quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O paradoxo de Song Pek Kei



Em primeiro lugar queria tirar o chapéu ao director do Jornal Tribuna de Macau, Sérgio Terra, que assina hoje um editorial que é um exemplo de sintonia em termos de opinião que até assusta. Esta passagem por exemplo: "Em causa estava uma tese que tem vindo a repetir: “a grande procura de arrendamento das fracções pelos TNR” fez subir as rendas, “obrigando os residentes a viver sob o alto preço dos imóveis e a grande inflação” e fomentando “conflitos sociais” é tão idêntica, talvez com a ordem das ideias e uma ou duas palavras ligeiramente diferentes daquilo que escrevi durante uma troca de SMS que tive ontem à tarde com outra pessoa, que quando li o texto mandei imediatamente uma mensagem a essa pessoa a alertá-la. Uma coincidência quase telepática, ou não, pois qualquer pessoa com o mínimo de bom senso e uma educação média com uma noção básico de humanismo sabe quão errado está recorrer a um critério de uma ciência exacta - a Economia - usando um factor humano, e numa leitura mais atenta, étnico. A questão que aqui se coloca é a seguinte: quanto valem os TNR na equação da lei da oferta e procura? Certamente mais que a unidade, que será quanto vale um residente que procure alugar um casa em Macau, e não será com toda a certeza uma casa igual às que os TNR procuram, e nem por isso as rendas são mais baixas. Em suma: os TNR são o bode expiatório de um problema maior, e tanto os prevaricadores (senhorios, agências, intermediários & especulação) como as suas vítimas ("ou mun ian" que não querem ficar a viver com os pais) concordam:

- "Tanto? É caro..." - diz o perú.
- "Pois é...são os TNR, sabe?" - responde o agente imobiliário, repetindo o "sabor do mês" que lhe ensinaram para justificar este tipo de extorsão institucionalizada, sem que consiga sequer explicar a razão que acabou de apresentar para "comer a pinha" do tótó ali parado à sua frente - "É a vida...", filosofa, enquanto encolhe os ombros.
- "É verdade, malditos TNR! Dão cabo da nossa qualidade de vida!"
- "Pode crer, a virem para aí encarecer a habitação, a viver aos dez de cada vez numa fracção"

Ao Sérgio Terra supreende que os deputados não tenham chamado a atenção para o problema, como fazem noutras situações com contornos menos trágicos, e de repente podemos explicar isto pelo facto dos TNR não votarem. Podemos ainda questionar a estranha apatia da Caritas ou das associações de matriz cristã, tendo em conta o mediatismo que a notícia tem tido vai para uma semana e meia. Também acho curioso que a nossa comunidade hesite em apelidar este discurso de xenófobo, quando o fez sem pestanejar aos democratas, e por muito menos do que isto. Numa observação mais atenta, e voltemos a fazer aqui as tais contas de mercearia que Song Pek Kei fez, mas mais detalhadas. Digamos que os números são mesmo estes: 162,877 - 160 mil vá lá. Sou capaz de apostar que nem metade dos TNR nestas contas são originários das Filipinas e da Indonésia, nacionalidade das vítimas que fizeram a sra. deputada expressar a sua preocupação pela "segurança" - um terço já será um número acima da realidade, vendo bem as coisas. Mesmo que sejam 50 mil, muitos destes encontram-se em regime de "stay-in", ou seja, vivem na casa dos empregadores e têm um dia de folga ao Domingo. Se vivem em média cinco ou seis no mesmo apartamento, conseguimos reduzir este número absurdo de centena e meia de milhar para menos de 10 mil. Eu diria cinco mil ou menos, muito menos. Afinal nesta contabilidade entram os apartamentos alugados, não o número de pessoas lá dentro, certo?

E quem são os restantes cem mil TNR, de grosso modo? Bom, não mencionei os nepaleses, vietnamitas ou trabalhadores contratados de outras origens do Sudeste Asiático, além dos "expats", europeus, americanos, australianos, etc., mas esses nem começam a raspar a terra, quanto mais chegar ao fundo do poço. Assim temos os operários da construção civil oriundos da China continental, e além dos pedreiros e trolhas em geral há ainda carpinteiros, electricistas, e outra mão-de-obra especializada ou relacionada com os acabamentos, algo que em Macau está em falta. É verdade que muitos destes vivem no continente, vêm cedo para Macau e apanham o "shuttle bus" de um dos casinos que vá para a fronteira das Portas do Cerco e assim economizam no transporte, ao mesmo tempo que não entram nestas contas. Mas estamos aqui a falar de um terço dos TNR que Song Pek Kei mencionou, portanto muitos deverão viver em Macau, e em condições de "segurança" idênticas ou piores à das vítimas da fatídica noite de dia 11 para 12 deste mês. Portanto há TNRs para todos os gostos, e há até os que ganham relativamente bem e têm alojamento gratuito e ainda se queixam, e outros que ganham mal e ainda acham que estão melhor que no seu país de origem. A forma como se aborda a questão dos TNR, analisam-se os problemas e se procuram encontrar soluções, nem parece que estamos a falar de pessoas, mas de cachorrinhos: "Uma lata de ração não chega? Vamos dar-lhes duas".

Agora guardei o brinde deste "Bolo Rei" para o fim. Aqui em baixo de onde eu moro, na Rua da Praia do Manduco, existe um edifício que está alugado na totalidade por estudantes...da Universidade da Cidade de Macau. E este é apenas um de muitos um pouco por todo o território, e não são propriedade daquele estabelecimento de ensino superior, que recorde-se, foi adquirido há alguns anos por Chan Meng Kam, o nº 1 da lista que elegeu Song Pek Kei. Estes estudantes pagam renda, nem mais nem menos que os outros, e também entram na equação da procura e não vivem ao sete ou oito de cada vez na mesma fracção. São até endinheirados, os moços, e os comerciantes daquela zona gostam do os ter por lá, pois gastam nas suas lojas sem olhar a despesas ou fazer contas de cabeça, ao contrário dos filipinos e indonésios, que para além de terem menos poder de compra, são mais facilmente identificáveis, e destacam-se dos restantes quando "fazem número" nos transportes ou nos locais públicos, que segundo a sra. deputada "são do uso exclusivo dos residentes de Macau", que desta forma "perdem qualidade de vida", causando os tais "conflitos sociais".

Portanto Song Pek Kei pode estar até a ser hipócrita - nada de surpreendente para quem uma vez disse que os animais eram "coisas" - pois contribui para o problema o qual se diz "preocupada", mas sabe para quem fala, quem é a sua audiência, e chego a duvidar que este discurso "estranho" venha inteiramente daquela cabecinha de anjinho. Perguntei a opinião a outros residentes, que lhe deram razão, pelo menos inicialmente, e mesmo depois de lhes fazer ver que esta análise era tendenciosa e desonesta, anuiram, mas continuam a dizer que "não está 100% errada". Não está, de facto, nem Hitler estava 100% errado, e até a "solução final" que conduziu ao horror do Holocausto foi aprovada por uma maioria no parlamento do Reich. Tudo conforme a lei, o que se pode pedir mais? Mas não fica por aqui o paradoxo da sra. deputada, cujos pais eram imigrantes oriundos de Fujian: se tivessemos uma Song Pek Kei quando Song Pek Kei nasceu, não tinhamos agora uma Song Pek Kei. Parece complicado mas é bastante simples - é como apontar um dedo, ou como partir a corda puxando pelo seu lado mais fraco.

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