Fiquei perplexo com a
reportagem da edição desta quarta-feira do Hoje Macau, que depois de ler três vezes consegui finalmente perceber que falava de empregadas domésticas filipinas. Não de trabalhares não-residentes (TNR) em geral, mas de empregadas domésticas filipinas. Depois da primeira leitura, que admito, foi um pouco apressada, julguei que o tema eram electrodomésticos defeituosos. Da segunda vez, já com mais atenção mas sem paragens para "assimilar" o conteúdo, pensei que afinal se falava de gaivotas larápias, aquelas que roubam os gelados das mãos dos bebés e as dentaduras das avózinhas. Mas não, eram as empregadas domésticas filipinas, o assunto da reportagem - um problema novo, sem margem para dúvidas. Grave, também, grave como o problema dos táxis ou da habitação. Um ai Jesus, estas empregadas domésticas. E logo das Filipinas, o que fica bem evidente apesar da peneira caduca com que se foi tentando às vezes tapar o sol - com que então "empregados domésticos", uh, dr. Frederico Rato? Os episódios relatados dão a entender que se tratam realmente de ajudantes familiares (nome oficial dado agora às empregadas domésticas) originárias das Filipinas, e talvez uma da Indonésia - a criança agredida é uma imagem mais associada com as indonésias, e contam-se episódios tenebrosos a este respeito aqui ao lado em Hong Kong. Curiosamente o entrevistado que se queixa da agressão da parte da empregada ao seu filho é um dos poucos que não identifica a nacionalidade da sua ex-assalariada. Agora que "não confia em mais empregada nenhuma", suponho que seja ele ou ela a passarem a roupa a ferro, a limpar a casa, a ir buscar a criança à escola, e a tomar conta da mesma quando tem compromissos aos quais o pequenote ou a pequenota não podem assistir. O mais provável é que encontre outra em regime de "part-time", pedindo "emprestada" a algum amigo - o que é ilegal, e é também uma parvoíce que assim seja. De facto podíamos ser nós a realizar as tarefas domésticas, porque não? Afinal os nossos amigos lá em Portugal vivem sem empregada e vão-se desenrascando. Nós é que somos uns sortudos. Uns acomodados.
Agora antes que perguntem o que me leva a tratar esta notícia com tanta "dureza" permitam-me que apresente primeiro as minhas "credenciais". Conheço filipinos desde que cheguei a Macau há 21 anos. Pode-se dizer que foi a primeira comunidade com que me comecei a juntar, uma vez que a nossa, a portuguesa, andava mais entretida a tratar do lugar onde se "encaixar" quando se desse a transição e demorei muito tempo a conhecer "malta da minha idade",e mesmo estes estavam quase todos de malas feitas. Sem dominar a língua chinesa, comecei a relacionar-me com filipinos, que me pareciam um povo acessível, divertido, e que de entre todos os restantes da região mais semelhanças tinham connosco. Têm aquele mesmo "fogo latino", a mesma descontração, sensibilidade e são religiosos, tementes a Deus, ou quem sabe ainda mais, conseguindo mesmo assim manter uma sobriedade em relação a esse aspecto que gostaria de ver mais entre os nossos. Como era ainda um jovem que nem 20 anos de idade tinha, não me "pus a jeito" para ser vítima dos mil e um esquemas pelos quais os filipinos ganharam má fama. Cheguei a viver com filipinos, tal e qual como os filipinos vivem, sentando-me à mesa com eles, escutando a sua música, vendo os seus filmes, e através dos seus diálogos aprendi a falar o seu idioma, o tagalog. A única diferença era o facto de viver sozinho num dos quartos, e em contrapartida pagava metade da renda. Esta é mais um mistério que deixa os portugueses em Macau a andar com a cabeça a roda: se alguns vivem mal com um salário de 12 mil patacas, como vivem os filipinos com um terço desse valor, ainda mais mandando quase a totalidade para o seu país? A resposta encontra-se na própria pergunta: nós viemos para aqui VIVER, a prazo ou em definitivo pouco importa, eles vieram para SOBREVIVER, enquanto prestam auxílio à família lá no seu país, que conta os dias até chegar o dinheiro que enviam no fim do mês por uma dessas agências "Door-to-door". Mas se queira que vos diga como viviam sem praticamente um tostão no bolso durante quase um mês inteiro? Iam vivendo, e não se queixavam, mas é desses expedientes que estamos aqui exactamente a falar, e não dá para entrar em detalhes, mas já lá vamos.
As Filipinas são o 12º país mais populoso do mundo, com mais de 100 milhões de habitantes a viver no país e uma diáspora que em 2007 era na ordem dos 12 milhões. Só na emigração o número de filipinos excede a população portuguesa, e nas Filipinas vivem sete vezes mais pessoas que em Portugal, Hong Kong e Macau todos juntos. É um país cuja História se cruza com a nossa,tendo ficado célebre a morte do navegador português Fernão de Magalhães às mãos de um chefe tribal que recusou a conversão à fé cristã. Foi também Magalhães que levou para Cebu uma imagem de Cristo enquanto criança, adorada em todo o país e especialmente na região de Vissayas - fomos nós que levámos o cristianismo para o maior país católico da Ásia, o único de maioria cristã. E é isto que queremos reduzir à empregada que roubou o relógio, pediu dinheiro emprestado e não pagou, e que mente ao ponto da mesma avó lhe morrer três vezes num ano para se ausentar ao trabalho? Depois da independência o país conheceu um período de relativa prosperidade, graças à sua enorme riqueza em recursos naturais, mas esse caminho foi abruptamente interrompido pela Guerra do Pacífico. Depois da derrota dos japoneses, que invadiram o país e cometeram tantos ou mais crimes horríveis que na China, as Filipinas passaram a ser um protectorado dos Estados Unidos. Isto foi bom e mau, inicialmente, e depois veio a provar-se ser um desastre. Bom porque nos primeiros tempos dois pesos compravam um dólar, os filipinos não aproveitaram essa vantagem e acomodoram-se, ao mesmo tempo que entrava em cena Ferdinand Marcos, a célula cancerígena que minou o país de corrupção até hoje. Quem ainda ousa dizer que "as Filipinas estavam melhor no tempo de Marcos não sabe do que fala; quando chegou à presidência em 1965 a dívida externa do país era de 360 milhões de dólares, e quando foi derrubado do poder em 1986 era de 28,3 mil milhões. Onde foi parar aquele dinheiro todo? Para as contas no exterior em nome de Marcos, da sua família e dos seus amigos, e que os filipinos AINDA HOJE estão a pagar com os seus impostos.
Penso que não será necessário dizer que foi também durante a presidência de Marcos que se começaram a dar os primeiros grandes fluxos de emigração. Em 1975 emigravam menos de 20 mil filipinos por ano, número que começou a crescer exponencialmente a partir de 1979, quando foram criadas as agências privadas de emprego, e hoje emigram mais de 1 milhão por ano. A actual diáspora situa-se nos 12 milhões, como já vimos mais em cima, e os rendimentos que enviam para as Filipinas constituem 13,7% do total do PIB. Agora preparem-se para se sentirem insignificantes: 80% do dinheiro que os emigrantes mandam para casa vem de três países, e nenhum deles é Macau. Nos Estados Unidos existem 3,5 milhões, na Arábia Saudita e nos Emirados Árabes Unidos mais de 2 milhões, fazendo do tagalog a segunda língua mais falada nesses países, à frente do inglês, e só na Itália, pasme-se, existem 170 mil emigrantes filipinos. Não vejo os italianos tão preocupados com esse número como tanta gente em Macau com os 15 mil que cá temos, que são vistos quase como um "problema". E no contexto da Ásia os filipinos consideram vir para Macau trabalhar um prazer, pois talvez com a excepção de Taiwan e Hong Kong (e talvez Singapura), em todos os restantes países asiáticos são tratados muitas vezes abaixo de cão. De fora destas contas fica o Japão, onde é tudo "business" e o dinheiro aparece mais rapidamente. Que o digam os mais de 200 mil filipinos que lá trabalham. Macau é um território pequeno, onde os emigrantes podem usufruír de uma vida mais tranquila do que em outros grandes centros urbanos - mesmo Hong Kong, onde muitos só vêem a luz do dia ao Domingo quando têm folga, e é bem possível que se acomodem à RAEM, onde têm muito mais liberdade. Se existem abusos? Há abusos em toda a parte com todas as nacionalidades, mas sou capaz de garantir que aqui ainda é um dos locais mais seguros para quem está mais exposto a esse risco. Existem acusações fraudulentas de abuso, sem dúvida, e digam-me o que disserem, nos casos dos abusos sexuais, uma mulher que não queira MESMO ser usada dessa forma por um homem resiste, e caso se concretize então estamos na presença de um caso de violação. Se a ideia fosse obter contrapartidas e depois seja enganada, resolva lá como entender, sempre sem se esquecer que aqui existem leis, e castigos para quem não as cumprir. Acho graça às mulheres que acusam as empregadas de se "fazerem" aos maridos, esse anjinho casto que estava ali muito sossegadinho quando apareceu aquela "indígena" para o atacar.
Convido-vos para visitarem as Filipinas, mas o país real, não os "resorts", as ilhas que aparecem nos panfletos turísticos, e por amor de Deus evitem Manila, que é a "expo" de tudo o que de mau existe naquele país, desde o crime à corrupção, passando pelo exploração do sexo infantil. Vão até ao interior, ao fundo da realidade daquele povo, ao tal "bundok" que fiz referência no artigo da semana passada do Hoje Macau. Ali vão conhecer pessoas que não emigraram mas querem fazê-lo, vão conhecer mulheres ainda muito jovens com bebés de colo, e cujos maridos saíram do país para encontrar sustento, homens cujas mulheres trabalham também no estrangeiro, muitos deles já com outra mulher em casa para fazer as vezes da mãe dos filhos, e já que vos causa confusão como é que alguém consegue viver com algumas centenas de patacas por mês (ou nem isso) venham ver como se vive com nada, e já agora como aquelas 3 ou 4 mil patacas que para nós não são nada fazem ali milagres: alimentam, vestem e pagam os estudos a uma família inteira - ou às vezes duas - e vai chegando, isto é, senão houver algum "azar". Sim, de facto a maioria das vezes em que o pai, o irmão ou o cão precisam de uma operação, trata-se de mentira, pois se não for, eles tratam de ligar para o familiar lá em Macau vezes sem conta, e logo a partir das seis da manhã, que é quando começa ali o dia. Às vezes o problema não é assim tão grave, mas eles fazem questão de dizer que é, não por maldade, mas porque sabem que não há outra forma de obter esse dinheiro. Se estivermos a meio do mês, ou ainda a uma semana do vencimento, pode começar a surgir algum nervosismo, e daí para o desespero basta um telefonema que diga apenas isto: "o teu filho está internado, é grave e os médicos interrompem o tratamento se as despesas hospitalares não forem pagas". É aí que começa a valer tudo; algumas empregadas domésticas prostituem-se, e as que não podem ou não têm "estômago" para isso (às vezes acontece) penhoram objectos de valor, e caso não tenham nada que valha penhorar, contraem dívidas a compatriotas seus, e em última instância são capazes até de roubar. Este acto, o de "roubar", não é exclusivo dos filipinos, caso ainda não tenham dado conta desse pormenor. Agora queriam o quê, que elas vos contassem a história das suas vidas, sabendo que no fim dificilmente acreditariam nelas?
Se aceitarem este desafio, ficam a conhecer melhor a realidade destas gentes, e vão perceber também que muitos dos que ali estão, parecidos com aquela empregada a quem confiaram dez mil patacas e nunca mais a viram, que vos furtou o relógio ou levou 50 patacas que deixaram DE PROPÓSITO à mão de semear para testá-la, como se fosse um macaquinho amestrado, são pessoas que ali nasceram e cresceram, e nunca dali sairam. Inocentes como os anjinhos do Céu, e uma vez aqui chegados, tomando contacto com um mundo muito diferente do seu e com os compatriotas mais "sabidos" (é apenas natural que os procurem) adoptam os mecanismos de sobrevivência, que é algo que qualquer um de nós faria no seu lugar. Uns fazem-no bem, outros menos bem, outros ainda deslumbram-se e acabam desviados para maus caminhos, há um pouco de tudo, como em toda a parte: bons, maus e assim-assim. Entretanto continua a haver a tendência para os despersonalizar, vigiar, controlar, programar como se fossem um robô de cozinha. Se desaparece qualquer coisa, foi a empregada, ponto final,. Há pais que nem sonham por onde os filhos andam, com quem, ou se estão metidos em algum sarilho, mas insistem em plantar câmaras de vigilância pelos cantos da casa para saber o que andou a empregada a fazer entre as duas e meia e as três da tarde. Não estou aqui a dar sermões a ninguém, não me julgo uma autoridade no assunto nem estou a pedir para ser consultado cada vez que se analisam as pessoas quase de um ponto de vista antropológico, quais pigmeus da Papuásia em contacto com a civilização. Nada disso. O que procurei saber fiz para que pudesse entender melhor estas pessoas, sim, pessoas, e nem sei como por vezes cometemos a arrogância de os olhar de cima quando somos nós próprios um país de emigrantes. Eu fiz o meu trabalho de casa, só isso. Agora procurem também vocês a luz, antes de fazerem julgamentos em causa própria.
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