Gente (visivelmente) ignorante e desinformada.
Para alguém que como eu não é religioso, ou como muitos outros cidadãos comuns que têm prioridades mais mundanas como pagar as contas, educar os filhos e evitar chatices, faz confusão que se fale, leia, e oiça cada vez mais falar de uma tal de "Islamização". Tanto na net como em alguns media - felizmente poucos, pois aí ainda impera o bom senso - é cada vez mais frequente encontrar opiniões alarmistas no sentido de que a Europa começa a perder a sua identidade, e que um dos responsáveis por essa descaracterização daquele que é chamado "o berço da civilização moderna" é o crescente número de imigrantes oriundos de países onde se pratica a fé muçulmana, do Islão. Alguns destes profetas da desgraça apontam para uma iminente imposição da cultura islâmica nem território europeu, bem como para o risco dos seus cidadãos cederem perante algums imposições dessa cultura e perder assim direitos, liberdades e garantias que lhe são actualmente consagrados. Mas antes que as mulheres comecem todas a usar véu e os homens obrigados a usar barba comprida e ir orar cinco vezes por dia à mesquita, vamos então saber o porquê da difusão desta forma de xenofobia, e quem poderá tirar dele dividendos.
E isto também é propaganda do Hamas?
O estado de Israel, por exemplo, tem razões mais que suficientes para temer que da Europa se deixe de sentir a actual indiferença política para a questão dos territórios palestinianos ocupados. Neste mapa em cima, que não é nenhuma invenção, ao contrário da Islamização, como já vamos ver a seguir, podemos ver a evolução do território de Israel desde 1946 até recentemente. Em 1947, na ressaca do Holocausto que matou dez milhões de judeus europeus (e não só), as Nações Unidas votaram uma resolução no sentido de criar um estado judaico independente e livre na zona do Protectorado Britânico da Palestina e da Cisjordânia. Os países árabes manifestaram de imediato a sua oposição, ficando sem entender o porquê de serem eles a pagar por uma agressão cometida pelos nazis, e não a Alemanha, ou eventualmente a Áustria. O que as Nações Unidas não determinaram foi a expansão do território de Israel, que tem sido feita nos últimos 60 anos através da criação de colonatos, criados e mantidos pelo uso da força e com o apoio dos Estados Unidos, apoio esse que tem causado embaraços diversos à diplomacia norte-americana. Gostava de deixar claro que isto é apenas uma mera constatação, e não uma posição anti-Israel ou anti-semita, nem qualquer demonstração de apoio à Palestina, ao Hamas, ao Hezbollah ou aos governos que incluem nos seus programas políticos "a destruição do estado de Israel". Tudo isso é paralelo ao tema aqui discutido, e reitero desde já que sou contra qualquer forma de violência, especialmente motivada por questões étnicas ou religiosas.
Temam o pior! Escondam-se debaixo da cama! Vem aí a "Eurábia"!
Mas Israel, apesar da evidente preocupação com a possibilidade da vizinhança hostil que actualmente tem se alastrar por dentro das fronteiras da Europa, é uma realidade distante que pouco ou nada tem a ver com os próprios europeus. O que os europeus temem é um conceito que tem servido de tema de campanha a forças políticas conotadas com o nacionalismo e a extrema-direita em países como a Holanda e a França, onde se verifica o maior aumento no número de seguidores do Islão: a "Eurábia". O mapa em cima mostra as áreas de maioria muçulmana dentro das fronteiras do espaço europeu, e como se pode ver, a possibilidade de uma Europa habitada por uma maioria de muçulmanos é ainda uma realidade distante. Ou será mesmo assim?
Ora aqui está a "escalada" do Islão de que tanto se fala.
Aqui temos a evolução da população islâmica na Europa, e como se pode verificar, o seu aumento tem sido significativo, mas longe de se poder alinhar na teoria da "invasão" que fundamenta essa outra mais ampla, a Islamização. Portanto o que temos é uma projecção para quem em 2030 haja uma população de menos 27 milhões de não-muçulmanos e de mais 28 milhões de muçulmanos relativamente a 1990. Interessante esta coincidência, e se estes números representassem exactamente a mesma população, sem que nesses 40 anos tivesse morrido ou nascido ninguém, podia-se falar de "conversão à fé islâmica". Mas não é disso que se trata, pois o crescimento
total da população europeia nos últimos 20 anos deve-se em 85% aos imigrantes - os muçulmanos e os outros. Os partidários do perigo que representa esta hipotética "islamização" apresentam números absurdos, que dão conta de que "um em cada três bebés nascidos em França são muçulmanos", ou que "a população da Holanda será 50% muçulmana em 2030". Falso, falso, e falso. A França tem actualmente uma população entre os 6 e 7% de muçulmanos, a Holanda entre os 7 e os 8%, e seguindo a actual tendência de crescimento, nunca será até 2050 que se chegará aos 10%. Claro que para quem tem uma agenda a curto prazo, convém exagerar um pouco, mas isso leva-me a fazer a seguinte pergunta: se querem preservar a identidade, como pensam fazê-lo com taxas de natalidade tão baixas? Querem uma Europa com igrejas e catedrais sem ninguém que as frequente, e com liberdades e direitos sem ninguém que usufrua deles?
A sinagoga é mais abaixo, ao fim da rua.
Mas não se pense que quero com isto dizer que apenas pelo facto de a maioria dos cidadãos nascidos actualmente no continente europeu serem filhos de muçulmanos, que a Europa se tenha que resignar a tornar-se um dia num bastião do Islão. Nada disso. No espaço europeu a liberdade de culto é um direito inalienável, e os seus cidadãos são livres de escolher a sua confissão religiosa, ou de optar por não ter nenhuma. Tanto os filhos dos muçulmanos têm a liberdade de escolher outra religião, e a teoria de que serão apedrejados pelo crime de apostasia dentro do espaço europeu é uma falsa questão, em que apenas os menos informados acreditam. O problema é que as segundas e terceiras gerações de imigrantes oriundos de países islâmicos optam por seguir a via do Islão, e ainda de forma mais radical que os seus pais e avós. Sendo-lhes garantido esse direito por lei, nas mesmas condições em que um europeu filho de pais cristãos pode optar pela conversão ao budismo, ao hinduísmo, ao sexo tântrico e seguir uma daquelas seitas oportunistas como o IURD ou as Testemunhas de Jeová. A causa da rejeição aos princípios da liberdade de culto prende-se sobretudo com a rejeição da sua religião original, ou da religião dos seus pais. Um muçulmano que imigre para a Europa e faça o que lhe compete, ou seja, eduque o seu filho pelos princípios da sua religião, não tem nenhum poder especial para impedir o seu filho de mudar de religião, ou abdicar dos seus preceitos que menos se coadunam com a realidade em que está inserido. Manifestações como aquela que vemos em cima, onde se vê uma cruz suástica pintada numa mesquita em Castres, no sul de França, juntamente com "slogans" do tipo "sieg heil" ou "white power" devem ser no sentido de promover a integração dos imigrantes. Fosse eu o imã daquela mesquita, e chamava o rabi de Castres (se o há) e dizia-lhe: "olha deixaram-te um recado, mas importas-te de dar a tua morada correcta da próxima vez?".
Allah è il più grande, mamma mia!
Portanto pode-se concluir que na perspectiva de serem rejeitados, excluídos, descriminados e guetizados pelos seus compatriotas, os muçulmanos de segunda e terceira geração têm a tendência para o regresso às suas raízes, e seguir os ensinamentos do Corão e dos imãs das várias mesquitas que se encontram espalhadas pela Europa. A maior de todas é esta na imagem, imponente sem dúvida. Mas onde fica? Só pode ser na França ou na Holanda, ou em alternativa na Inglaterra, onde muitas das ex-colónias do império britânico são actualmente países islâmicos. Não, de facto a maior mesquita da Europa fica localizada em Roma, na Itália. Surpreendidos? Sim, porque a Itália não é sequer uma das maiores preocupações dos que fomentam a paranóia da islamização. Os italianos parecem mais preocupados com Cecile Kyenge, uma mulher negra que desempenhou a pasta da integração do governo de Enrico Letta, e que apesar de ser católica-romana, tem uma tez muito mais escura que Cicciolina, essa sim, um exemplo de pureza dentro da boa tradição europeia. Ou ainda com Mario Balotelli, que apesar do nome, tem uma fisionomia semelhante à de uma "pizza" que alguém esqueceu no forno bem além do período ideal de cozedura. A não ser quando realiza um feito muito patriótico, como quando marcou dois golos contra a Alemanha no Euro 2012, ou deu a (única) vitória aos "azzurri" no mundial do Brasil deste ano, ao apontar o golo decisivo frente aos ingleses. Aí sim, é tão italiano como o Sílvio Berlusconi.
A qualidade dos traços terá sido sem dúvida a razão da publicação dos desenhos...
Mas vamos levar isto a sério: é um facto que o Islão é uma religião barbárica, intolerante e que pouco tem a ver com os valores humanistas que são característicos da cidadania europeia. Claro, nem eu gostava de ser obrigado a seguir qualquer prática religiosa, ou seguir códigos que contradizem a minha afiliação religiosa - que é "nenhuma". E como exemplos acabados disso mesmo temos a polémica dos "cartoons" do profeta Maomé, publicados pelo jornal dinamarquês Jylland-Post, e mesmo à revelia da mais elementar ética ou com o respeito pela confissão religiosa alheia em mente, e escudando-se no direito à liberdade de expressão, causou a ira dos seguidores do Islão, que prometeram retaliar, e boicotar os produtos dinamarqueses. Para estas contas pouco ou nada que importa que a maioria dos protestos tenham sido mais acentuados em países islâmicos
fora do espaço europeu. Mas pronto, o que dizer? Rendo-me, e de facto o Islão tem um problema com a liberdade de expressão na sua forma plena, aquela que vigora na Europa. Tememos que a tal "Islamização" traga de volta a opressão e a censura que a Inquisição praticava até há pouco mais de 200 anos. Ou será que...
Perdoa-os, ó pai, que eles não sabem o que fazem. Ribbit!
Ah sim, isto. Pois é, aqui está a excepção, não a que confirma a regra, mas a que deita a regra ao chão, pisa e cospe-lhe em cima. Esta escultura, exibida no museu de Balzano, em Itália, foi censurada em 2008 - muito mais recentemente que há 100 ou 200 anos - por ser considerada "blasfema". Se de um lado temos o profeta Maomé representado como terrorista e pedófilo, aqui insulta-se um dos maiores símbolos do cristianismo, religião da maioria dos europeus: o S. Sapo, que com uma caneca de cerveja numa mão, e um ovo cozido na outra, sacrificou-se pelos nossos pecados. Sim, porque só alguém completamente idiota acredita que os romanos inauguraram a prática da crucificação com Jesus Cristo, e depois disso ficaram por aí. A cruz era uma pena aplicada a vários prisioneiros, e já agora porque não adora a igreja os dois ladrões que faziam companhia a Jesus na cruz?
Oink, oink! Olhem que só que "haram" eu sou, ó moirama.
E por falar em idiotas, aqui está Geert Wilders, um deputado do parlamento holandês considerado um exemplo de "coragem" devido às suas provocações constantes ao Islão e a sua declarada intolerância com os estrangeiros em geral. A restante extrema-direita europeia inibe-se de expressar a sua adoração por este indivíduo apenas pelo facto de ele gostar de piça, o que fere de morte a campanha contra outro ódio de estimação deste grupo de extremistas: os homossexuais. Wilders foi notícia há alguns anos após ter recebido ameaças de morte, alegadamente da parte de muçulmanos "intolerantes". E isto "apenas" porque escreveu, realizou e produziu um filme de pouco mais de vinte minutos onde descreve os muçulmanos como sendo selvagens e primitivos. Só isso? Quer dizer, a atitude do Ayatollah Khomeini em condenar à morte Salmon Rushdie devido aos versículos satânicos, onde defende a teoria de que o Islão é uma religião satânica é condenável aos nosso olhos de europeus "tolerantes" e amantes da liberdade de expressão. Por isso é que José Saramago se devia dar por feliz com a simples censura do seu livro "O Evangelho segundo Jesus Cristo", onde apresenta uma perspectiva do martírio de Jesus assente em passagens do evangelho. Podia ser pior, de facto. Mas epá, estou aqui a cometer uma traquinice ao publicar uma fotografia de Geert Wilders onde ele aparece numa pose que dá a entender que é um palerma, e com isso estou a tentar desacreditá-lo. Permitam que me retrate.
Bem, talvez seja mesmo um idiota, coitado. Ou então isto é alguma conspiração islamista para o desacreditar, do tipo: "ó Geert, olha a pilinha tesa!", e ele faz logo uma cara de guloso e de chupão.
Holandês condenado pelo homicídio de outro holandês, julgado pela justiça holandesa, e condenado a prisão perpétua, pena que cumpre actualmente num prisão da Holanda.
Mas e quanto a outros casos de intolerância graves e que tiveram um mediatismo que em nada beneficia a tese de que o Islão é uma religião com qualidades que permitam ser bem recebida no contexto cultural europeu? O caso do homicídio de Theo Van Gogh, por exemplo. De facto o sobrinho-neto de Vincent Van Gogh foi assassinado em Novembro de 2004 por um radical islâmico, Mohammed Bouyeri, por causa do filme "Submission", onde se expunha o tratamento cruel reservado às mulheres no Islão. Acontece que Bouyeri era um cidadão holandês de pleno direito, tal como Theo Van Gogh, nascido em Amesterdão de pais marroquinos, e depois de um julgamento justo foi condenado a prisão perpétua. A mensagem aqui subjacente é esta: os crimes, sejam eles cometidos por locais, imigrantes ou seus descendentes, quer por que motivo seja, são punidos por lei. A fobia da "Islamização" não exclui ninguém dos seus deveres como cidadão, nem o isentam do cumprimento das leis. E penso que quanto a isto está tudo dito.
Fora do País Basco, infiéis!
Mas espera lá, o Leo. E o terrorismo islâmico, essa coisa horrível? Sim, horrível é qualquer terrorismo, e o islâmico não mata mais do que os outros. Os islamófobos acenam com os atentados da estação de Atocha, Madrid, em Março de 2004, e de Londres em Julho de 2005 - ambos reivindicados por células terroristas localizadas fora da Europa. Nem me vou estender muito sobre a razão pela qual os "mártires" se sujeitam a dar a sua vida por uma causa, e que normalmente se trata de indivíduos problemáticos e complexados, instrumentalizados com fins políticos e seduzidos pela ideia de que se tornarão "heróis", e que no Paraíso têm à sua espera não-sei-quantas virgens. Agora, alguém me sabe dizer se o terrorismo da ETA e do IRA, que deixaram o continente europeu em sentido durante décadas terá alguma ligação com a Al-Qaeda? E o terrorista Otelo Al-Saraiva bin Carvalho, era salafista ou wahhabista?
Oi! Preferimos perseguir os judeus. Esses pelo menos não se defendem!
Mas de facto existem muitas manifestações contra a Islamização...nos Estados Unidos, que tanto gostamos de fazer troça pela inferioridade que demonstram em matéria de cultura geral e de civismo, mas que aqui tendemos a imitá-los. Na Europa o descontentamento é expressado normalmente por grupos conotados com a extrema-direita, que estavam muito mais tranquilos quando o alvo do seu racismo eram os judeus, comerciantes de natureza pacífica, que não chateia ninguém. Perante uma oposição à altura, é normal que fiquem chateados, e ironia das ironias, juntam-se aos judeus no combate ao inimigo comum.
Não ao Mesquita! Não ao Salvador! Queremos o major Valentim Loureiro!
O que os islamófobos mais seguidistas não conseguem entender nem à força de se lhes abrir a cabeça com um abre-latas, é que estão a ser instrumentalizados pela extrema-direita, como parte de um "lobby" anti-imigração. Sendo os imigrantes chegados de países islâmicos uma maioria e um alvo mais fácil, devido às diferenças culturais e religiosas, os néscios alinham, temendo que o seu estilo de vida esteja em perigo. Em perigo vai estar caso os extremistas levem a melhor, pois aí vão ser obrigados a construír as suas próprias estradas, pontes e edifícios, limpar as próprias casas e cavar as próprias fossas, pois não existirão imigrantes para o fazer. Pelo menos podem depois ir rezar em paz nas suas igrejas sem ter que passar por uma mesquita no caminho. Políticos como Sarkozy colheram os frutos desta ignorância, e foi preciso uma demonstração da sua tremenda incompetência para que finalmente caisse a máscara. Só que parece que a lição ficou por aprender.
Fresco representando o bazar islâmico de Atenas, início do século XIX.
Do que nos estamos a esquecer aqui é que o Islão esteve presente na Europa praticamente desde a sua existência, a partir do século VII da era cristã. A própria península ibérica esteve ocuipada pelos muçulmanos até ao século XIII, o sul de Espanha até ao século XV, e no resto da Europa nunca faltaram exemplos da presença de comunidades islâmicas, mesmo que a proximidade geográfica tenha tido influência. É lógico que um país quanto mais próximo do norte de África ou do Médio Oriente, mais influência do Islão seja aí sentida, e tivemos até ao início do século XX o Império Otomano, que até à sua secularização por Ahmed Atatürk era uma ameaça muito maior que a insignificante vaga de imigração originária de Marrocos ou da própria Turquia de hoje, onde o Islão é praticado numa versão "descafeinada" do original. Acenar com o fantasma da Islamização é uma forma de nos alienarmos dos problemas que realmente afectama a Europa nos dias de hoje: o desemprego, o descontentamento com as políticas comuns, nomeadamente com a política económica da União Europeia, e no topo de tudo isto a competição de mercados onde o trabalho semi-escravo e a produção em massa contradiz todos os princípios de igualdade e liberdade que serviram de fundamento à construção europeia. Esqueçam lá isso dos véus e das mesquitas, e apontem o dedo a quem realmente se está nas tintas para nós, e procura através deste tipo de confrontação étnico-religiosa distrair-nos do combate ao que é essencial.
A este propósito, e sem paternalismo de qualquer natureza, recomendo a leitura do
Livro Branco Sobre o Diálogo Intercultural (versão integral em português), publicado em 2008 pelo Conselho da Europa.