segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Sempre em festa, parte I: Natal


Para pontapé de saída desta rubrica dedicada asos feriados e dias santos, nada como o Natal, que está a pouco mais de um mês de distância, e será talvez a mais importante para o mundo cristão em termos de religiosidade, e não menos importante para os restantes no que toca ao comércio. O Natal serve supostamente para assinalar o aniversário de Jesus Cristo, filho de Deus, profeta e fundador do cristianismo. A data do nascimento de Jesus é uma daquelas coisas que carece de comprovação, tipo uma certidão de nascimento, ou pelo menos duas testemunhas. Passados mais de dois mil anos, torna-se difícil arranjar uma e completamente impossível encontrar as outras. O que se sabe do período AC (antes de Cristo) é que o dia 25 de Dezembro era já comemorado por pagãos e animistas, no contexto da chegada do Solstício de Inverno. Jesus, segundo os historiadores e peritos no assunto, nasceu “no Inverno”, o que eleva as probabilidades de adivinhar correctamente a sua data de nascimento para 1/90 na bolsa de apostas da Will Hill. Ou assim seria, estivesse ainda por acontecer.

Falando do Natal propriamente dito, como o conhecemos, é uma quadra sob o signo de Capricórnio, e da paz. Durante um dos 365 dias do ano os inimigos fazem uma trégua, e os amigos desavindos fazem as pazes: “epá, esquece lá isso de eu ter apanhado a tua mulher a jeito e ter-lhe dado uma rapidinha à canzana...é Natal!”. Afinal é Natal, e tudo se perdoa. Torna-se quase proibitivo não perdoar as diferenças e as desavenças no Natal. Quem não cumpre nem a trégua natalícia, só pode ser mau bicho. Ficamos com o coração nas mãos de no dia de Natal surgem notícias de atentados, bombardeamentos, catástrofes naturais e outras que tais, e deixamos sair um “olha para isto...nem no Natal”. Revolta-nos ver notícias que dão conta dos sem-abrigo, dos indigentes, das criancinhas pobres e de todos os que vivem na rua e para quem o Natal é um dia como outro qualquer. Vestimos o “pull-over” colorido com desenhos quadriculados de renas e vamos comer as azevias lá para fora, desejando que alguma força cósmica transformasse os pobrezinhos em milionários na véspera de Natal, e os fizesse regressar à miséria no dia 26, para que todos os anos nos lembrassem da sorte que temos.

A quadra natalícia serve supostamente para elevar o que de bom há dentro de nós, e a programação televisiva corresponde às expectativas, arrancando com o sempre aguardado “Natal dos Hospitais”, caminhando graciosamente até ao Dia de Natal com a repetição “ad nauseum” de contos natalícios, com ênfase para as setecentas versões de “A Christmas Carrol”, de Charles Dickens, onde o popular Ebeneezer Scrooge recebe a visita de três espíritos, etc., etc., já todos sabemos o princípio, meio e fim, e esse bem podia ser o nome dos espíritos que visitam o velho forreta, que no fim se torna generoso e não sei quê. Suspeito que o único conto de Natal original dos últimos cem anos foi o “Merry Christmas, Mr. Bean”. As canções de Natal sofrem também deste síndrome da sempre-mesmice, com os “Jingle Bells” e companhia limitada a terem o pó soprado em inícios de Dezembro, e a voltarem ao baú da sasonalidade um mês depois. Em Portugal não há Natal sem que repetidamente se escute o tema “Para todos um Bom Natal”, do Coro de Santo Amaro de Oeiras. Estes são o exemplo acabado do pónei que só sabe um truque.

As origens humildes do Natal foram desde há muito obliteradas pelo espírito comercial da quadra, com um tal de Pai Natal a rivalizar em termos de popularidade com Jesus Cristo, o aniversariante. É seguro arriscar que nem todas as crianças conhecem Jesus, mas todas elas ouviram pelo menos falar do Pai Natal. Este personagem inventado no início do século passado pela companhia Coca-Cola, inspirado na mitologia nórdica, é o símbolo da generosidade e da partilha, a troco de dinheiro, claro. As criancinhas mais ingénuas acreditam que na noite da consoada este velho obeso e barbudo lhe entra pela chaminé e lhes deixa prendas no sapatinho. As mais conscientes sabem que isso lhe custaria a prisão por invasão ao domicílio e uma possível suspeita de pedofilia. É lamentável assistir nos noticiários aos comerciantes a lamentarem-se que as vendas “estão fraquinhas este ano”, ou os consumidores a queixarem-se do “pior Natal de sempre”, e não haja uma única alminha que recorde que é Natal, e que o consumismo é o que menos importa. O Menino Jesus fica nas palhinhas deitado e ignorado, emquanto o Pai Natal está à porta das lojas a convidar a gastar. Não fosse o filho de Maria tão pequenino, e ia lá expulsar o vendilhão de fato vermelho e barba branca do templo.

Para os elementos de uma família que organize o Natal, a atenção ao detalhe é tudo. Não pode faltar a árvore, imponente e adequadamente iluminada com luzes que demoram um dia inteiro a desembaraçar da caixa onde foram enfiadas um ano antes, a mesa farta, as prendas devidamente catalogadas, e cada membro do clã no seu lugar: o avô e a avó em lugar de honra, já estafados dos setenta e tal natais que festejaram, uns bons, outros péssimos, a mãe no centro da mesa e de costas para a cozinha, para mais facilmente servir de criada, os miúdos na mesa ao lado, juntamente com aqueles parentes mais problemáticos, quer velhos jarretas com parentesco colateral, ora primos afastados que por uma razão ou outra ficaram sozinhos no Natal. O ambiente é de paz e harmonia, e o chefe de família controla a quantidade de álcool ingerida por cada um, não vá alguém beber um copo a mais que lhe solte a língua, e fica a noite estragada. A consoada deve correr na perfeição, com cada um no seu posto, e tudo sem olhar a despesas. E por falar em despesas, o melhor ainda está para vir, com a noite de passagem de ano, que será o próximo tema desta rubrica. Feliz Natal atrasado para quem está na Venezuela, e antecipado para quem está em todo o lado menos na Venezuela.

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