sábado, 1 de novembro de 2014

IMA vs. CCM: um ponto de vista



Publiquei anterior a este um artigo onde falo da mentira, dos mentirosos, e das formas como a mentira se apresenta. Tratei o tema, ou pelo menos tentei fazê-lo, sem o mínimo de preconceito ou tendência para fazer juízos de valor, e a própria palavra "mentira" é usada no seu sentido específico, ou seja, o oposto de "verdade". Não se tratou de censurar ninguém, mas devo confessar que fui inspirado por uma discussão que teve lugar no grupo do Facebook "Conversa entre a malta", a propósito de uma entrada de Roy Xavier, que recentemente fundou a "Internacional Macanese Alliance" (IMA), de que é ele próprio presidente. A discussão vem durando há alguns dias, e é notório que mexe com certas sensibilidades, como é adágio de tudo o que tem a ver com a comunidade macaense, mais precisamente com a legitimação da sua representatividade a nível global. Tive sérias reservas em abordar este tema, que insiro numa perspectiva muito "tribalista", muito particular, que passa por dividir (ou tentar dividir) o que já de si é muito pouco, e como tal acaba sempre por caber a cada um uma quantidade que mal chega para encher a cova de um dente. No fim aplica-se a velha máxima do sábio léxico proverbial lusitano, aqui adaptado para a realidade de Macau: "em casa onde não há balichão, todos ralham e ninguém tem razão". Se há alguém que pensa que isto não são contas do meu rosário, engana-se redondamente, e se a palavra "contas" é aquela que vos incomoda (e percebo muito bem a razão) então opto por outro chavão: é pato seco do meu chau-chau pele.

A "controvérsia", e coloco entre aspas porque acabou por ser um copo de água transformado num tornado, começou com esta notícia publicada no Jornal Tribuna de Macau (JTM), que dava conta da fundação da AIM por um grupo de dez associações da diáspora macaense, a maioria delas dos Estados Unidos e Canadá, e apenas duas filiadas com o Conselho das Comunidades Macaenses (CCM), sediado em Macau, e representante oficial (e não sei muito mais do que isto sobre esse assunto) das casas de Macau espalhadas por esse mundo fora, cabendo-lhe actualmente a organização do Encontro das Comunidades Macaenses, que se tem realizado de dois em dois anos, a última das vezes em Dezembro do ano passado. O corpo de fundadores da AIM regozijou-se com a menção no JTM, mas na segunda-feira seguinte o seu director José Rocha Dinis assinou um editorial onde tece considerações sobre a recém-criada associação, que só podem ser entendidas como mera opinião pessoal. É evidente que não concorda com o projecto, mas não carrega muito nessa intenção; "mau começo" é um miminho comparado com o que foi dito e escrito a partir daí.

Parte ofendida foi certamente o CCM, que se apressou a desacreditar quer a AIM, quer Roy Xavier. Este personagem de que nunca ouvi falar antes é aparentemente elemento de uma das associações da diáspora macaense, nomedamente da Califórnia, onde reside, e é professor no Departamento de Sociologia da Universidade de Berkeley, onde se dedica à investigação científica. Tem trabalhos publicados na área da comunicação social, incluíndo uma dissertação sobre a história da televisão por cabo nos Estados Unidos, intitulada "Distant Signals: a history of cable television in the United States", em 1988. Terá sido mais recentemente que Roy Xavier se começou a dedicar ao estudo de Macau e dos macaenses, e apesar de ter aparentemente caído de pára-quedas neste tema, existe trabalho realizado, mesmo que em língua inglesa, no sítio MacStudies, uma página onde divulga os resultados da sua investigação, (com uma apresentação do mesmo aqui, na mesma página), além de um canal no YouTube onde faz mais do mesmo, e segundo o próprio o projecto do "Arquivo Macaense" foi apresentado à Fundação Macau meses antes de se formar a AIM - julgo que ele terá provas do que afirma, caso lhe venham a pedi-las. Interessante o que se pode saber através de uma pesquisa na net, mais interessante do que tudo o que tenho visto escrito a respeito da pessoa: que "nunca viveu em Macau", "não é macaense", ou ainda "é de Xangai", como se isto tivesse alguma importância decisiva para esta discussão - "diz o roto ao nu: porque é que não te vestes tu?".

Quanto ao que tem sido feito pelo CCM no que toca à pesquisa sobre os macaenses no mundo ou a identidade macaense sei pouco. Sei o que me diz a página da associação, enfim, que é actualizada de quando em vez, a uma distância de meses. Mas o que é que isso interessa? As casas de Macau e afins espalhadas pelo mundo fazem o favor de deixar quem quer saber mais sobre os macaenses ou a cultura local na secção dos "links". Fazem tudo, que maravilha, menos receber os subsídios da Fundação Macau, claro, que para isso estão lá os seus iluminados representantes, pois então. E porquê? Porque segundo outro editorial do director do JTM a este respeito têm "obra feita há décadas". Uh? Bom, o CCM foi fundado em 2004, ou seja, há dez anos, o que equivale a uma década. Claro que se formos quantificar "décadas", podem ser seiscentas ou pode ser apenas uma, da mesma forma que eu vivo em Macau "há séculos" - 0,21 séculos, para ser mais exacto. Se vamos discutir este assunto como gente séria, nada como usar as mesmas armas, não é assim? Mas sem dúvida que este artigo do director do JTM produziu o mesmo efeito que teria atirar um carapau para um aquário de focas famintas: basta olhar para a tal discussão no Facebook e ler alguns dos comentários. O imperador teve o seu cristão atirado aos leões, e aqui por "imperador" entenda-se o CCM, e por "cristão" o dr. Roy Xavier.

Mas lá está, não quero ser desonesto; de facto o CCM existe apenas há dez anos, mas antes disso já existia a APIM, se bem que concordamos em discordar na tal "obra feita", que sempre partiu de iniciativas de privados. Tenho aqui mesmo à minha frente uma peça fantástica da história de Macau, o CD "Doci Papiá di Macau", uma recolha do material fonográfico de Adé dos Santos Ferreira, que reúne algumas das suas gravações no dialecto patuá, que foi produzido pela extinta Tradisom de José Mouças, que fez praticamente todo o trabalho em conjunto com Hélder Fernando, e com o apoio financeiro a ser dado na totalidade pelo Instituto Cultural, então ainda sob administração portuguesa. Nem nos agradecimentos vejo uma única menção ou agredecimento ou boné tirado a qualquer elemento da APIM ou quejandos, e apenas o nome de Miguel Senna Fernandes aparece como colaborador. Se isto não é relevante em termos de "obra feita" com interesse para Macau não sei o que é. Talvez a obra "Famílias Macaenses" da autoria do investigador Jorge Forjaz, uma espécie de "jóia da coroa" da identidade macaense, pesquisada praticamente na totalidade através dos registos na Conservatória do Registo Civil e da Paróquia Diocesana, e apresentado no encontro das comunidades em 1996. Agora prestem atenção a isto: este investigador descobriu 450 famílias macaenses! Quatrocentas e cinquenta! E isto só na primeira edição do livro! E agora, não vos dá vontade de rir? Só "um milhão de macaenses" é que tem piada? Mas já que falei de Adé, Miguel Senna Fernandes e das famílias macaenses, há que referir a questão da "identidade macaense", que tem um peso enorme quando se fala nisto da diáspora. Agora não se assustem, pois vamos entrar pelos caminhos do sobrenatural, apesar do "Halloween" ter sido ontem.


Buhhh...iô sân Adé....iô vir de ôtro mundo-mundo, falá vosôtro côza ser maquista...buhh...quim sân maquista, afinal?

Está bem, pronto, fora de brincadeiras. Aqui está uma citação de José Santos Ferreira, vulgo Adé, sobre esse mistério do que é "ser macaense", datada de 1996, ou seja, três anos depois...de ter morrido. Recolhi esta imagem da página "Memória Macaense", e sei que o meu caro Rogério da Luz não vai levar a mal, pois isto é demonstrativo da falta de consenso sobre a identidade macaense, que mesmo assim é atirada "à balda" sempre que se dá uma discussão sobre quem tem legitimidade para representar a comunidade e por conseguinte a diáspora. Quando o director do JTM se refere ao facto das conclusões do trabalho de investigação do dr. Roy Xavier indicarem a existência de "mais de um milhão de macaenses" como se fosse alguma piada, está a jogar uma parada alta - podem ser um milhão, ou até mais, como podem ser meia dúzia, e segundo o dr. Roy Xavier adiantou numa pesquisa serão "cerca de 150 mil e os seus descendentes". Tudo depende do que se entende por "macaense", e Miguel Senna Fernandes deu uma espécie de grito no deserto ao discutir esse tema da identidade, realizando no ano passado algumas sessões dedicadas ao tema, em que à boa maneira da casa, todos concordaram em discordar sobre esse conceito. Agora a pergunta que muitos devem estar a fazer: "quem é este 'ngao-sok' para vir meter aqui o bedelho nos assuntos da diáspora macaense"? Estava a ver que nunca mais perguntavam, pá!

Muito bem, quem sou eu, afinal? Para vocês, sou Deus. Ou pelo menos para alguns. É assim: se nos formos cingir à definição-tipo de macaense, "mestiço de português e chinês que fala ambas as línguas e nasceu em Macau", permitam-me que vos diga que o meu filho é 100% macaense - sem qualquer desprezo por seja quem for, mas sendo ele 50% de cada coisa, e falando a língua portuguesa e o idioma cantonense, "chapêau", sou o Gepeto da comunidade macaense. Demasiado redutor? Mais redutor ainda se por "macaense" entendermos toda a gente nascida em Macau, o que faz sentido, não fosse pelos próprios chineses terem feito essa diferenciação: "ou mun yan" (澳門人, literalmente "pessoa de Macau") para os chineses, e "tou san" (土生, literalmente "filho da terra", podendo ser ainda "nativo" ou "indígena") para os macaenses. Mas para ser macaense é preciso ter sangue português ou chinês? E se tiver só um? Ou nenhum deles, mas estiver inserido na comunidade, como estavam os seus pais? E se não falar ambas as línguas, mas apenas uma? E se não tiver nascido em Macau? Epá tantas perguntas. Vamos ver o que diz o dr. Alfredo Dias na sua tese de doutoramento em Geografia Humana, datada de 2011 e com o sugestivo título: "Diáspora Macaense: Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952)":
"(...) Os movimentos migratórios convergentes para o território de Macau, tendo como principais territórios de origem Portugal e China, e os movimentos migratórios que daquele território divergiram para o mundo, constituindo-se como diáspora, devem ser incluídos na caracterização da comunidade macaense, privilegiando-se o seu principal núcleo de organização social, isto é, a família macaense."
Aí está! Bingo! A família é a chave! A sua família é macaense, mas você não fala português nem chinês, e não nasceu em Macau, mas quer ser considerado parte da diáspora? Pôdi! Nasceu noutro país, os seus pais são macaenses, fala um dos idiomas ou ambos, mas prefere ser considerado cidadão do país de acolhimento para assim mais facilmente se integrar? Também pôdi! E sabe o que mais? Pode as duas coisas, também, assim como os seus descendentes! Não é ninguém que lhe vai dizer o que é ou o que não é só porque recebe subsídios! Aliás como eu próprio sugeri neste artigo o ideal seria a qualquer comunidade exercer em primeiro lugar a sua cidadania, que no caso de Macau é a de residente da RAEM, seja qual for a sua origem, e uma vez integrado dedicar-se a preservar os aspectos culturais que o diferenciam, sejam eles a gastronomia, o "kung-fu" ou a dança da chuva - qualquer coisa desde que não vá contra as leis do país onde residem. Mas o que é que eu sei? Tudo o que fiz foi contribuir com um elemento da comunidade (se ele se quiser considerar como tal) e uma definição de desonestidade intelectual, que pelo menos ajuda a explicar certas "tontices".

Aproveitava já agora para recomendar a tal tese do dr. Alfredo Dias, que podem ler aqui na íntegra, que não explica tudo mas é interessante, e dá algumas pistas sobre as primeiras migrações de macaenses que eventualmente viriam a dar forma à diáspora que está espalhada pelo mundo. Nunca ouviram falar do dr. Alfredo Dias? Pudera, esse nunca pediu nada a ninguém, e para elaborar a tese o único apoio remotamente local que teve foi uma bolsa de curta duração da Fundação Oriente e a simpatia do Consulado Geral de Portugal e do Arquivo Histórico. Já quanto a esse "malandro" do Roy Xavier, "o que ele quer é massa", que é a única explicação que se encontra aqui para justificar tudo e mais alguma coisa. Ah sim, "e quer desunir os macaenses". Pois quer, é por isso que congregou dez associações da diáspora na tal AIM e segundo ele há mais a quererem juntar-se. É o meu dicionário que está avariado, sabem? Diz lá que "congregar" significa "reunir, juntar". Que patetice a minha. Isto é vingança do tipo, que tem mau carácter, tudo porque em Dezembro durante o último encontro das comunidades "tentou que a sua associação fosse reconhecida pela CCM e viu o pedido recusado". Eu também sou um grande sacana, pá, e quando não me aceitam numa associação, vou a correr fazer outra...dez meses depois. Essa é melhor que a anedota do alentejano. E pouco importa que o próprio Roy Xavier explique tudo e mais alguma coisa na tal entrada no grupo da CEAM no Facebook, porque "deve ser mentira", assim como o seu trabalho, que afirma a pés juntos existir "um milhão de macaenses". Nem vale a pena ler, portanto.

E de facto fica mais fácil dizer mal e desvalorizar o trabalho dos outros que levantam o cuzinho da cadeira, sopram o pó dos arquivos, leem coisas e entrevistam as pessoas com o intuito de encontrar mais respostas. Dá muito trabalho, né? É melhor dizer que "o gajo não sabe" ou que não está credenciado, pois não tem "décadas de obra realizada". Assim não se preocupe sr. Roy Xavier, os "ignorantes de Macau" estão-se nas tintas para "os custos do seu trabalho intensivo", e têm tudo o que precisam. Sabia por exemplo que vai haver um Seminário dedicado ao tema "Protecção da Cultura de Macau - Provérbios, Frases Idiomáticas e Canções"? Ah espera lá, foi em Junho. Não faz mal, para o ano há mais! Numa coisa concordo: Roy Xavier não conhece Macau. Nem sabe onde se foi meter, coitado.

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