terça-feira, 23 de novembro de 2010

Gosto de pessoas (e mais)


Ia hoje a passar pelo Largo do Senado ao fim da tarde, quando encontrei três senhoras que pareciam turistas. Detive-me a reparar, especialmente numa delas, alta, loira e bonita. Aproximei-me mais, e apercebi-me então que eram chinesas, e que a tal “alta e loira” era na verdade uma albina. Fiquei um pouco embaraçado por ter hipoteticamente deixado a senhora a pensar que estava a reparar na sua “deficiência”, contudo afastei-me depressa sem fazer grande alarido. Era preciso ter em conta que o sol já se tinha posto e a visibilidade era reduzida, o que dificultou o meu julgamento por instantes. E nem sei porque seria preciso ficar atrapalhado com a situação, pois gosto de pessoas. Sou uma pessoa, vivo num mundo cheio de outras pessoas, passo por milhares de pessoas todos os dias, em suma: adoro pessoas.

Reparo em toda a gente, e tenho aquilo que se chama uma memória fotográfica. Não há cara que tenha visto duas vezes que me escape, reconheço logo. Sei quem são todos os meus vizinhos e cumprimento-os quando os vejo na rua, mesmo muito longe de casa. Gosto de toda a gente que vejo: bonitos, feios, gordos, magros, altos, baixos, pretos, brancos, amarelos, toda a gente tem com toda a certeza um historial interessante. Quando vejo assim uma coroa mais enxutinha fico a pensar como seria quando era nova, como era mais linda, mais magra, e mesmo assim conseguiu preservar um sorriso bonito. Quando vejo um velhote de 80 anos penso como teria sido a sua juventude aqui na região, assolada pela fome e pela guerra, tempos mesmo difíceis e de grande indefinição, e sinto por respeito por ele. Quando vejo um pintarolas a conduzir um Celica vermelho a alta velocidade e com o rádio aos berros, penso que deve ser feliz assim, se calhar nasceu e cresceu aqui, o paizinho é rico, só conhece a boa vida.

Toda a gente é um cromo que merece ser coleccionado, e depois porque não tratar as pessoas com um sorriso e simpatia em vez de desprezo e má vontade? Esta nossa atitude de aproximação, muito "world without strangers", pode parecer a mais indicada entre nós, os portugueses (e alguns macaenses), mas é mal visto nesta Roma onde devemos ser romanos. O choque cultural aqui é muito intenso e pode resultar em cabeças partidas e outras escoriações. Os chineses são por natureza pessoas muito reservadas, e diria mesmo “manhosas” num certo contexto. O problema de declarar os bens patrimoniais é um bom exemplo disso: os chineses não gostam que ninguém saiba quanto dinheiro, quantas casas, quantas jóias ou quantas mulheres (as tais “concubinas”) têm, e fazem negócios avultadíssimos à revelia do próprio cônjuge.

Nos afectos não é muito diferente, e até as pessoas são tratadas como “propriedade”. É inaceitável, por exemplo, cumprimentar a namorada ou mulher de um amigo com um beijo na face, como fazemos em Portugal. Aliás os próprios chineses evitam entre eles trocar afectos em público, ficando apenas pelas mãos ou braços dados como comprovativo da posse, para afastar os olhares alheios. (Aliás a minha mulher culpa-me sempre que outra fala comigo ou olha para mim, expressando-se com um safanão no braço um uma pisadela de leve.) Mesmo cumprimentar alguém do sexo oposto nunca escapa com um inevitável “quem é?”. O sentido de propriedade pela namorada, pelo carro, pelas casas ou pela conta bancária é a verdadeira “cultura” de Macau, e o resto pouco interessa.

Para nos adaptarmos a isto é preciso pensar um pouco da mesma forma e apreender alguns conceitos fundamentais. Por exemplo, não cumprimente a namorada de um amigo ou colega nem com um aperto de mão, bastando um "olá" e uma pequena inclinação da cabeça. Não a elogie em frente ao namorado dizendo-lhe que “é bonita”, e mesmo elogiando sem o namorado por perto pode dar origem a mal-entendidos (ou mal-entendimentos, no dialecto de cá). Entre os homens pode cumprimentar com um simples "olá", e um aperto de mão é sempre bem recebido. Palmadinhas nas costas ou mãos nos ombros ainda vá lá, mas abraços são apenas para os “irmãos”, de sangue, ou da seita, ou amigos de infância, outros familiares e relacionados (se repararem até os jogadores de futebol asiáticos em geral não têm por hábito celebrar os golos abraçados). Curiosamente o feminino fica bem salvaguardado no meio disto tudo. As amigas mais íntimas viajam juntas para o estrangeiro, dormem e tomam banho juntas se for preciso, partilham as roupas, contam segredos, enfim, interagem normalmente.

No resto das relações de trabalho, de vizinhança, etc, há dois princípios a respeitar: pergunte o menos possível, e ouça mais do que fala. Enquanto nós ficamos sinceramente felizes que os nossos amigos, colegas, vizinhos ou parentes tenham comprado uma casa ou mudado de carro, os chineses consideram essa informação preciosa, e fazer perguntas banais como o tamanho, o preço ou a marca são considerados uma “intromissão”. Mesmo entre as famílias as coisas são mais ou menos assim. Há pais bastante cruéis com os próprios filhos (principalmente os mais velhos), daqueles que escondem as notas dentro do colchão , acusam os genros e as noras de “querer ficar com o seu dinheiro” e nunca compram prendas aos netos. Conheço casais na casa dos 40 e dos 50 anos que ainda dão parte do dinheiro aos pais (!), o que pode ser entendido no contexto da cultura oriental como “um sinal de respeito”, mas quando pensamos que alguns destes pais recebem dinheiro de 4 ou 5 filhos, é fácil perceber quem não é o “coitadinho” nesta história.

O próprio casamento é por si uma instituição frágil, sem que exista realmente uma confiança e um respeito mútuos. Em muitos dos casos as pessoas são perfeitamente descartáveis (o número de divórcios aumenta todos os anos), e há sempre um interesse financeiro qualquer por trás, nem que seja o facto da mulher ganhar mais que o homem, o que torna o casamento num beco sem saída. Os homens de negócios, que deixei para o fim, são os que mais me fazem rir. A sério, como são engraçados, ah, ah, ah. Primeiro borram-se todos quando ouvem falar em “declaração de património”, ou qualquer coisa que os obrigue a dizer os bens que têm. A minha favorita é a desculpa do “rapto”, que se a malta por aí sabe o que eles têm, “são raptados”, e Macau é uma cidade “muito perigosa”, portanto toca a meter o dinheirinho em offshores e afins.

Mas são célebres e fazem escola, e toda a gente quer o seu raminho da árvore das patacas, e tenta imitá-los, ora fugindo aos impostos, declarando valores mais baixos, ganhando dinheiro por fora, enganando fulano e outrano. É uma festa. E para ajudar? Basta olhar para o número de advogados por habitante.(Desculpem lá o desabafo. Não são todos, deixem lá).

6 comentários:

Anónimo disse...

uma visão mt crítica dos chineses... eles são apenas mais conservadores e fechados do que nós... claro que alguns cometem erros e abusos (como divorciar-se da mulher por causa de ela ganhar mais)... mas nem todos os chineses são assim tão abusivos como o leocardo contou... o leocardo apenas foi buscar os maus exemplos da comunidade chinesa...

Anónimo disse...

http://thenewcivilrightsmovement.com/un-general-assembly-votes-to-allow-gays-to-be-executed-without-cause/politics/2010/11/20/15449

Leocardo disse...

Ninguém aqui disse que é "mau". É apenas diferente.

Cumprimentos.

Anónimo disse...

Eu também gosto muito de pessoas. De pessoas-gajas.

Anónimo disse...

O Leocardo gosta muito de pessoas,homens também?E mulheres?

Anónimo disse...

Ó idiota, se dizes "homens TAMBÉM", isso já inclui mulheres. A pergunta é redundante.