terça-feira, 6 de maio de 2008

Diz-me o que comes


Quando era miúdo o meu pai dava-me todos os dias cem paus para almoçar na cantina da escola. Mas como a malta era pobre, muitas vezes usava esse dinheiro para comprar bolos, chocolates e outras porcarias, em vez de almoçar. Não que eu desgostasse da nutritiva comida da cantina, que incluía sempre uma sopa, prato de carne ou peixe e fruta. Mas era jovem, rebelde e precisava de açucar para concretizar os meus pueris intentos.

Alguns dos leitores identificam-se um pouco com este estilo de vida. Quando era jovem não existiam as consolas de jogos, tínhamos que nos contentar com o ZX Spectrum, e mesmo assim com um limite de tempo determinado pelos pais, a internet e os seus males não estavam ao acesso de qualquer um, e as calorias eram queimadas à medida que se esfolavam os joelhos no recreio da escola. Não havia gelado, chocolate ou refrigerante que fizesse mossa. O metabolismo tratava de tudo.

Os miúdos de hoje estão muito mais acomodados. Raras vezes andam a pé, passam horas a fio em frente ao computador ou aos PS2, têm as fast food à mão de semear, são muito mais mimados e habituam-se desde muito cedo a uma vida sedentária. É o preço das “melhores condições de vida” que sempre perseguimos para nós próprios e cujos frutos do trabalho vemos hoje reflectidos na inércia dos miúdos. Eu próprio habituei-me mal, e isso traduz-se em alguns quilitos a mais que teimosamente persistem.

Isto tudo a propósito de uma recente campanha do Conselho do Consumidor de mãos dadas com os Serviços de Saúde alerta a juventude e os pais para os perigos de uma tal “geração comida de sucata”, traduzido literalmente do americanismo “junk food generation”. Neste simpático cartaz, constatamos o triunfo do grupo dos cereais, proteínas animais e vitaminas sobre a tal “comida sucata”, que consiste numa salsicha com dor de barriga, um chocolate vesgo, um sorvete morto, entre outros.

Esta campanha é complementada por um anúncio televisivo patético (ainda para mais com dobragem em português), em que se vêem três estudantes a almoçar na escola. O primeiro, notoriamente obeso, trouxe um almoço de costeleta panada, o segundo hamburguer com batatas fritas (yeaaaaah!) e a terceira, uma menina, faz sair da lancheira um manancial de cores que deixa os outros dois de boca aberta. A mãe dela elaborava-lhe o almoço sempre de acordo com a pirâmide alimentar! Sempre com muita fibra, poucas gorduras e pouco açucar.

Yeah, right. Como se em Macau a população média tivesse o tempo, a paciência e mesmo o know how para andar a contar as calorias das refeições que os seus filhos comem. O mais comum mesmo é dar-lhes vinte ou trinta patacas por dia, que depois gastam no McDonald’s ou num oleoso chau min num qualquer Mercado ou café, ou para petiscar asas de galinhas fritas no “óleo de mil anos” (chin nin yao) dos vendedores ambulantes, ou aquelas bolas de peixe imersas em caldos opacos de odor desagradável.

Nada de preocupante, na minha humilde opinião. Que outra oportunidade têm os miúdos para saborear o que faz mal senão nesta idade, em que os seus impolutos corpinhos expulsam com mais facilidade o malévolo colesterol? Em que os pontapés na bola queimam as gorduras em excesso, ou podem engolir um pacote de ketchup ou beber da garrafa de chocolate líquido sem que se preocupem em ter um enfarte? Tirando as anoréxicas (coitadinhas), será que as mais jovens pensam na linha quando sorvem um delicioso sorbet?

O que mais me preocupa não é a qualidade ou as calorias, é a falta de alternativas. São casas de massas por todo o lado; não há rua que não tenha pelo menos uma ou duas casas das tais sopas de fitas. Restaurantes japoneses também há por aí aos pontapés, o que já foi suficiente para começar a deitar sushi pelos olhos. O mais curioso é que devido à dieta chinesa estas lojas de sopa de fitas têm sempre negócio, e algumas estão cheias a qualquer hora do dia.

Macau é a terra do "haver há". Há comida tailandesa? Haver há, na Rua Abreu Nunes. Há um restaurante espanhol? Haver há, o D. Quixote. Há comida italiana? Haver há, a família Acconci. Há rodízio brasileiro? Haver há, o Churrascão. O que não há é um restaurante filipino, russo ou turco. É por essas e por outras que ficamos de boca aberta quando vamos ali a Hong Kong ou a Guangzhou, onde a variedade e a multiculturalidade são evidentes, e há restaurantes que abrem 24 horas por dia.

Mas voltando à comida saudável (curiosamente muito pequeno comércio tem aparecido alegando vender "comida saudável"), era o que faltava que agora a polícia do clinicamente higiénico nos viesse dizer que isto e aquilo faz mal, ou impor-nos o que temos de comer. Ao contrário do tabagismo, que prejudica terceiros, nada tem a ver com o que a malta mete no bucho. Imaginem eramos todos autómatos e cumpriamos escrupulosamente a ladainha da "dieta rica em fibras" e do exercício físico, e vivíamos todos até aos 100 anos. Lá iam os médicos, nutricionistas e dentistas todos para o desemprego.

O segredo é usar sem abusar. Se os garotos gostam de McDonald's ou KFC, como se explica áquelas cabecinhas que aquilo faz mal, que são transgénicos, que tortura as vacas e as galinhas, destrói a selva Amazónia e tudo mais? Não se tornam obesos e diabéticos se comerem lá uma ou duas vezes por semana. O ideal é optar o maior número de vezes por refeições caseiras, fazer os miúdos tomar sopa, comer fruta (os meus não são grandes adeptos, por isso faço-lhes sumo), não os obrigar a fazer exercício se não quiserem. E sobretudo não esquecer que são crianças, minha gente.

2 comentários:

Anónimo disse...

Penso que a campanha é de louvar! Cada vez vemos mais obesos no mundo... Deve-se ensinar as crianças a bem comer em vez de lhes dar as 30 patacas para as mãos e não se querer saber. Nem aprece seu, Leocardo!

Leocardo disse...

Outra vez o "nem parece seu". O que parece meu, afinal? Também não tenho nada contra a campanha em si, só que me parece um pouco exagerada e irrealista. E se há miúdos obesos é por laxismo dos pais, que permitem que eles abusem de algo que, com moderação, não faz mal nenhum. Cumprimentos.