Não se pode dizer que os chineses em particular ou os asiáticos em geral tenham um sentido de humor muito apurado. Quantos de nós, principalmente os que já vivem na região há uns bons anos, foram já vítimas de equívocos e mal entendidos derivados de diferenças culturais ou simplesmente do nosso conceito de humorismo divergir em muitos aspectos do mesmo conceito nestes povos.
Basta olhar para muitos dos programas que passam ao serão nos canais de Hong Kong para perceber que o público desta região ainda não passou Da fase do
slapstick, ou seja, da velha “torta na cara”. Reflexo disso é o grande sucesso de actos como Charles Chaplin ou Mr. Bean sobre outros com muito maior sentido irónico e ricos na ancestral e mui incompreendida arte do trocadilho, como os Monty Python ou mesmo do já desaparecido Benny Hill.
Eu pessoalmente acredito que a preferência pelo
slapstick é, mais do que uma preferência humorística, uma forma de exorcismo. É engraçado que fulano tenha caído no chão porque escorregou numa casca de banana, ou batido com a cara numa porta porque foi ele, e não eu. É pouco importante que se tenha magoado, já se tivesse sido eu isso teria sido uma tragédia. É na dialéctica do cómico-trágico que assenta a gargalhada.
Observe-se o exemplo de Mr. Bean (e o cómico Rowan Atkinson tem no seu currículo actos muito mais engraçados). Um
kwai-lou representado de forma absolutamente surrealista capaz das maiores palermices, por vezes impossíveis de realizar do ponto de vista logístico. O público de Macau ficou louco pelo Mr. Bean na parte final dos anos 90, e ria a bandeiras despregadas mesmo sem que o cómico dissesse uma única palavra que fosse durante as horas que duravam os DVDs com as suas aventuras.
Eu confesso que sim, era fã do Mr. Bean. Quando tinha aí uns 12 anos, bolas! O mais desgradável é quando os miúdos me vêem na rua ou no meu prédio e chamam-me “Mr. Bean”. Além de não ser portador da minima semelhança física com o personagem ou sequer o actor, penso que se trata de uma rude generalização por parte da rapaziada. Um
kwai-lou qualquer, de fato, relativamente alto, sem barba nem bigode, só pode estar preparado para se “meter numa alhada” ou descair os braços e fazer caretas de atrasado mental. Foi isto que o Mr. Bean ensinou.
Veja-se como têm muito pouco sucesso os clubes de comédia na região. Como a
stand-up comedy não tem a mesma expressão que tem nos estados Unidos e vai tendo na Europa (talvez tenha alguma nas Filipinas ou outro lugar onde se note mais a influência Americana). No fundo é uma questão estrutural; o humor, graças a muitos anos e várias formas de repressão, não assenta na temática ideologica. Não existe uma cultura de humor anti-regime (como houve em Portugal com o teatro de Revista, por exemplo) e mesmo em locais mais livres e desenvolvidos como Hong Kong dá-se preferência a um tipo de humor mais imediato, compacto e preguiçoso, em que não seja necessária andar actualizado ou consumir informação para se rir.
Exemplo disso é por exemplo o comediante
Eric Tsang. Para mim a primeira coisa que penso quando o vejo é em mudar de canal. A ideia de que só o facto de ser baixo e gordo é suficiente para ser cómico não cola, a juntar a voz rouca e irritante e a forma como explora os adereços (óculos escuros gigantes, perucas ruivas ou casacos amarelos) e pensa que isso só por si já é suficiente para fazer o público rir. O pior é que resulta mesmo! Fico de boca aberta quando a mulher, a família e as amigas riem a bom rir de programas que em muitas partes do mundo seriam um insulto ao bom gosto. Que piada tem atirar comida ou cuspir leite em cima de alguém?
Em Portugal temos um caso parecido: o Fernando Mendes. Eu por acaso conheço o Fernando pessoalmente e acho que ele é uma jóia de pessoa. É mesmo um tipo com um brilhante sentido de humor, bastante espontâneo e quase impossível de se aborrecer. Infelizmente, devido a exigências (ou falta delas) de guião, passou a maior parte da carreira a fazer de gorducho anafado e pateta, ao ponto de estar neste momento (e com grande sucesso, pasme-se) a fazer
O Preço Certo, um concurso dirigido a domésticas, sopeiras e analfabetos. Em Hong Kong o Eric Tsang goza de um tremendo sucesso entre todos os sectores da sociedade e é convidado de luxo em praticamente todos os programas de humor. Chega a ser mesmo impossível levá-lo a sério.
Resta-nos continuar a consumir as
sitcoms (ou
shitcoms como lhes chamavam o saudoso Mário Castrim) americanas (as portuguesas sofrem de “falta de meios”) e continuar bem dispostos, continuando a adoptar um humor do tipo “faça você mesmo”, ignorar os latagões da má disposição e do presumido “bom gosto” (vocês sabem quem são) e dar graças a Deus pela invenção do humor britânico, e porque não, do restante humor inteligente. E já agora cuidado para não escorregar numa casca de banana.
10 comentários:
Caro Leocardo,
Para se compreender a ironia, o sarcasmo, etc. ~E preciso compreender-se a cultura. Certamente que não acha piada nenhuma ao Stephen Chow, nem sabe do que as pessoas se riem ao ver os filmes dele. Pois sugiro que veja, se tiver tempo, o filme "Flirting Scholar" (acredito que seja esta a tradução), ou o "Journey to the West", do mesmo actor. Naturalmente qque encontra o "slapstick" em momentos, para agradar aqueles quee não percebem o sarcasmo típico de Hong-Kong. Mas o hum or inteligente está lá. Pergunte à sua mulher.
Olhe que o Eric Tsang é um excelente actor. Vaja a saga "Infornal Affairs (Mou Gaan Dou). E concordo com este anó
nimo. Os filmes do Stephen Chow são soberbos. Há sarcasmo e inteligência. A sua visão do huor chinês é redutora. Não esperava isso de si, Leocardo.
Olhe que o Eric Tsang é um excelente actor. Veja a saga "Infernal Affairs (Mou Gaan Dou). E concordo com este anónimo: Os filmes do Stephen Chow são soberbos. Há sarcasmo e inteligência. A sua visão do humor chinês é redutora. Não esperava isso de si, Leocardo.
Em primeiro lugar nunca disse que o humor chinês é melhor ou pior, além disso não se trata de discutir aqui as qualidades ou valências deste ou daquele actor ou filme, mas sim o sentido de humor em geral do povo desta região (Hong Kong e Macau, do resto da China não posso falar). Ou será que também é anti-patriótico criticar?
O exemplo que dá do Eric Tsang como actor é muito bom, sem dúvida, mas também desafio-lhe a mostrar-me a parte do meu texto em que digo que ele é mau actor.
"Não esperava isto de mim". O que quer dizer com isso exactamente? Se por acaso acha que existe alguma forma de racismo na minha análise, então leu mal. Estamos aqui a falar de humor e de humorismo, não de política, biologia ou nacionalidade. Não misturar alhos com bugalhos sff.
Cumprimentos
Cumprimentos.
Subscrevo inteiramente. É a diferença entre o humor inteligente ou subtil (como o britânico, por exemplo, e o humor primário ou imediato (como o chinês, por exemplo).
O facto, pese embora a vertente cultural, não tira nem põe, necessariamente, no que respeita a bom gosto: os sempre soberbos filmes nacionais com o António Silva e/ou o Vasco Santana estão cheios de humor primário; mas têm uma concepção geral de grande inteligência. Claro que a qualidade do actor contribui decisivamente para que o humor primário possa ser aceite no mundo do humor inteligente. Apenas parece espantoso como isso nem sempre conta muito no mundo do humor imediato ou evidente.
No caso chinês, contudo, a própria língua ajuda pouco ou nada a certas vertentes importantes do humor subtil, como o trocadilho. O recurso à desgastada palhaçada básica daqueles velhos circos que já ninguém aguenta, tão comum entre os chineses, é que não colhe entre nós.
Bom exemplo televisivo é o da recém-malograda Fei Fei em Hong Kong. Se ela não fosse realmente 'fei', bem poderia ser igualmente simpática e excelente apresentadora ou comediante: jamais teria conhecido o sucesso que teve durante anos a fio.
Bem, vamos a ver se nos entendemos. nunca quis dizer que o seu comentário é racista. Isso seria uma enorme estupidez. Não esperava que tivesse esta análise. Apenas isso, nada mais.
De resto, parabéns pelo blogue, Está cada vez mais interessante. O seu contributo é importante, para preencher uma vazio na expressão em, língua portuguesa sobre as vivências de Macau.
Um abraço de um leitor que o acompanha desde os primeiros posts do Leocardo, o blogue.
Em primeiro lugar obrigado pela preferência, é para os meus queridos leitores que faço este blogue, por vezes a muito custo. Penso que se calhar houve um pequeno mal-entendido, peço desculpa se a minha atitude pareceu-lhe muito defensiva.
Meu caro JC: obrigado pelo seu (mais uma vez) muito oportuno comentário. O que se trata aqui é de um choque de culturas, através da arte (é arte em qualquer parte) do humorismo. Há quem não goste do tal choque e o evite, eu pessoalmente penso que se aprende muito com isso. O resto é uma questão de gosto.
Boa Páscoa para todos.
Ilustres,
Discordando de todos mas defendendo o humor "antigo" chinês que é súper-híper fulminante em termos de humor inteligente ou subtil, parafraseando um anónimo.
De certo que nem todos os filmes chineses são assim tão básicos, em termos de humor primário.
Para quem pela força de circunstâncias tem de levar com novelas, e em Macau, naturalmente chinesas sobre a era dos imperadores, podemos assistir a humor inteligente, bastante inteligente, porque não pasam de reproduções da literatura clássica chinesa que é mesmo muito apurada.
Podemos é criticar os guiões de base "literária contemporânea" chinesa de HK que é dirigida às massas, àquela massa inculta, pouco letrada e que padece de iletracia (nunca esquecer os efeitos nefastos da Revolução Cultural) que condenou o desenvolvimento da China multimilenar.
Perceber o sarcasmo da região é extremamente dificil pelas "nuances"dos diferentes "tons" e variações fonéticas da lingua. É extremamente subtil. Novamente sugiro revisitar Stephen Chow, "com outros olhos".
Os filmes de época permitem utilizar um cantonês mais trabalhado, mais "erudito", solto do "realismo" linguistico que um filme contemporaneo necessita. Em Portugal encontramos os mesmo, ou em Hollywood.
Quanto ao peso do slapstick e do humor primário na região, concordo. As "massas" preferem o básico. Mas não se passa o mesmo em Portugual? Que me lembre, o Herman Enciclopédia, um dos melhores programas de humor jamais feito em Portugal, foi um fracasso de audiências, perdendo para os "Malucos do Riso"...
Meus caros, sugiro que prestem atenção à forma como os vossos colegas chinesas falam e onde e quando riem. Na maior parte das vezes, não encontrarão o local da piada porque, lá está, a barreira lingística não se limita ao conhecimento da lingua em si, mas interiorizar toda uma linguagem cultural relacionada com a mesma.
O humor dos "Gato Fedorento"é nitidamente um humor importado, de forte influência "Phyton", Benny Hill, e mesmo "Saturday Night Live", adaptado aos "current affairs" portugueses.
Qual a escola do humor "Canonense"?
Já ouviu, caro Leocardo, "Stand-up" Cantonês? Olhe que é extremamente popular na região, e é um humor perspicaz, fortemente irónico e sarcastico. Mas, está claro, terá que se quebrar "aquela" barreira linguística...
Concordo consigo- No humor encontramos nuances culturais próprias de cada povo. Mas para o julgarmos, ou compreendermos na sua complexidade, temos necessariamente que compreender a cultura e a linguagem local, num sentido abrangente que inclui história, maneirismos, "current afairs", "etiqueta", etc, etc.
Concordo que este é um excelente blog. O Sr. é extremamente perspicaz nos artigos que coloca, e o espaço para comentário que permite ao leitor revela antes de mais coragem e a abertura de uma porta de partilha e discussão entre inervenientes que, em outras circunstancias, se limitariam ao silêncio ou ao seu grupo restrito de amigos.
Espero que mais e mais pessoas comentem os seus artigos, e que se crie uma dinâmica cada vez maior de discussão e comentário. Quiçá o seu blog ainda ganhe a relevância que tem aquele programa da TDM chinesa, o "Ou Mun Kuong Cheong"?
Um abraço...Anónimo.
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