Uma das discussões que andou por aí na última semana em Macau teve a ver com a publicação de uma tese de doutoramento da jornalista Vanessa Amaro, intitulada “Identidade e questões do estatuto sociocultural na comunidade portuguesa na Macau pós-colonial”, cujas conclusões nos foram dadas a conhecer
num artigo do último dia 29 do Hoje Macau, pelo menos parcialmente. Dessas conclusões tiraram-se interpretações diversas, apesar do estudo não ser de todo conclusivo - longe disso. Foram entrevistados 60 portugueses, alguns chegados antes de 1999, outros já depois da transferência de soberania. Uma frase muito útil que aprendi aqui em Macau e que se aplica a quase tudo é "não é bem assim". E porquê? Simplesmente porque Macau não tem um segmento maioritário, ou sequer em grande número de população que se possa chamar "de gema". Ou seja, entre o total da população que nasceu em Macau de dois outros naturais do território, o número vai-se afunilando à medida que recuamos nas gerações - duvido que exista um número significativo de residentes que possam provar que os seus oito bisavós nasceram todos em Macau. Pode mesmo haver quem tenha e nem saiba. Mas falando dos portugueses da metrópole, objecto da tese da Vanessa Amaro.
Em primeiro lugar há a questão dos nomes, e o que se chama a quem e ao quê, e um dos primeiros "não é bem assim" que encontramos é na realidade um "não é de todo": Macau deixou de ser uma Província Ultramarina, vulgo "Colónia" em 1975, quando passou a ter o estatuto de território chinês sob administração portuguesa. Isto é importante se estabelecermos um paralelo (e penso que podemos) com as antigas províncias ultramarinas, ou "colónias" de Angola e Moçambique, e até antes disso a India Portuguesa, Goa, Damão e Diu. Em todos os casos, deu-se uma mudança abrupta, e antes disso existiam ali várias famílias portuguesas de gerações cuja origem na metrópole datavam a tempos em alguns casos imemoriais. Foi aquilo que se sabe, pronto, mas em Macau a comunidade portuguesa foi sempre residual e com
estatuto temporário. Nem sei que surpresa foi essa perante esta realidade, pois não deve haver um único português que chegue da metrópole e não pense em regressar. Primeiro porque não conhece Macau, segundo porque a situação política incerta (e não se julgue que agora está cimentada) podia obrigar a regressar a qualquer hora. Mesmo hoje entre os portugueses radicados e com habitação própria há quem mantenha sempre uma reserva "just in case". Mas se formos ver bem, há até chineses de Macau com raízes no território que têm o seu "plano de emergência" - e macaenses também. E não digam que "não é bem assim", porque é. Todos, claro que não, mas que os há, isso há.
O estudo da Vanessa Amaro foi realizado através de entrevistas a 60 portugueses, e posso quase arriscar dizer que encontraria outros 60 completamente diferentes, e os resultados seriam variáveis no essencial, mas certamente com outras particularidades. A comunidade é heterogénea, e vem mudando conforme o território muda também, mas temos vários elementos que se foram mantendo, e outros que se alteraram, desapareceram ou acrescentaram. Antes de 1999 não tínhamos tantos portugueses ligados ao sector da hotelaria, por exemplo, e desconhecendo ao certo detalhes quanto a esse respeito, penso que os magistrados portugueses e outros operadores da área do Direito estão na RAEM em comissão de serviço, e estes são um bom exemplo para determinar que faça-se o estudo que se fizer, acabamos sempre com um "não é bem assim". Temos casos de uma maioria de portugueses mas também alguns macaenses, e aqui podemos distinguir apenas por naturais da Metrópole e naturais de Macau, com filhos nascidos no território que vão depois estudar para Portugal ou para outro destino, e podem ou não regressar ao território - não vai ser um estudo ou dois ou dez que vão decidir o destino de cada um. A questão da língua, ou de que os portugueses não acham imperativo aprende-la, já sabem: "não é bem assim". Eu falo muito mal o cantonês, o que sei aprendi por carolice, e aperfeiçoei mais um pouco por necessidade. Nada de preocupante, pois o Português é também uma língua oficial, e não sei porque é que isso se deve reafirmar para umas coisas, mas neste caso constitui um problema. Isto leva-me à tal questão da "bolha", que só existe para quem quiser generalizar o que é simplesmente demasiado disperso para o efeito. Há portugueses que fazem o "ciclo" todo da passagem pelo território "inter pares"? O mesmo acontece com filipinos, indonésias, e não sei se já ouviram falar da comunidade de Fujian - serão esses um "gueto", também?
Finalmente quanto à questão do "emigrante", que vá-se lá saber como, houve quem lhe atribuísse um sentido pejorativo, e até meteu a comunidade filipina ao barulho e tudo. Perante tudo aquilo que referi no parágrafo anterior, é simplesmente um termo errado, não se aplica. Pode-se mesmo dizer que devido ao estatuto especial de Macau, não existem imigrantes - há trabalhadores não-residentes. Por outro lado os filipinos, e aqui falo do universo das empregadas domésticas e outras profissões que não requerem especialização, consideram-se eles próprios emigrantes no seu país, e é preciso não esquecer que as missivas em numerário enviadas pelos emigrantes representam uma parte significativa do PIB total daquele país. Acreditem, que eu já passei por isso; quando em Portugal me perguntam se estou "lá fora" (aliás basta olhar para a minha mulher e filho) e eu respondo Macau, não me consideram "emigrante", mas isso mesmo: estou em Macau. Isto tanto dá para quem tem noções do que é ou foi Macau, como para quem não tem (em 2001 quando lá fui as pessoas perguntavam-me "como está aquilo lá", e eu tranquilizava-as: "tudo bem") pois os destinos de emigração continuam a ser os mesmos: França, Alemanha, Suíça, etc.. Aqui pode-se afirmar com uma larga margem de segurança, sem qualquer "não é bem assim".
Quanto ao maior ou menor interesse dos portugueses no território, posso usar o meu caso concreto como exemplo: tem tudo a ver com os laços que se mantêm com a origem. Antes ia a Portugal de dois em dois ou três em três anos, mas actualmente passaram já cinco desde a minha última visita, e não é certo (é até improvável) que vá este ano. O tempo vai passando, a distância vai aumentando, e as pessoas vão mudando. De 23 anos que levo de Macau, começo a sentir cada vez mais diferenças quando lá vou, quem sabe as mesmas que outros que sempre aqui viveram notam com mais facilidade. Outro exemplo, e acho que ele não se importa que eu o use como referência, é o Afonso Carrão, do restaurante Afonso, outro radicado em Macau, como eu, e a quem vai sendo mais difícil regressar à origem. Quando ainda estava na Rua Central, uma vez o Afonso fechou durante um mês, deixando na porta um aviso onde se lia: "fomos a banhos ao Cartaxo". Confiando que isto era mesmo verdade, perguntei-lhe após o regresso "como está o Cartaxo", ao que ele retorquiu "era a brincar, fui para a Tailândia", acrescentando de seguida "estou muito velho para essa viagem". Ora lá está, "não é bem assim", nem ele é "velho demais" para ir, nem eu "ainda jovem" para ir todos os anos. Depende do que lá temos à espera. No fundo tem sido sempre assim em Macau, e é nestes cambiantes que se foi fazendo a matriz que o torna um lugar único no mundo, um "melting pot" de onde saem os que se vão encarregar da sucessão das gerações, e até outros que se vão lançando para o mundo. E isto é assim, e ainda bem.
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