Uma das constatações mais duras que precisamos de fazer na vida é a de que toda a gente mente - todos mentimos e continuaremos a mentir enquanto as nossas forças o permitirem. Tomando consciência deste facto, o Homem regulou a mentira, categorizando-a a si e aos próprios mentirosos (ou seja, todos nós) de maneira a que não caíssemos na anarquia, obliterando o valor da confiança no próximo, que temos como precioso e sem o qual nunca poderíamos coexistir. Assim foram elaboradas escalas para determinar quem mente mais ou quem mente menos, e com que gravidade. Analisando a mentira e o mentiroso à lupa, existem portanto os factores "frequência" e "intensidade". Pode-se portanto concluir que mentir mais pode significar ser mais mentiroso, mas há quem minta menos e seja mais perigoso. Vamos esmiuçar estes conceitos.
Há quem passe a vida a mentir, há quem minta de vez em quando, ou seja, "o normal" e há quem faça o que pode para evitar mentir, ou minta menos. O ramo da psicologia identificou um tipo de indivíduo a que deram a designação "mentiroso compulsivo", ou seja, alguém que mente mesmo não tendo a consciência de que está a mentir. Este é um caso que não entra nestas contas, pois aqui prefiro falar apenas de quem mente conscientemente, e fá-lo com um objectivo ou um fim concreto. As pessoas que mentem muito fazem-no normalmente por duas razões: para adquirir vantagens, perpetuar essa ou outras mentiras ou simplesmente por negação, por não conviver bem com a verdade. Nesta análise vamos excluír o que é da competência judicial, como são os casos da fraude, do perjúrio ou da difamação, tipos de "mentira" a que cabe aos tribunais julgar, sendo aí a sede própria para o efeito.
No primeiro grupo encontramos quase sempre os políticos e os delinquentes. Pode parecer piada, mas apesar das diferenças, estes grupos partilham entre si o móbil da mentira. Assim um político recorre à retórica de duas formas: em campanha para convencer o eleitorado de que está a dizer a verdade, e já no poder para justificar as suas faltas, ou o incumprimento dos compromissos que assumiu inicialmente. Os delinquentes optam pela mesma estratégia mas de um modo diferente, mentindo para se protegerem, tentando convencer os outros de que são inocentes. Os toxicodependentes, por exemplo, são a par dos políticos os mentirosos mais criativos, pois tanto as substâncias de que dependem, que o poder que os políticos pretendem atingir têm um poder inebriante que estimula a imaginação. Posto isto basta "saber mentir", ou seja, dizer uma mentira com a mesma convicção com que se diz a verdade. Para isso é preciso que o interlocutor tenha a percepção das duas coisas, e observe exactamente o mesmo comportamento em situações de quem tem a certeza serem verdade, e outras em que tem dúvidas. No caso de alguém mentir perante outro que conhece a verdade, testemunhou os factos e consegue desmentir as alegações do mentiroso, diz-se que "se apanha um mentiroso mais depressa que um coxo". Convém não só saber mentir mas também saber a quem mentir.
No segundo caso, o de perpetuar uma mentira ou mentiras previamente tidas como verdades, encontramos a religião. Agora sem querer melindrar a fé dos crentes, todos temos consciência de que a Igreja, seja ela a Católica ou de outra confissão cristã, judaica ou islâmica, quer as crenças pagãs, acreditam em factos que não são possíveis de ser verificados, o que se convencionou chamar de "dogmas". Os dogmas têm vários graus; há coisas que são revestidas de um carácter sobrenatural mas que gostaríamos que fossem verdade, e que no nosso consciente atribuimos o benefício da dúvida. Outros há no entanto em que os próprios crentes têm sérias dúvidas da sua veracidade, mas continuam a acreditar por uma questão de coerência - o caso da dialética criação/evolução, por exemplo. Pode-se dizer portanto que a religião é um enorme pacote onde se encontram coisas que podemos aproveitar e outras que nem por isso, mas é preciso aceitar e conviver com todas.
Finalmente os que têm o hábito de mentir porque consideram a mentira uma alternativa mais plausível à realidade. Aqui encontramos aqueles que em linguagem corrente chamamos de "vaidosos" e "teimosos". Estas são pessoas que quer por ignorância, quer por arrogância não aceitam certas verdades por estas "desmontarem" total ou parcialmente o mundo onde vivem, e que consideram o melhor. Normalmente têm pouca tolerância a tudo o que seja contrário às suas convicções, e aqueles que os conhecem bem e sabem lidar com eles concordam com tudo o que ele diz, evitando entrar em discussões ou fazer o exercício do contraditório. Dependendo da "vaidade" ou da "teimosia" do indivíduo, este chega a fazer fé nas teorias mais absurdas que se possam imaginar, e reagem mal a tudo que se desvie do seu percurso em linha recta. Para eles a mentira dos outros é a sua verdade, e têm a tendência para achar que o mundo inteiro está errado com excepção deles próprios.
Quem não tem o hábito de mentir e fá-lo por necessidade, ou perante uma situação especial ou como último recurso está no pior dos mundos. Primeiro porque tem consciência do carácter nefasto da mentira, custa-lhe mentir, e mesmo em caso de sucesso o facto de ter mentido pesa-lhe na consciência. Quem descreveu melhor este sentimento de culpa foi o romancista norte-americano Edgar Allan Poe em "O coração revelador" ("The Tell-Tale Heart"), em que um homem calcula metodicamente um homicídio, mata e desmembra a vítima escondendo os seus restos mortais debaixo do chão da sua casa, para mais tarde ser assombrado pela batida do coração (provavelmente alucinatória) do homem que matou, vinda de baixo das tábuas do soalho sob o qual ocultou a prova do crime.
Mas o mais desagrádavel para estas pessoas que usam como medida dos julgamentos que fazem os seus princípios e a sua moral - que pode ser justa ou injusta, e am alguns casos atroz, mesmo que ingenuamente acreditem ser válida - é o facto de conviverem no mesmo mundo que os hipócritas. Estas pessoas que são apelidadas de hipócritas (um nome feio, mas no fundo todos temos um pouco de hipócrita) têm uma característica em comum: uma perspectiva muito pessoal do certo e do errado. São capazes de mentir em dadas circunstâncias com o pretexto de "apaziguar os ânimos" ou "não ferir sensibilidades", ou serem cínicas além dos limites do razoável usando como desculpa a pseudo-honestidade da "verdade doa a quem doer". O problema aqui é que uma vez que se bebe da fonte da hipocrisia, existe uma tendência para ser hipócrita com toda a gente, e mais tarde selecionar quem melhor se adapta a sua personalidade ou pode vir a ser útil, deixando cair todos os outros. A desvantagem é que entre os que ele mantém nas suas boas graças é difícil encontrar quem não se aperceba da sua estratégia, e o hipócrita fica assim à mercê da hipocrisia dos outros.
Finalmente temos os que evitam mentir o mais possível, ou que pelo menos tentam não mentir mesmo quando é convidativo fazê-lo. Diz-se de alguns que são "sinceros", mas tal coisa não existe. Isso é uma ilusão, e portanto já por si uma mentira. Entre os que não querem mentir existem dois grupos que parecendo extremos opostos, convergem em algo comum: a "alergia" à mentira. Assim há quem não queira mentir por convicção, pois acha que mentir "é pecado" ou por outra razão sonsinha. No fim acabam por ser obrigados a mentir, pois ao mesmo tempo que aprenderam que mentir é mau, aprenderam ainda que não se deve magoar os sentimentos alheios e que é feio fazer queixinhas. Portanto misturando estes três preceitos ficamos com uma mistela mais explosiva que o TNT, e o "santinho" passa a "mau mentiroso". Do outro lado temos o cínico, a pessoa que acredita na utopia que a verdade sairá triunfante sobre a mentira. Não se inibe de dizer o que sente e o que pensa, ou de apontar os defeitos de toda a gente, e acaba isolado a falar com as paredes, mesmo que esteja coberto de razão. Não mente mas é a mesma coisa do que se mentisse, pois vive uma mentira. É muito raro encontrar alguém com estas características, e é preciso não confundir o seu caso com "frontalidade" - quem é tido como "frontal" também sabe ser falso e hipócrita, só que o faz com mais astúcia.
Apresentados que estão os mentirosos - todos nós sem excepção - passemos às mentiras propriamente ditas. Temos um tipo de mentiras específico, as chamadas "mentiras brancas", e depois todas as outras. Diferencia-se ainda a forma como a mentira é apresentada ,e diz-se que "mente descaradamente" quem aplica a mentira sem os lubrificantes existentes para o efeito, figuras de estilo da mentira, que mais à frente vamos ficar a conhecer os graus de mentira existentes.
A "mentira branca" é normalmente usada para proteger os inocentes, e não produz qualquer efeito desagradável ou acarreta prejuízos. É exemploo de "mentira branca" fazer as crianças acreditar no Pai Natal, ou durante o velório do avô dizer-lhes que o velho "está a dormir", no caso do jovem não ter ainda uma percepção da morte e da perda de um ente querido. Com os adultos também se podem aplicar "mentiras brancas", mas isso pode ser perigoso e gerar um efeito contrário do pretendido. Se mentimos para proteger alguém ou nós próprios, é preciso ter em mente se não estamos a agir em prejuízo de terceiros, obstruíndo a prática da justiça, ou a contribuir para a perpetuação de uma prática danosa, ou para algum mal maior que possa advir da nossa percepção de que estamos a fazer o bem. Para quem mente, mas tem consciência de que essa conduta é errada. deve ponderar para que fim serve a mentira.
E daí partimos para as mentiras "não brancas", que não são necessariamente "negras", e tudo depende para que finalidade mentimos. Uma vez conscientes de que o facto de mentirmos não vai trazer nenhum bem de espécie alguma, depende do propósito e do carácter de cada um, e de como aceita conviver com a mentira. Pode-se mentir em proveito próprio, ora para retirar vantagens ou apenas para se proteger, ou para se distanciar de situações que lhe desagradam, ou em interesse de terceiros, mas uma vez que se opta pela mentira, há que ter em mente que se pode vir a apurar a verdade, e portanto existe sempre o risco de se passar por mentiroso, e as consequências determinam a gravidade da mentira, e tudo isto tem efeitos sobre a credibilidade e a honra - ninguém gosta de ser conhecido por "mentiroso", mesmo que isso seja verdade.
No extremo da gravidade da mentira temos as mentiras perigosas, das quais podem resultar prejuízos graves, ou gerarem equívocos difíceis de solucionar. Há os que vivem bem com isso, pois são vingativos ou no seu âmago consideram que a vítima da mentira merece o mal que dela tenha advindo. Quem acredita na eterna luta entre o bem e o mal pode identificar nestas pessoas algo de perverso, ou demoníaco, mas tudo depende da formação de cada um, que nestes casos normalmente é produto da indução de valores distorcidos. No extremo dos extremos temos os que mentem com frequência e usam mentiras perigosas para o efeito, e os seus actos podem resultar em conflitos graves, como guerras. Aqui remeto-vos para o terceiro e quarto parágrafos, onde falo dos políticos e das religiões. Se pensam que estou a exagerar, desafio-vos a que me digam que conflito armado recente não teve origem em motivações políticas ou religiosas.
Quem manipula os factos de modo a fazer passar uma mentira como sendo verdade tem à sua disposição uma vesta gama de expedientes, mas tudo acaba por depender quer da habilidade do mentiroso (e da credibilidade, e recordo a fábula do "rapaz que gritou "lobo!"", um excelente exemplo), quer da solidez dos seus argumentos, e finalmente da inteligência de quem espera que engula a sua patranha. Em vez de chegar à Rua da Mentira através da Travessa da Falsidade ou a Estrada da Calúnia, há quem prefira outros caminhos, casos da Alameda da Omissão, a Rampa do Exagero ou a sempre matreira Escada da Demagogia, onde os mais crentes caem quase sempre - coitados. Seja qual for o atalho ou desvio que se escolha, acaba-se em frente ao Centro Comercial da Peta, onde se vendem as interpretações extensivas e abusivas, as segundas leituras ou os juízos baseados no preconceito e na ignorância.
Há casos em que nem vale a pena discutir a validade dos argumentos. Um bom exemplo: numa cidade onde existem mil residentes são registados dois casos de gripe no mesmo dia. No dia seguinte quatro casos, e no dia depois oito casos de gripe. Posto isto, é credível prever que ao fim de dez dias toda a população esteja contaminada com gripe? Claro que não, pois a lógica aritmética não é aqui aplicável. Outros casos onde o que se entende por "verdade" depende da capacidade de argumentação ou da interpretação de princípios ambíguos são normalmente terreno fértil para os advogados, que - e com o todo o respeito e deferência pelas opções de cada um - fazem da mentira a sua profissão. Escusado será dizer que aqui alguns dos critérios são bastante obscuros, e por vezes a verdade e a mentira não são para ali chamadas.
Pode-se mentir por omissão, excluíndo de um contexto partes relevantes que sejam ao mesmo tempo determinantes para o seu desfecho, ou dar mais ênfase a outras irrelevantes, ou ainda exagerar os feitos de alguém, minimizando ou mesmo ignorando os defeitos, ou vice-versa. Lembro-me de repente da campanha contra o Islão, onde se compilam todas as notícias que dão a entender que se trata de uma religião onde só existe o ódio e a intolerância. É um facto que o Islão sofre de um déficit em termos de credibilidade, mas por outro lado é possível pegar em factos pouco abonatórios respeitantes a qualquer nação ou crença e produzir um efeito semelhante. No sentido oposto temos aquilo que é conhecido também por "propaganda", e temos o exemplo da nossa epopeia dos Descobrimentos, onde se dá mais destaque aos aspectos positivos do que ao sofrimento dos marinheiros que passavam meses nas naus entregues ao deus-dará, ou aos destinos onde eram recebidos de forma hostil, tratados como piratas ou usurpadores.
A todos estes "truques" para fazer passar a mentira como sendo verdadeira chama-se
desonestidade intelectual. Isto consiste na defesa de argumentos que se sabem à partida serem falsos ou tendenciosos, ou omissão consciente dos aspectos da verdade conhecida com a finalidade de alcançar um objectivo ou cumprir uma agenda. Perante mais ou menos evidências, isto pode ser chamado de "tapar o sol com uma peneira", ou "varrer o lixo para debaixo do tapete", e ainda "guardar esqueletos no armário" - como já disse um pouco mais acima, tudo depende daquilo que cada um considera válido, e de como convive com os seus fantasmas. Achei importante expôr aqui estas verdades sobre a mentira.
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