domingo, 16 de novembro de 2008

O cheiro a peixe


Sou um gajo que adora os seus vizinhos. Tento conhecer o maior número possível de pessoas que vive no meu prédio. Não é difícil, basta pôr um sorriso simpático, cumprimentá-los no elevador e mandar chauzinhos quando os vejo na rua. Tenho uma vizinha que vive no 6º andar, que deve ter uns 17-18 anos. A moça é bem antipática, a cadela. Os pais são umas jóias de pessoas.

A mãe trabalha numa loja de roupa, e o pai é peixeiro. Isso mesmo, peixeiro, uma daquelas profissões que dá dinheiro, mas que se volta a casa a cheirar a tripas de peixe e cheio de escamas. A restante vizinhança tapa o nariz quando o senhor vai no elevador, com as suas botas pretas de quem passa o dia inteiro no mercado a amanhar o peixe que cospe água pelas guelras. A bata, outrora branca, está pintada pelo sangue e pelas vísceras, que mais parece um desenho infantil.

A catraia sai quase todas as noites nas férias com as amigas, usa roupa de marca, volta para casa num BMW que suponho que seja do namorado. Mas é arrogante e tem sempre cara de caso. Queria ser menina “de bem”, mas não passa de uma betinha assanhada, que gasta a massa do pai, mas tem vergonha. Tem tiques de realeza, e só não vou mais longe neste comentário por deferência aos meus leitores do sexo feminino.

Os jovens de Macau, que não sabem nada de História ou nunca passaram fome, que nunca precisaram de usar a roupa, os sapatos ou os livros dos irmãos mais velhos, são uns sortudos. São os tais filhos dos operários, dos peixeiros, dos talhantes ou das vendedoras de jornais, que todos os dias lutam por uma vida melhor. Basta olhar para o cidadão idoso médio, que vê uma lata na rua e começa a dar-lhe pontapés, a imaginar que seis daquelas davam uma ou duas patacas, ou os tais que andam ao cartão e de quem se diz que têm “uma fortuna no banco”. É gente que dá valor ao trabahlo, gente que luta, que cresceu a comer o pão que o Diabo amassou.

Infelizmente é sempre assim. Os pais esforçam-se para que os filhos tenham uma vida melhor que eles tiveram. O meu avô, por exemplo, voltou da lezíria anos a fio com merda nas unhas para que o filho dele (o meu pai) não precisasse de fazer o mesmo. O mesmo se passou com o meu pai, e o mesmo ambiciono para os meus filhos. Às vezes os jovens cometem excessos e não percebem porque os pais ficam furiosos. Nas palavras de “Hamlet” de Shakespeare, os “velhos desconfiam da juventude porque também foram jovens um dia”.

Pode parecer estranho que um pai fique furioso quando o filho tira más notas na escola, e pode parecer antiquado quando ralha se ele volta tarde a casa, mas aí está, é difícil perceber quando tudo nos foi dado quase de mão beijada. Basta ver a forma como queremos que os garotos de apliquem desde tenra idade para que sejam melhor que os outros, ora inscrevendo-os na ginástica, nos futebóis, nas melhores escolas, protegendo-os dos perigos que às vezes nem existem, transformando-os em pequenos lordes, porque “é um mundo cão”. Não os conseguimos imaginar a cavar a terra, a trabalhar na estiva ou a apanhar cartão, ou no talho com o lombo às costas.

Queremos que fiquem fortes e saudáveis, mas no fim tornam-se nuns fracos, que não sabem responder à mínima contrariedade. Sim senhor, crescem grandes, saudáveis, com melhores condições, mas o que aconteceria se precisassem de dar o corpo ao manifesto? Quando se fala da crise económica global, quando ainda se temia que fosse a mais grave desde a Grande Depressão de 29, tremi. Não por mim, mas por eles. Isto são miúdos que não estão preparados para passar fominha, para dividir uma laranja com os irmãos, para passar uma longa temporada sem um bife da vazia.

Depois crescem (e crescerão, vão-se preparando) e viram-nos as costas, os maganos. Depois de vinte e tal anos a cuidar que nada de mal lhes aconteça, lançamo-os ao mundo como quem manda um Mercedes acabadinho de sair da linha de montagem. Alguns, inebriados pelos excessos da juventude, zangam-se com os pais, saem de casa mais cedo, falam da sua “liberdade”. Para prevenir que isso aconteça, alguns de nós dá-lhes rédea solta, deixa-os gozar a “liberdade”. Só que a “liberdade” é uma droga, e quanto mais se toma, menos satisfaz. Porque muitas vezes esquecemo-nos de lhes ensinar a responsabilidade.

Às vezes mostro aos meus filhos aquelas imagens deprimentes da fome em África, aquelas que nos entravam em casa nos noticiários, quase sempre à hora do jantar. Faço-lhes ver a sorte que têm, e de como no mundo morrem milhares de meninos e meninas com menos sorte que eles. O meu filho pergunta “porque têm fome? não têm dinheiro?”, enquanto a minha filha apresenta a solução “porque não vão para outro sítio onde haja comida?”. Mais não faço que sorrir da ingenuidade. Santa ingenuidade.

Quando vim sozinho para Macau, tinha quase 20 anos, sofri muito de saudades. Saudades da sopa e do empadão de carne da minha mãe, do cozido à portuguesa que a minha avó fazia aos Domingos e juntava toda a família. Era ao Domingo que eu ligava a perguntar novidades, com a leve esperança de, sei lá, poder sentir o cheirinho do cozido pelo telefone. Depois chorava. Era um masoquista, no fundo. Quem quer uma “independência” assim? Só quando perdemos o que mais estimamos, aprendemos a dar valor ao que não volta mais.

5 comentários:

Paulo39 disse...

Óptimo post.
Todas as pessoas deviam ler isto que escreveste.

Leocardo disse...

Obrigado, Paulo.

Anónimo disse...

o melhor post, os meus parabens

Anónimo disse...

Belo post.

claudiagameiro disse...

é de deixar muitas gente envergonhada...eu incluida