terça-feira, 29 de abril de 2008

Zhuhai, meu amor


A primeira vez que passei as Portas do Cerco foi em Dezembro de 1992, poucos meses depois de ter chegado a Macau. Para mim foi uma experiência fascinante, pelo menos em termos de expectativa. Ali estava eu, jovem ribatejano que ainda um ano antes só tinha ido a Badajoz e a Londres (e a Paris, mas era muito pequenino), prestes a atravessar a fronteira para um mundo completamente desconhecido.

À medida que subia a adrenalina, chegava à antiga sala onde se emitiam os vistos. Dois ou três policias, impecavelmente uniformizados, tratavam com indeferença os estrangeiros que esperavam o precioso carimbo. Algumas filipinas, russas e até dois egípcios conversavam em línguas estranhas, no que parecia uma pequena Babilónia. Quase meia hora depois chegava a Zhuhai ( 珠海, em português "Pérola do mar" ou "Mar de pérola"), acompanhado de dois amigos e da nossa cicerone, a Lin.

A primeira impressão daquela cidade fazia estremecer a alma. Toda em cimento erguida, à tona dos desperdícios e do esterco, espapaçada na lama das últimas chuvas do ano. O sol de Inverno iluminava os caminhos desconhecidos, que pediam para que nos perdessemos neles. Mulheres mal vestidas, de meias rotas e cabelos sujos deitavam olhares lângidos. Homens de fatos encardidos e faces morenas olhavam e sorriam com um ar enigmático. A Lin dizia-nos para termos cuidado e ficarmos juntos.

Dizia-nos também para ignorarmos as crianças que nos rodeavam a pedir, algumas bastantes persistentes, que causavam nervoso miudinho a um dos nossos companheiros. Era difícil ignorar aquela realidade, que não sendo nova, era em tudo diferente da nossa. As crianças insistiam, alheios à nossa indiferença, alguns descalços, mal vestidos, rostos sujos. Uns mais atrevidos tentavam meter-nos a mão no bolso ou tirar os relógios. Chegava a ser preciso dar um chega para lá, e eles eventualmente desistiam, não sem balbuciar uns desaforos em chinês.

Ao longo da Avenida principal de Gongbei (distrito de Zhuhai) viam-se muitas bicicletas e poucos automóveis. O pavimento era esburacado, e de algumas lojas saíam mulheres que atiravam restos de comida e outro lixo para o chão. Alguns peões sentavam-se fumando, e a atracção especial era um indivíduo que chicoteava um macaco com chapéu de circo, compelindo-o a executar uns truques para os curiosos, tão poucos que era possível observar à distância o triste espectáculo.

Apanhámos um autocarro para o centro de Zhuhai, para uma espécie de entreposto comercial, onde se vendiam brinquedos e aparelhagens sonoras, em tudo semelhante aos que se encontravam nos ciganos da Praça de Espanha, em Lisboa. Os equipamentos de som, com colunas gigantescas, a fazer lembrar a feira das Galinheiras, tocavam música pop chinesa. Comprámos algumas bugigangas, mais pela novidade, assim tipo souvenir. Lembro-me de ter comprado um chapéu de palha.

No regresso o Mercado de Gongbei. Algumas senhoras portuguesas compravam loiças, e pareciam ter jeito para regatear. Depois o duty-free. Cigarros, whiskey, doces, tudo o que nos fizesse gastar o resto dos então incómodos renminbis que nos deram de troco num restaurante “de luxo” onde almoçámos, e tive o primeiro contacto com as famosas casas de banho de buraco no chão, onde o ar é praticamente irrespirável.

Voltei lá algumas vezes depois desta, e desisti. Estava visto, e era pouco. Isto até 1999, quando comecei a ir a Guangzhou tratar de negócios. Chegava a pernoitar em Zhuhai e apanhar o primeiro autocarro de manhã para a cosmopolita cidade capital da província de Cantão. Zhuhai estava mesmo mudada. Apareceram os bares à beira do rio, as discotecas, as lojas eram mais arrumadas, a comida inspirava mais confiança, viam-se mais estrangeiros, e, mais importante do que isso, menos miséria.

Cheguei a pagar 100 renminbis por uma noite num hotel de 4 estrelas, não muito longe da fronteira, que incluía um pequeno-almoço estilo chinês, em mesas redondas, impecavelmente limpas, com os carrinhos a trazer comidas mil. Chegava a comer tanto que por vezes não almoçava nesse dia. Ao fim da tal avenida principal tinham aparecido outras ruas, repavimentadas, com candeeiros novos de onde pendiam cestas de flores. Um bar que gostava especialmente, e ficava a dez minutos de táxi do Hotel, tinha música ao vivo e pelo menos uma das empregadas falava inglês.

Foi a fase do êxodo dos noctívagos de Macau para o outro lado. Às segundas-feiras muitos contavam os acontecimentos mirabolantes do fim se semana, e com um sorriso de satisfação garantiam que tinham encontrado tal sítio onde tudo era “bom, bonito e barato”. Muitos iam para ostentar, num tempo em que a pataca era muito mais forte e a economia ainda não se ressentia da SRAS. Contam-se histórias de loucas aventuras, de amores, traições, concubinas, e a expressão “ir lavar a cabeça a Zhuhai” passou a fazer parte do léxico local.

Passou a ser o local de romagem de fins de semana; dos DVDs pirata, dos recuerdos que os nossos compatriotas se apressavam a comprar antes das férias em Portugal (são mesmo da China! Juro!), das jantaradas baratuchas, dos karaokes, das meninas arrogantes que regateavam os preços das malas, sapatos e roupas e viravam as costas quando ouviam um não e voltavam atrás piedosamente quando ouviam um sim...era um tal de fazer o paraíso da miséria alheia.

E hoje a cidade vizinha conhece uma pujança a nível de qualidade de vida que começa mesmo a ameaçar Macau. Há cada vez mais habitação de qualidade a preços acessíveis, mais restaurantes de luxo (sem aspas), e a pataca já não dita as regras. A cidade já não é mais o buraco infecto e imundo com os pedintes e bebés no chão. É o milagre da Zona Económica Especial que no início até parecia uma piada de fraco gosto. Zhuhai, quem te viu e quem te vê.

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