segunda-feira, 21 de novembro de 2016

Olhando de frente para o "The Sun"



Gary Lineker, antigo avançado inglês, o melhor da sua geração, tornou-se comentador desportivo depois da sua retirada da alta competição em 1994, e assim como havia acontecido nos relvados, é considerado exímio nessa função. O seu estatuto de celebridade do desporto pouco propensa a escândalos relacionados com a sua vida privada faz dele um alvo apetecível para a indústria da publicidade, e desde 1995 que Lineker é o "rosto" da marca de batatas fritas de pacote "Walkers". Após mais de vinte anos a vender o produto, o actual comentador da BBC-Sports decidiu cobrar um pequeno favor pelos seus serviços, e no passado dia 11 esteve reunido com executivos da Walkers e da PepsiCo, da qual a primeira é uma subsidiária, com um ponto apenas na agenda: pedir que deixem de fazer publicidade no jornal The Sun, o tablóide britânico, que é também a publicação mais vendida em Inglaterra - o que é de pasmar, considerando aquilo que vou demonstrar mais à frente. A razão do pedido prende-se com uma azeda troca de acusações ocorrida no mês passado entre Lineker e o jornal, com o primeiro a acusá-los de fazer uma cobertura "racista" da chegada a Inglaterra de um grupo refugiados vindos da tristemente célebre "selva" de Calais, em França, e com os últimos a pressionar a BBC para dispensar os serviços do comentador. A retaliação por parte do The Sun aos comentários publicados por Lineker na sua conta do Twitter foram entendida como "desproporcional" pela opinião pública, que como já tinha referido neste artigo, deram a vitória ao ex-futebolista neste assalto do combate de palavras com o jornal.


A iniciativa de Lineker não terá tanto a ver com algum sentimento de despeito para com o tablóide que o atacou, mas mais com a sua adesão ao projecto "Stop Funding Hate", que nasceu no Facebook, e visa sensibilizar empresas e particulares a não contribuir para publicações que propaguem o discurso de ódio. Um dos maiores alvos desta campanha são tablóides como o "Daily Mail" e o "The Sun", mas se no caso do primeiro a retórica é sobretudo politicamente condicionada, já no outro caso passa-se para o campo do surrealista. Deixando momentaneamente a questão dos refugiados e do "impecável" serviço dos media que procuram moldar a opinião em vez de informar, vamos olhar para o "The Sun" de frente, sem recurso a qualquer de tipo de lente protectora. Não existe o risco de sofrer danos irreversíveis ao nível da retina, mas certamente que dá para ficar de queixo caído.


Já tinha referência a esta...este...não sei o que lhe chamar, neste artigo do ano passado, e demonstra bem do que o tablóide mais vendido em Inglaterra é capaz. Claro que isto é "exclusivo mundial" - quem é que se ia lembrar de uma coisa destas? Só faltava dizerem que um Neadertal de braço estendido a apontar para um pterodáctilo era um antepassado de Hitler. Lembram-se do "Jornal do Incrível", aquela publicação muito em voga em Portugal nos anos 80 que inventava notícias do tipo "bebé nasce com feto no útero", ou do "Notícias do Mundo", que na década seguinte afirmava coisas do género "Catarina Furtado nasceu homem", ou que o casamento do duque de Bragança foi transmitido para Macau e visionado por "milhares de chineses" na "principal praça" em "ecrã gigante". Ora pois, esses inventavam a notícia, literalmente. O The Sun "compõe" as notícias com recurso a dados já existentes. É um bocado como aquele exercício de expressão escrita que se destina a crianças do ensino elementar, onde lhes é dada uma imagem qualquer e depois se pede para escrever um texto sobre a mesma. Mas a relação com aquela que é a maior paixão dos britânicos, o futebol, já é atribulada desde muito antes da troca de galhardetes com Gary Lineker. Olhemos para outro exemplo relativamente recente:


Estas imagens são de Agosto último, ainda durante a pré-temporada futebolística, e nela o treinador do Liverpool, o alemão Jürgen Klopp, a recusar-se prestar declarações ao The Sun durante uma conferência de imprensa. O técnico deixa claro que a razão "nada tem a ver com o facto de ser treinador do Liverpool", e já vamos ver o porquê dessa ressalva, mas simplesmente porque "há coisas que devem permanecer privadas". Ao que é que Klopp se referia, exactamente?



A isto, que não é pouco. Dejan Lovren (à direita) é um defesa central croata ao serviço do Liverpool,  e que ficou excluído da convocatória para o último Europeu de futebol devido a um desentendimento com o seleccionador Ante Cacic durante um  jogo de preparação contra a Hungria em Março, onde o central vocalizou a sua insatisfação por ter ficado no banco, quando três dias antes havia sido titular num outro particular contra Israel, que a Croácia venceu por 2-0. Isto é do domínio público, e aconteceu em Março. Alguns meses depois, em Agosto, o The Sun tinha na sua posse "provas" de que a mulher do jogador estava envolvida num relacionamento extra-conjugal com um amigo do casal, e para perceber o que o tablóide entendia como sendo uma "bomba", basta olhar para a imagem à esquerda. Faltava o pretexto para publicar a "descoberta", e para isso "inventou-se" que o jogador faltou ao Euro em França para "salvar o seu casamento" - algo que nunca seria possível desta forma, certamente. Isto é o que toda gente de bem entende como "devassa da vida privada", independentemente do que dizem as leis inglesas no que diz respeito aos limites da liberdade de expressão, que desconheço, mas suponho que sejam mais do que permissivas: são libertinas! 


E esta é razão pela qual Klopp precisou de esclarecer que a razão de não falar para o tablóide era meramente pessoal. A relação entre o Liverpool e o The Sun azedou para lá do remediável por altura da tragédia de Hillsborough, em Abril de 1989, quando 96 adeptos morreram durante uma partida  da meia-final da Taça de Inglaterra entre o Liverpool e o Nottingham Forest, disputada em Sheffield. Segundo o The Sun, a "verdade" é que durante os tumultos que causaram o número de mortos que ainda hoje constituem a maior tragédia de sempre em competições desportivas, os adeptos do Liverpool "roubaram a carteira de alguns cadáveres", "urinaram na polícia" e "agrediram o pessoal médico enquanto prestava primeiros-socorros". E tudo isto sem terem lá estado, visto o que quer que fosse, ou nada que se seja remotamente tido como decente para o estatuto de media que ostentam. Claro que a indignação foi enorme, ao ponto de mais tarde o The Sun a publicar isto:


"Ah...desculpem lá o mal entendido...mentimos sim, mas a culpa não foi nossa! Foi a Thatcher e os amiguinhos dela que nos contaram" - e também não estavam lá, convém referir esse detalhe. "Desculpem lá o mau jeito, pá! Esqueçam lá isso". Isto é de uma baixeza hedionda e sem nome. É indiferente que se prostituam em nome da sua agenda política e condicionem a opinião pública em relação à situação dos refugiados de Calais ou noutra coisa qualquer. Os exemplos são tantos e com com uma cadência tal que nem dava para fazer aqui um resumo. Gary Lineker é apenas mais um buraco na estrada para quem optou por um atalho ínvio, como é o caso do The Sun, que repito: é a publicação mais vendida no Reino Unido. 



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