sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Conta, peso e medida



Aí está o fim-de-semana do Grande Prémio, os quatro dias do ano em que a cidade, que já mancava de uma perna, anda também com o braço ao peito. Enquanto se vão fazendo ouvir as queixas sobre o trânsito e aguardamos os contos de fantástico sobre os taxistas, deixo-vos com o artigo de quinta-feira do Hoje Macau (edição electrónica não disponível), e os desejos de um bom descanso, dentro da medida do possível. Salut.

“Mesmo a maior das caminhadas começa sempre com um primeiro passo” – esta uma frase cuja autoria se atribui ao Buda, e que para mim faz todo o sentido. Assim como um pequeno passo pode ser o início de um longo percurso em direcção a um destino incerto, é possível que este simples artigo possa ajudar a entender melhor algumas diferenças entre a mentalidade ocidental e oriental, e que se evidenciam no dia-a-dia de uma pequena cidade como é Macau. O caso que pretendo expôr hoje é um dos mais intrigantes, dos mais difíceis de entender, pois não existe uma tradução exacta quando transportado para a nossa cultura. Mais uma vez recordo que este é um artigo de opinião e as minhas conclusões são, como o nome indica, minhas, obtidas através de observação e resultantes de experiências pessoais.

Muitos leitores devem recordar-se certamente de um incidente que ocorreu com um distinto elemento da nossa comunidade por ocasião da abertura do último Festival da Lusofonia. Uma conhecida causídica e presidente de uma associação de matriz portuguesa “perdeu as estribeiras” devido a uma alteração de última hora na programação do festival, e foi possível observar a sua indignação através das imagens na televisão – uma “reacção a quente”, como alguém fez questão de referir, mesmo que aqui o “calor” tenha demorado alguns dias a passar. O que mais me chamou a atenção foram as declarações publicadas na imprensa no dia seguinte, onde a personalidade em causa dava conta de “uma série de obstáculos”, e não fosse a boa vontade demonstrada pelas altas individualidades da RAEM, “dava a impressão que alguém não queria que o festival se realize”.
Vou confessar uma pequena maldade: quando li estas declarações daquela nossa compatriota, pessoa por quem tenho aliás uma enorme estima, não pude deixar de sorrir. Foi mais do que um sorriso, mas não chegou a ser uma risada, e garanto que não foi por desdém ou por ter achado cómico ver a senhora naquela aflição; nada disso. A minha reacção explica-se pela forma intempestiva como alguém com mais de três décadas de convívio com esta civilização encarou algo que acontece com bastante frequência. É simples: tratando-se de uma profissional liberal, que raras vezes ou nunca se encontra numa posição de subordinada, foi apanhada de surpresa em pé de igualdade com outra(s) entidade(s), com quem necessitou de fazer uma articulação de funções. Ao não conseguir fazer a leitura adequada das circunstâncias, caíu na cilada, e sem saber deu uma explicação que lhe era pedida. É confuso, este raciocínio? Nunca poderia ser fácil de entender, pois também não é fácil de explicar.

Acredito que a intenção nunca foi a de colocar entraves à realização do Festival da Lusofonia, como foi deixado bem claro por uma personalidade do Governo presente na altura do incidente. O que se passou aqui foi uma espécie de teste; quanto é que a organizadora quer que o festival se realize, até onde pode ir para que se concretizem os seus intentos, quais são os seus limites, e a que temperatura atinge o ponto de ebulição. Aqui devo dizer que fiquei um pouco desiludido, pois esperava mais “dureza de rins” da parte da nossa representante. Mas se isso acontece com alguém numa situação esporádica onde não está no controlo total das operações, imaginem como será com quem se encontra subordinado a outrém, exposto frequentemente a esta “especificidade”. O mais curioso é que isto acontece quase que subliminarmente, e é provável que nem tenha sido a intenção de ninguém irritar aquela responsável pela organização da festa, mas “já que aconteceu”, ficou identificado o seu nervo mais sensível, catalogado, e arquivado para referência futura.

Para os chineses tudo tem conta, peso e medida, e nada acontece por acaso. O abstracto não tem valor, e apenas “porque sim” não é resposta. Qualquer coisa que se faça tem um objectivo, ou serve de meio para atingir um fim. O próprio conceito de “diversão” ou de “lazer” é diferente do nosso, e até um simples jogo de “mahjong” entre familiares – mesmo com crianças – não dispensa pelo menos uns trocados em cima da mesa para apostar em cada jogada, “para dar sentido”, pois caso contrário, “qual é o interesse”? É possível que já vos tenha acontecido um colega chinês se tenha aproximar de vocês durante um período, desenvolvendo uma aparente relação de amizade, para depois se afastar inexplicavelmente, deixando-vos um pouco baralhados, com um sentimento de culpa, e a interrogam-se sobre o que teriam feito de errado. Não fizeram nada, pois é provável que o ou a camarada estivesse apenas a “estudar-vos”, apenas isso. Não estou aqui a generalizar, e claro que existem casos em que a intenção pode ser boa, e a amizade, ou pelo menos alguma empatia, genuína. Estou apenas a dizer que “pode acontecer”.

A forma como os chineses encaram as relações pessoais diverge da nossa: enquanto temos a tendência para fazer uma abordagem mais abrupta, directa e descontraída, deixando saber tudo e mais alguma coisa sobre nós, a nossa personalidade, gostos, dando a ler o nosso perfil, revelando qualidades e fraquezas, os locais preferem um certo distanciamento, mostrando reserva, alguma frieza ou até indiferença – uma táctica de “esconder o jogo”, que por vezes pode ser interpretada como um sinal de rejeição. Penso que neste particular não estou a anunciar nenhuma novidade, pois muitos de nós já chegou a esta conclusão. Talvez por isso se torna mais difícil entender porque teimamos em cair na mesma armadilha que a presidente da nossa agremiação por ocasião do Festival da Lusofonia. Vou terminar da mesma forma que comecei, com uma citação do Buda: “A vida não é uma pergunta para ser respondida, mas a um mistério para ser vivido”.


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