Ho Chio Meng, ex-procurador do Ministério Público de Macau detido em Fevereiro último vai a julgamento no próximo dia 5 de Dezembro, e responderá por 1536 crimes (mil quinhentos e trinta e seis). Isso mesmo, a pessoa que durante 15 anos esteve encarregada de levar os criminosos à justiça, pode afinal ser mais "criminoso" que eles todos juntos. Quem tome conhecimento de uma bizarria destas sem saber exactamente o que se passa em Macau, é capaz de achar irónico. É mesmo possível que aquelas pessoas que andam descontentes com a vida - e são bastantes, cada vez mais - aproveite para reiterar a cantiga do coitadinho, de como "isto está cada vez pior", e "a começar pelos políticos", etc. etc.. Lamentável, foleiro e patético. Em muitos casos o problema é dor de cotovelo, provocada pela falta de um "tacho" onde se agarrar. O caso do procurador trata-se de mais um sintoma de uma doença crónica de que sofre o sistema judicial em Macau: o síndrome palaciano-imperial.
É difícil de conceber que o procurador do Ministério Público tenha cometido quase tantos crimes quantos dias em que esteve no cargo. Supondo que dias houve em que não lhe apetecia cometer crimes (isto até soa ao enredo de um filme de Quentin Tarantino), outros havia em que os praticou desde que acabou de lavar os dentes de manhã, até que foi para a cama à noite. Ho Chio Meng não está acusado de matar ninguém, nem de roubo à mão armada - afinal era a figura maior do Ministério Público, 'cum raio. A maioria dos 1500 e tal crimes de que o acusam são económicos: burla, participação económica em negócio, e abuso de poder. Crimes de "colarinho branco" - e toga preta, neste caso. O mais grave de todos e que pode custar ao magistrado uma boa temporada à sombra é o de "associação criminosa", um crime que normalmente é imputado aos elementos das sociedades de malfeitores, vulgo "seitas". É um bocado difícil descortinar onde é que está aqui a "seita", afinal.
Os operadores do Direito em Macau manifestaram a sua surpresa e indignação. Mesmo quem entenda um pouco de leis, ou até quem faça uso do bom senso percebe que não estamos aqui na presença de um caso de "justiça poética", ou "tardia", de o fim do reino de terror de um criminoso sem escrúpulos, ainda para mais um pérfido e metódico malvadão que ludibriava a lei para levar avante os seus nefastos intentos; é apenas "impossível" que o procurador tenha cometido 1536 crimes sem que ninguém tivesse dado por isso, ou pelo menos desconfiado. A voz mais crítica, e em boa hora, voltou a ser a do presidente da Associação de Advogados de Macau (AAM), Jorge Neto Valente, que considerou a acusação "arrepiante", mencionou o facto de ser dada à defesa tempo insuficiente para estudar o processo de 10 mil páginas (haja inspiração...), acrescentando que Ho Chio Meng "está a ser vítima de uma grande injustiça". Outros juristas falam numa interpretação muito livre do que poderá eventualmente ser um ou mais crimes "na forma continuada", ou seja, mesmo que existam provas que o incriminem de "alguns crimes", o que parece ter contado para a acusação foi o número de dias em que o procurador não os confessou - será assim? E cada dia os mesmos crimes eram contados como "reincidência"? Não sou qualificado para dar uma resposta, e aqui duvido que alguém consiga produzir uma explicação convincente.
É público que Neto Valente nunca teve uma relação pacífica com o ex-procurador, mas aqui mantém-se, e bem, fiel ao princípio da presunção da inocência, algo que infelizmente muita gente hoje em dia considera "conversa fiada" - até lhes sair na rifa, lá está, e aí pelo menos sabem com o que podem contar. Ho Chio Meng era uma figura controversa; semblante fechado, dando a entender pouca ou nenhuma flexibilidade perante o rigoroso cumprimento da lei, ficaram famosas algumas das suas ideias. Chegou a defender, ou apenas sugerir, a pena de morte em Macau como forma de combater mais eficazmente os crimes de droga, era adepto de uma reforma jurídica que adoptasse a "common law" em detrimento do sistema de direito de matriz portuguesa que vigora na RAEM, foi crítico do bilinguismo, defendendo que a tradução de sentenças para a língua portuguesa "era o motivo da falta de celeridade na justiça em Macau". Havia quem não simpatizasse com o personagem, além do presidente da AAM, mas não era para se gostar ou meter de lado no prato: o importante era que fosse o garante da legalidade. A sua fama de "justiceiro", muito "no-nonsense" levou a que o seu nome fosse indicado para o cargo de Chefe do Executivo por duas vezes. Primeiro aquando da saída de Edmund Ho, e cinco anos mais tarde, quando se especulou sobre a possível retirada de Chui Sai On, durante um período politicamente conturbado no território. E será que estes 1536 crimes viam a luz do dia na eventualidade de Ho Chio Meng ser o actual inquilino do palácio de Santa Sancha? Nem pensar! Nem actual, nem nunca. É melhor nem imaginar semelhante situação, pela vossa saudinha! Vade retro, cruzes canhoto!
E chegou a altura de explicar o que é o tal "síndrome palaciano-imperial", que referi no primeiro parágrafo. É difícil de acreditar que as ilegalidades praticadas pelo ex-procurador não fossem do conhecimento de ninguém, e nem por acaso há três ou quatro alegados cúmplices constantes do processo, e que se encontram igualmente em prisão preventiva há nove meses, mas...para 1536 crimes? Três ou quatro? A explicação é simples: tudo o que o sr. procurador fazia no exercício das suas funções era "bem feito", e agora afinal vem-se a descobrir que não fez nada de jeito - era tudo crime. Vá lá alguém imaginar uma coisa destas! É esta complacência e falta de verticalidade que se confunde com "lealdade" e "espírito de equipa" que é comum encontrar um pouco pela Administração Pública em Macau. O "sr. dr. é que sabe", "se o sr. dr. disse, é porque é verdade", "a lei diz assim, mas o sr. dr. mandou fazer assado". A mentalidade palaciana que vigora leva a que não se pondere por um segundo que tanto o sr. dr., como o secretário, o oficial e o motorista trabalham todos para uma mesma figura concreta mas impessoal: o Governo. É uma noção que aqui não colhe, esta, e colhe menos ainda se existem vínculos precários dependentes de uma avaliação da parte de um superior hierárquico - do Imperador. É a figura do Governo que tem a obrigação de dar o exemplo, regendo-se pelo cumprimento escrupuloso da lei, resistindo à tentação de se inclinar parcialmente para aquilo que alguns figurões "acham ser melhor". Ho Chio Meng foi o "imperador" que após deixar de o ser, ficou com a cabeça a prémio.
A própria detenção do procurador no início deste ano teve o seu "petit je-ne-sais-quoi" de surreal. Foi detido no terminal de "jetfoil" do Porto Exterior quando se preparava para sair do território, e soube-se depois que estava a ser alvo de investigação num outro processo, que implicava estar interdito de se ausentar de Macau. Ora isto só nos pode levar a concluir que para passar na alfândega terá utilizado um documento de onde não constava o seu nome verdadeiro, e os rigorosos funcionários da mesma, os tais que negam a entrada em Macau a bebés de meses de idade por terem um nome idêntico a professores universitários de Hong Kong considerados "persona non grata" não fizeram mais do que a sua obrigação: "este tipo é a cara do ex-procurador Ho Chio Meng, mas se o documento diz que não é, é porque não é". Se calhar não acompanham a actualidade política local, e preferem seguir a Premier League inglesa. Se dessem com o Wayne Rooney a tentar passar com o documento do Cesc Fabregas, davam por isso, com toda a certeza.
As diferenças entre este caso e o outro que envolveu o ex-secretário Ao Man Leong são evidentes: o primeiro foi depenado e depois abatido, enquanto que ao engenheiro foi dado um tratamento "a sangue frio", sem anestesia, por questões que se prendiam com as próprias circunstâncias, e que quem seguiu mais ou menos de perto sabe muito bem quais foram. As semelhanças prendem-se com o facto de ambos serem julgados em última instância, ou seja, sem possibilidade de recurso. Nada mudou desde Ao Man Long, cuja falta parece ter sido interpretada como uma "excepção à regra" pensada pelos ideólogos a quem nunca passou pela cabeça que alguém num cargo daquela elevação tivesse a tendência para cometer crimes. É isto que assusta, meus amigos. Quem pensar que isto quer dizer que em Macau "ninguém está acima da justiça" só pode ser muito ingénuo. Aqui a palavra "cima" só tem expressão na frase "a justiça caiu-lhe em cima". E esta justiça esmaga. Mete medo.
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