terça-feira, 25 de novembro de 2014

Um dia de raiva (recado a Raimundo)



Uma notícia que fez eco na passada semana foi a da detenção de dois irmãos por suspeita de fogo posto. Os suspeitos, residentes de Macau e de nacionalidade francesa, terão ateado fogo a um sofá, que depois deixaram a arder junto ao andaime de bambu de uma obra situada entre a calçada do Bom Jesus e a Travessa do Colégio. Chamadas ao local por uma testemunha, as autoridades encontraram alguma hostilidade da parte dos suspeitos, que não só assumiram a autoria do crime (palavra forte, mas dura lex, sed lex) como ainda se mostraram pouco receptivos a colaborar com a investigação. Foi pena que reagissem desta forma, pois podia ser que o seu acto fosse entendido não como de puro vandalismo, ou sequer de rebeldia, mas antes de protesto, e com uma boa dose de simpatia por parte da opinião pública. Não se soube mais nada do caso desde que ambos foram apresentados ao Ministério Público na terça-feira, e o facto de terem aparecido encapuzados em imagens da edição do TDM News desse dia, dava a entender que o caso era grave. Contudo logo no dia seguinte vi um deles na loja de onde terá sido elaborado o plano, na Calçada da Paz, o que dá a entender que a medida de coacção terá ficado pelo termo de identidade e residência.

Apesar do nome sugestivo, é tudo menos "paz" que ali encontra o actual arrendatário do local onde em tempos se encontrava o "Meow Space", uma espécie de "orfanato" para gatos. Pierre-François Métayer, conhecido do público macaense pela série de filmes "Cantonese in One Minute", transmitida há alguns anos pela TDM, é o arrendatário de que vos falo, e penso que toda a gente sabe que é um dos suspeitos deste caso de fogo posto. Pierre alugou o espaço há alguns meses, com o intuito de abrir uma escola onde ensinaria línguas, teatro, e outras (detesto esta expressão) "artes performativas". Quem conhece o trabalho de Pierre-François Métayer sabe que se trata de um talento em bruto, e quem não conhece pode ficar a conhecer aqui, na sua página pessoal, pelo que o projecto prometia - fosse isso possível, caso a obra mesmo ali ao lado assim deixasse. Desde o primeiro dia que o francês, o inglês, o chinês ou o teatro têm como som de fundo o martelo pneumático, todos os dias, todo o santo dia, com início pontualmente às oito da manhã e fim às seis da tarde. Menos aos Domingos. Um dia Métayer cansou-se de viver no mesmo fuso horário da obra, terá cometido um acto desesperado, ou lembrou-se de uma forma radical de protestar - desconheço a sua verdadeira intenção e isso cabe à justiça determinar.

Apesar de não poder concordar com a atitude à margem da lei dos dois irmãos, não posso deixar de sentir também alguma simpatia pela sua evidente irritação. Como já tinha deixado patente no "post" de há uma semana que dediquei ao incidente, consigo ouvir o barulho das obras do 18º andar do prédio onde vivo, e imagino o que deve sentir quem mora mesmo ali ao lado. A própria Alliance Française, cuja sede se encontra mais acima da Travessa do Bom Jesus já manifestou também o desagrado com a situação. E não serão só os franceses que se queixam; é preciso não esquecer que Macau mudou muito nos últimos anos, há pessoas que trabalham por turnos e dormem de dia, durante o horário em que a lei do ruído permite aquele chinfrim. Não é possível fazer obras sem barulho, é lógico, mas a questão é apenas esta: serão mesmo necessárias TANTAS obras, todos os dias, o ano inteiro? Acabam obras aqui, algumas ficam incompletas, começam outras ao lado. Dois blocos à frente têm início outras obras, estas de renovação, e quem sabe se desnecessárias. Acabam essas, começam outras, e entretanto retomam-se as primeiras. É obras que nunca mais acabam, obras a dar com um pau. Com um pau não, com uma pua numa rocha de granito, ou algo que produza um som estridente.

Durantes os dias após o incidente, foi curioso observar as reacções nas redes sociais, e todas pareciam ir no mesmo sentido: reprova-se o acto, mas sente-se empatia com a causa, e parece estar-se de acordo que existem por aí obras "a mais". Não consegui deixar de estabelecer um paralelo com o que aconteceu e o filme "Falling Down", ou em português "Um Dia de Raiva", do realizador Joel Schumacher, um dos grandes sucessos do ano de 1993. O personagem desse filme, interpretado por Michael Douglas, "rebenta o último fusível" depois de mais um daqueles dias em que o inferno são os outros, e entra inicia uma escalada de fúria irrascível, com consequências imprevisíveis. A mim parece-me que o "inferno" a que se sujeitam os residentes de muitos bairros de Macau, constantemente massacrados com obras, barulhos, passeios esburacados, desvios, etc. podia ser relativamente amenizado (já que pedir para parar com esta verdadeira mina de ouro que é a construção civil seria pedir muito) houvesse um pouco mais de planeamento, e já agora de fiscalização. Fica então o recado para o próximo secretário da tutela, o Engº Raimundo do Rosário.

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