terça-feira, 17 de setembro de 2013

Vísceras


Devia ter os meus nove ou dez anos quando deitei as mãos a um magazine de BD que pertencia ao assistente que trabalhava na loja do meu pai. A revista não era para a minha idade na altura, confesso desde já, pois continha temas adultos e alguma violência gratuita. Não, não era pornográfica nem nada que se pareça, e mesmo que fosse, o que ia eu fazer com o diminuto pica-pau com que era dotado aos dez anos? Numa das cenas um príncipe africano qualquer chateia uma bruxa, que lhe lança uma maldição que faz com que se evapore a sua carne e ossos (que violência…), ficando reduzido, e passo a citar, “à pele e algumas vísceras”. Esta última palavra despertou-me a curiosidade, devido ao meu vocabulário lmitado de um puto do 1º ano do ensino preparatório? O que raio eram as “vísceras”?

Pouco tempo depois fiquei a saber que as vísceras (lê-se víxeras) são os orgãos internos: coração, fígado, rins, intestinos, pulmões, pâncreas, baço, estômago, esófago, bexiga, e todas essas porcarias que por alguma razão não estão à vista. São feias que até dá dó. E tresandam, especialmente aquelas que cumprem as funções digestiva e escretória. Quem se lembrou de chamar aos orgãos que estão protegidos pela derme e pelas costelas de “vísceras” foi um génio. Um nome feio e gosmoso para orgãos feios e gosmosos. Quando uma pessoa não gosta mesmo nada de outra, diz-se que lhe tem um “ódio visceral”. Isto é muito sério, pois o seu ódio é tão profundo que se espalha pelas vísceras, como se fosse um cancro.

Em linguagem popular as vísceras são conhecidas por “tripas”. Um mânfio que puxa da naifa para resolver uma contenda ameaça o seu adversário dizendo “vou-te pôr as tripas de fora”, e não “vou-te pôr as vísceras de fora. Em rigor, as “tripas” são os intestinos, e os naturais do Porto são conhecidos por “tripeiros”, devido ao prato tradicional confecionado com os intestinos do porco. Tripeiro não soa lá muito bem, mas sempre é melhor que “viscereiro”. Quem é viscereiro e por acaso também é do Porto é o dr. José Pinto da Costa, irmão do presidente do “fóculporto”, que já realizou milhares de autópsias durante a sua carreira de médico-legista. Este fala de vísceras e pega nelas como quem bene um copo de água, e ainda utiliza outras expressões de tirar o apetite a qualquer um, como “livores cadavéricos”. Blergh. É preciso ter sangue frio, ou então ser maluco.

Numa linguagem mais coloquial são conhecidas pelas entranhas, que soa assim uma mistura de "entrada" com "aranha". A poesia recorre-se vastas vezes desta palavra, "entranhas", para dar um tom mais dramático à origem de algo. Assim, fala-se de "entranhas da Terra" para se falar de minagem ou de vulcanologia, ou no caso dos comunistas (como o Ary), diz-se que uma criança saíu "das entranhas" da mãe, como se fosse o parasita do filme Alien. Quer dizer, isto salvo seja. Eu limitei-me ao útero, e não andei por ali a petiscar nas moelas da minha mãezinha. Se aquilo são "entranhas", onde passei os primeiros novos meses da minha existência, não tive a culpa. Afinal não pedi para nascer, e ainda por cima daquela forma, tão ao estilo de um "estripador".

Vísceras é um nome que além de feio, é muito pouco comercial. Naquelas tabuletas penduradas nas petisqueiras e nas tascas, que tantas vezes cometem atentados hilariantes à língua portuguesa, lê-se às vezes “há pipis”. Estes pipis são um prato de moelas e outros orgãos internos de frango com molho de tomate, cebola, pimenta e vinho branco. Se anunciassem “há vísceras de frango”, não seria tão convidativo. As vísceras das aves são conhecidas ainda por “miudezas”, ou simplesmente “miúdos”. Quando o meu pai dizia que ia “cozer os miúdos”, eu e o meu irmão escondiamo-nos debaixo da cama. Era só na brincadeira, claro. “Miúdos” ou “miudezas” é uma designação apenas sofrível para os orgãos internos das galinhas e dos frangos. Podia ser pior. Podiam chamar-lhe “vergonhas”.

Um tipo de vísceras que ainda é considerado tabu são os testículos. São vísceras também, porque não? Em termos anatómicos não ficam atrás do coração ou do fígado, e os testículos de alguns animais comem-se. Os do boi e do carneiro são chamados de “túbaros”, e o do porco são conhecidos por “colmilhos”. Estes petiscos, que em matéria de gosto divide as opiniões (eu a-do-ro), são mais comuns no Alentejo, e pontualmente no Algarve. Se por acaso foi um dia ao Alentejo, e um local ameaçou-o com “um pontapé nos túbaros”, e na altura ficou sem perceber, agora já sabe o que o “cumpadri” queria dizer. Devia estar mesmo zangado, o magano.

As vísceras, por muito que nos custe, fazem parte integrante de nós, e carregamo-las connosco para toda a parte. É perturbante pensar que quando nos sentamos ao lado de alguém no autocarro, nas finanças ou no consultório do dentista, estamos a poucos centimetres das vísceras alheias. Se alguém se aproxima muito, e começa a encostar-se, dá logo vontade de dizer: “chega para lá essas vísceras, pá!”. Duvido que houvessem tantos doadores de orgãos se a designação official fosse “doadores de vísceras”. Imaginem que existia alguma doença terrível que provocasse a explosão das vísceras, e quem estivesse nas redondezas levasse com aquela amálgama de tripas na tromba? O melhor é não pensar nisso.

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