregar ao seu irmão mais velho, o “tuga”. Mas mesmo esta foi um sucesso, e o país vibrava de segunda a sexta com os “melões” da Tancinha (isto diz-vos alguma coisa?) e o resto do mentecapto argumento. O que me irritava solenemente era a forma como se papaguevam os bordões ou comportamentos de alguns personagens, e isto era quase uma exigência dos aficionados: novela que não tivesse personagens coloridos com maneirismos ou frases feitas, era “fraquinha”.

O espírito crítico era relativamente baixo ou mesmo inexistente. Quando terminava uma novela, era imediatamente substituída por outra no dia seguinte. Depois dos primeiros episódios, os “novelómanos” achavam sempre que “esta não é tão boa como a anterior”, mas uma vez habituados aos personagens e inteirados da trama, tornava-se logo companhia indispensável dos serões. Os cafés enchiam-se para ver a novela, e na primeira fila estavam normalmente senhoras já com uma certa idade, que tratavam este rito como praticamente a única forma de distração e convívio que preenchia a suas monótonas vidas. Era engraçado observar a forma como comentavam as incidências do enredo ou o perfil psicológico das personagens, chegando mesmo a esquecer que se tratava de uma obra de ficção. Ouviam-se comentários do tipo “este homem é tão mau”, ou “esta mulher é tão fingida”, ou impropérios do tipo “bem feita! Isto é para aprenderes”, quando um personagem menos popular pagava pela sua maldade. O último episódio de cada novela juntava as peças do puzzle que tinha demorado meses a ser retirado da caixa, e os “bons” acabavam bem, enquanto os “maus” tinham o castigo que mereciam. Os nós eram desatados muito à pressa, e a palavra “Fim” queria dizer que tudo ia ficar assim para sempre, na paz do senhor, e os personagens desapareciam do éter televisivo para toda a eternidade. Não era preciso um grande esforço para entender a novela; bastava ver o primeiro episódio, o último, e mais cinco ou seis do meio de um total de 180 para se perceber o essencial.

Passavam novelas à hora de almoço e à hora do jantar, e a partir de certa altura passavam ao fim-de-semana outras séries brasileiras, que também gozavam de grande sucesso entre nós. Curiosamente as novelas da hora de almoço eram bem mais divertidas. Lembro-me da “Vereda Tropical”, do “Cambalacho” ou do “Brega & Chique”, para citar algumas que se distinguiam pelo argumento cómico. Das séries lembro-me da “Avenida Paulista”, da excelente “Joana”, com Regina Duarte no papel de uma repórter, “A Casa de Irene” e mais tarde a “Kananga do Japão” e o “Pantanal”. Esta última deixou-me um pouco sem entender a razão do seu tremendo sucesso; passava-se na Amazónia, a actriz principal era estrábica e o argumento era irrelevante, com planos demorados de pântanos, selva e animais selvagens. Quem sabe se despertava entre o nosso público algum instinto primitivo? Se calhar era uma escapatória da rotina da cidade, não sei.

Mas as maiores produções estavam guardadas para depois do Telejornal, como já referi. Além da tal “Gabriela”, baseada na obra homónima de Jorge Amado, outras houve que fizeram história, e há algo a que dou a braço a torcer: algumas eram muito bem escritas e soberbamente executadas. Uma que me lembro da infância foi “O Bem Amado”, a história do prefeito de uma cidade fictícia do litoral da Bahia que estava mortinho para que o cemitério local fosse inaugurado. A novela passou em Portugal com mais de dez anos de atraso em relação ao Brasil, mas o argumento é intemporal. Já em 1987 e com menos atraso (apenas dois anos) passou “Roque Santeiro”, uma história encantadora cheia de crítica social e humor negro sobre uma cidade que se tinha celebrizado por um mito que tinha muito pouco de verdade, e cuja primeira versão chegou a ser censurada no Brasil, nos anos 70, no auge da ditadura militar. “Roque Santeiro” chegava a ter uma audiência muito próxima dos 100%, e era ainda acompanhada de uma excelente banda sonora, com canções de Elba Ramalho, Alceu Valença, Fafá de Belém ou os Roupa Nova, que tiveram um grande sucesso paralelo à novela. Estas duas que destaquei tinham em comum o facto de terem sido escritas por Dias Gomes, um dos maiores dramaturgos brasileiros de todos os tempos, já desaparecido.

Na altura os actores brasileiros mais regulares nestas novelas eram vistos em Portugal como semi-deuses. O aparato com que eram recebidos na chegada ao aeroporto, quase com honras de chefes de estado, faria corar de inveja as maiores estrelas de Hollywood. Eles retribuíam a simpatia, e até chegavam a ir buscar um avô, um tio ou um primo “português” para nos fazer sentir mais orgulhosos, mais próximos da sua origem “olímpica”. Lembro-me do actor Armando Queiroz alegar que era sobrinho-neto do nosso Eça de Queirós, e mesmo sendo verdade, é uma coincidência incrível. Alguns actores brasileiros eram venerados pelas mulheres portuguesas, o que em retrospectiva era frustrante para os actores nacionais daquele tempo. Fábio Júnior, Marcos Paulo, José Mayer, Lauro Corona e até o muito pouco atraente Lima Duarte eram considerados não só grandes actores, como também um “bons pedaços de homem”. A imprensa portuguesa cor-de-rosa dava destaque aos actores e actrizes da novela do momento, e a revista feminina “Maria” enchia as páginas centrais com os resumos dos episódios. Era um passatempo nacional.

O fenómeno das telenovelas dava um “case-study” interessante. O que levava milhares de pessoas de todos os estratos sociais, de analfabetos aos mais letrados, a consumir avidamente o ópio noveleiro que chegava do Brasil? É trise admitir isto, mas a principal razão prendia-se com o atraso e com o cinzentismo em que o nosso país estava ainda mergulhado, ainda poucos anos depois do evento da democracia. A Rede Globo, a principal expediente das novelas que passavam em horário nobre, oferecia um produto a que não estávamos habituados. Contavam uma história com princípio, meio e fim, com actores de grande qualidade, e temperavam-na com o calor tropical que nos deixava deslumbrados. A audácia das interpretações e dos argumentos era uma das características mais apreciadas entre o público português. Muito do que se fazia no Brasil era impensável em Portugal na altura: as cenas íntimas mais ousadas, a nudez, e a forma desconstraída com que isto acontecia era algo apenas reservado aos actores brasileiros.

Sendo esta uma fórmula de sucesso, não restava senão aos portugueses começarem a produzir as suas próprias novelas, ou passar o resto da vida a “aprender” com os brasileiros. Os primórdios das novelas “Made in Portugal” resultaram em produtos que eram uma tremenda lástima. As primeiras, como “Vila Faia”, “Origens”, “Palavras Cruzadas” ou “Passerelle” eram ora demasaido teatralizadas, ou produzidas com poucos meios e executadas de forma mediocre. O nosso provincianismo leva-nos a que se pense que cenários como adegas, herdades ou tabernas e a sua fauna têm um potencial noveleiro, e caímos em equívocos que levam a considerar que um actor como Tozé Martinho pode ser o Tony Ramos português. Mas as novelas nacionais têm melhorado bastante, e existe material que bem produzido e interpretado, deu bons resultados em anos recentes.

As novelas brasileiras faziam-nos vibrar, e era irrelevante que o Brasil real daquele tempo se debatesse com problemas sérios. Em meados dos anos 80 o país tinha saído da tal ditadura militar, e depois disso passou por uma crise económica que faz a nossa actual crise parecer uma brincadeira de crianças. A entrada da SIDA em cena fez mossa no meio artístico brasileiro, fez vítimas famosas, chegou a assustar e temia-se pela forma livre com que transmitiam a paixão que tanto apreciávamos. E mesmo assim não se deixaram abater e continuaram a fazer arte com qualidade, fosse ela na forma de novela, série televisiva, música ou cinema. Até há vinte anos não eram muitos os brasileiros que viviam em Portugal, e hoje são tantos que em muitos casos os portugueses deixaram de lhes achar piada, e a tal “cultura da novela” já não é o que era. Há quem diga que evoluímos e que muito do que fazemos já não fica atrás do que se faz no Brasil, mas deparo-me com algumas produces nacionais que me levam a pensar que não é bem assim. Mas recordo aqueles tempos com alguma nostalgia. A memória deixa-me com um sorriso estampado no rosto. Éramos tão pequeninos…

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