Para os chineses a independência como indivíduo em termos financeiros é uma coisa da maior importância. Mais importante que ter uma conta bancária que garanta segurança e estabilidade, é ter habitação própria. O primeiro objectivo e sem o qual nada mais faz sentido é ter uma casa em seu nome. Casa própria, sem depender dos pais ou do arrendamento de moradia alheia é a base que sustenta todo o resto. Não surpreende que o inflaciomento do preço da habitação causado pela especulação imobiliária surja no topo da lista das preocupações da população, especialmente da mais jovem, e constitua a maior dor de cabeça para o Governo. Não que os nossos governantes se preocupem muito com o acesso das classes mais baixas à aquisição de casa própria; é mais lucrativo aproveitar a bolha especulatória e fazer umas massas, mas dormiam mais descansados sem o alarido da parte de quem não tem milhões para pagar por um apartamento.
O imobiliário é o investimento por excelência entre os chineses. No passado os casais suavam as estopinhas, passavam pela mais variadas privações, negavam-se aos prazeres mais mundanos, tudo em nome de um tecto que pudessem chamar de seu, e que mais tarde passassem aos filhos. Comprar a primeira casa é um sinal de afirmação, de sucesso, o reconhecimento de um esforço, um atestado de competência. Um pai chinês olha para o filho que comprou uma casa com as suas economias como um leão adulto olha para a cria que acabou de caçar o seu primeiro antílope. Dorme-se muito mais descansado dormindo em casa própria do que em casa alheia, e afasta-se o espectro de algum dia se dar o azar de ter que dormir na rua, na mais completa das misérias. Ter uma casa é a prioridade, um “must”, e todo o resto virá por acréscimo. Mesmo sendo pobrezinho e precisar de andar toda a vida a contar tostões até ao fim do mês, ter casa própria é o “passing grade”, No teste do sucesso garante pelo menos uma nota de 10 valores na escala de 0 a 20.
Para quem tem dinheiro suficiente para se dar ao luxo de optar pela localização, tamanho ou aparência da propriedade, a aquisição de uma casa obedece a critérios rigorosos. Um agente imobiliário está sempre preparado para um sem número de perguntas, mesmo as mais triviais ou descabidas. Para o comprador tem que haver a garantia que é dinheiro bem gasto. Uma das particularidades mais singulares entre os locais é a “limpeza” da casa, no caso de se tratar de uma moradia que já pertenceu a outrém. Esta “limpeza” não se refere às condições de higiene, ao bulor na banheira, ou aos riscos na parede e no soalho. Para os chineses, povo supersticioso por natureza, importa saber se morreu alguém naquela casa que pretendem comprar. Quer se acredite ou não em fantasmas, o preço de uma habitação depende deste factor, e escusado será dizer que a ocorrência de uma morte desvaloriza o imóvel. Na conservatória do registo predial de Hong Kong esta informação consta da informação sobre os imóveis. Um senhorio que depare com o inquilino enforcado no candeeiro da sala entra em desespero; não pelo cenário da presença do cadáver, ou por comiseração, mas porque a sua propriedade acabou de se desvalorizar, com o preço de uma possível transmissão a cair em flecha. Muitos agentes menos escrupulosos mentem, pois dificilmente um jovem casal recém-casado com planos de ter filhos quer que os putos se assustem com as almas penadas. É mais difícil mentir se a morte ocorreu com grande alarido ou foi amplamente publicitada; um homicídio, um suicida que saltou da veranda, uma morte “estridente”, do tipo balázio nas têmporas e paredes besuntadas de sangue, miolos e crânio. Não é a toa que cada vez que um idoso falece de morte natural no seu leito e a família chama uma ambulância, a morte é declarada apenas no hospital, mesmo que se tenham passado várias horas.
Para quem já tem casa própria e tiver o engenho de adquirir uma segunda habitação ou mesmo uma terceira, pode entrar no convidativo jogo do arrendamento, e assim pagar à hipoteca à custa de terceiros. Uma vez paga esta hipoteca, ou no caso de ter adquirido a moradia ou moradias suplementares com as suas economias e sem a ajuda de crédito, as rendas recebidas são lucro, é dinheiro que entre direitinho no bolso. Quem teve a sorte de adquirir uma loja numa localização central no tempo das vacas magras, hoje pode alugá-la por uma fortuna, e viver dos rendimentos. Imagine o leitor que comprou uma loja na zona do Largo do Senado há vinte anos, ao preço da uva mijona, e hoje aluga-a por qualquer coisa como 500 mil patacas mensais. Pode dar-se ao luxo de passar a vida a viajar, sem trabalhar, e quando lhe faltar o capital é só ir buscá-lo à conta bancária, onde o inquilino deposita todos os meses o combustível da boa-vida. Bem, pelo menos sonhar ainda é grátis.
Outra modalidade é o investimento. Há quem invista na bolsa, em metais preciosos, em moeda estrangeira, e depois há quem invista no mercado imobiliário, e em Macau, aqui é que está o ouro. Há quem compre uma moradia com o intuito de revendê-la com lucro, e há até quem compre uma propriedade que nunca chega sequer a ver. Há ainda quem compre e tenha já um comprador disposto a pagar mais, e recentemente surgiu uma modalidade que tem deixado os investidores em delírio: os “lao fa” (樓花). Estes “lao fa” são, em termos leigos, moradias que ainda não existem, mas que podem ser compradas antecipadamente. Algumas construtoras colocam as fracções à venda após verem aprovado o projecto, e com o dinheiro completam a obra. Em teoria é assim, mas a ideia pode ser aproveitada para se especular. Algumas destas fracções chegam a ser vendidas duas, três ou mais vezes antes da conclusão do edifício – e repito, estas fracções que andam de mão em mão como as pombinhas da Catrina ainda não existem. Isto é que é ter pressa.
Para os chineses, o negócio do imobiliário é um caso sério, com que não se brinca. Há quem chore quando perde um bom negócio, quem se mate quando toma decisões com resultados desastrosos, famílias de costas voltadas por motivos de heranças, partilhas ferozes por sucessão ou por divórcio, irmãos que enganam irmãos, filhos que passam a perna aos pais, penhoras, arrestos, apreensões e outros expedientes de natureza judicial por causa de dívidas ou disputas sobre a titularidade dos imóveis, um pouco de tudo. Basta olhar para a loucura das concessões e das sub-concessões, da pressa em construir cada vez mais alto, como se houvessem milhares de sem-abrigo milionários sentados em frente aos terrenos à espera de um tecto para morar, é como a febre do ouro, e até parece que temos alguma jazida no subsolo. Não temos, mas o que temos são construtores ambiciosos, dirigentes que a eles se associam, e malta endinheirada no continente disposta a pagar dez vezes mais o valor real de uma moradia. E assim Macau vai-se tornando uma enorme máquina de lavar, deitando pela borda fora quem não tem o capital para entrar na brincadeira. Quer dizer, até se podiam ter juntado à malta que comprou as casas todas deste enorme tabuleiro do monopólio, mas agora é tarde.