sábado, 29 de novembro de 2014

As mesmas faces de nenhuma moeda



Mais uma semana que termina, e nada como fechar com chave de ouro, com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Fiquem atentos para o vídeo especial de comemoração do 7º aniversário do Bairro do Oriente! Bom resto de fim-de-semana.

Se há algo que os chineses valorizam e que não se pode quantificar, transaccionar, penhorar, depositar no banco a render juros ou esconder debaixo do colchão, isso é a “face”. Outros conceitos abstractos como a dignidade, o bom nome, e até a um certo ponto a própria honra, são negociáveis, e há ainda outros como a sofisticação e o requinte que se podem comprar ao quilo ou à dúzia – basta ter dinheiro, e como diz muito bem o povo anglo-saxão, “money talks, and bullshit walks”. Mas o que não se pode comprar mesmo é a face, dê por onde der: esta “face” não tem valor…facial, por mais paradoxal que isto pareça. Claro que ninguém, independente da sua nacionalidade ou grupo étnico gosta de ser humilhado, de ser tido como um cobarde ou um frouxo, desprezado por todos e a quem as crianças chamam nomes feios quando por ele passam, porque os pais lhes disseram que “não era preciso dar-lhe cara”. É normal, e trata-se apenas de uma característica inata desse “animal social” que é o Homem.

No Ocidente temos a noção de que os cuidados com a imagem e a preocupação em manter uma “ficha limpa” são um problema das figuras públicas: políticos, artistas, atletas de alta competição, em suma, todos os que ganham a vida não só fazendo o que fazem, mas também sendo o que são, ou o que aparentam ser. A nossa natureza humanista faz-nos ter uma leitura mais tolerante de algumas situações; se deparamos com um desgraçado a ser enxovalhado por alguém sem razão aparente, temos tendência para censurar o agressor, e até intervir no caso deste passar dos limites do razoável. Dificilmente se tem em conta o factor da “face” do agredido nessas circunstâncias. Todo o resto se insere no âmbito das nossas relações pessoais, e tem muito a ver com a importância que se dá à ideia do “eu” que queremos passar. Há quem opte por simplesmente ser quem é, e está-se nas tintas para o que os outros pensam, mas nem todos nos podemos dar ao luxo de ser um Marquês de Sade, um Luiz Pacheco ou um Manuel João Vieira, e há que pelo menos respeitar o protocolo, mesmo que não nos dê vontade de cumpri-lo – uma colher de sopa cheia de hipocrisia de vez em quando ajuda a aliviar essa “tosse”.

Os povos asiáticos, talvez devido à rigidez dos seus códigos de conduta a que não é alheia alguma superstição própria das civilizações ditas pagãs, levam isto da “face” muito a sério, como se de um assunto entre mortais se tratasse, mas com uma registo a ser mantido pelos deuses – contas do profano que entram na declaração de interesses patrimoniais do sagrado. Aqui encontramos no Japão o extremo deste fenómeno; herdeiros dos antigos “samurai”, para eles a honra é tudo, e a “face” a medida visível desse valor. Não surpreende portanto que muitas vezes um político ou um homem de negócios caídos em desgraça, e que assim tenham “manchado o seu nome e desonrado o nome dos seus ancestrais” – ou qualquer coisa mais ou menos deste tipo, em tons de melodrama dos bichos-da-seda – suicidam-se praticando “hara-kiri”, ou remetem-se ao exílio solitário de um ermitão, ou tomam outra atitude drástica e intraduzível para os parâmetros ocidentais. Com os chineses é diferente, e mesmo não sendo tão trágico ou sequer irremediável, é igualmente sério, só que funciona como um jogo. Na posição de espectador é interessante assistir, e chega até a ser divertido, mas convém estar atento , não vá o touro saltar a trincheira enquanto estamos entretidos a bater palmas e a gritar “olés”. Pensar que o “jogo da face” é um assunto estritamente sínico e que não nos diz respeito tem esse senão: transmite uma falsa sensação de segurança.

Passo a contar um episódio que aconteceu comigo, que ilustra bem não só a importância desse valor da “face”, mas também prova que não há face que esteja imune a levar uma bofetada, mesmo que no sentido figurativo. Estava num belo dia de trabalho a verificar documentos, quando deparo com um pequeno lapso da parte de uma colega que confundiu “Áustria” com “Austrália” – um equívoco mais comum encontrar noutros nomes de países, casos de Eslovénia/Eslováquia, ou Mónaco/Marrocos, devido à sua forte semelhança quando traduzidos para a língua chinesa. Aqui penso que foi a romanização, a causa da confusão. Fui muito diplomaticamente pedir-lhe que corrigisse a falha, que nem tinha assim tanta importância, e para que não se sentisse melindrada até revesti o caso de alguma ligeireza, falando de valsas e cangurus, enfim, uma ou duas graçolas parvas para que ficasse bem claro que não era grave. Ela reagiu dentro do normal, tudo bem, foi emendado o lapso e assim se passou mais um dia. Na manhã seguinte fui abordado por um outro colega, que com um ar intrigado me perguntou “o que se tinha passado”. Foi aí que me caiu o queixo de espanto ao saber que a tal colega do dia anterior foi contar aos restantes que a “humilhei”, pois fiz “publicidade do seu erro”, e para tal “levantei a voz”, e pior do que isso, “tratei-a pior que um cão”. E porquê? Tudo porque no momento em que lhe apontei o lapso estava outro colega naquela sala, e portanto ao ignorar esse facto, fiz-lhe “perder face”.

Para quem tem seguido nas últimas semanas esta série de artigos que tenho dedicado às pequenas diferenças que encontramos no convívio entre as culturas Ocidental e Oriental, recomendo que leia (ou releia) o texto publicado no dia 6 de Novembro, “Horror ao erro”, que ajuda a entender melhor a reacção da minha colega. No entanto ficou aqui evidente que a perda de “face” tem também uma componente química. Dois amigos que se conhecem há anos podem ter a liberdade de apontar os defeitos um do outro, no contexto de uma brincadeira normal entre compinchas, mas na presença de terceiros, especialmente se estes forem estranhos, torna-se completamente proibitivo, sob o risco de “perder a face”. É como ter carvão e salitre: juntos não reagem, mas na presença do enxofre como um terceiro elemento, produzem a pólvora. Nesta arte de proteger a face, às vezes não importa tanto a forma como é apresentado o desaforo, mas quem o apresenta, mas esse é o tema da próxima semana. Fiquem atentos!


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