sábado, 30 de novembro de 2013

Quem reencontra conta um conto


Isto é que tem sido uma roda-viva aqui no Bairro do Oriente, mas mais tarde vão perceber porquê. Enquanto isso vou cumprindo com o programa, e chega agora a vez do artigo de quinta-feira do Hoje Macau. Até já.

Tem início este Sábado e durante uma semana mais um Encontro das Comunidades Macaenses, uma iniciativa conjunta das associações de macaenses locais e as Casas de Macau no exterior, e que se saúda. O encontro traz ao território macaenses da diáspora vindos dos quatro cantos do mundo, dos países onde estão radicados e seus descendentes, que vêm conhecer ou rever a terra dos seus pais e avós. Mais do que um evento social, cultural ou uma mera curiosidade, é um momento sempre comovente. Aqueles que partiram da casa onde nasceram mas levam-na sempre consigo no coração estarão a contar os dias, as horas e os minutos que lhes faltam para regressar, mesmo que apenas por poucos dias. Eu próprio sinto-me assim quando vou de férias à minha cidade natal, mas não carrego comigo o peso da herança histórica, da singularidade que é ser macaense. Os filhos da terra que vão voltar a ver a sua “mãe”, Macau, sentem-se como eu, mas vezes mil.

Depois de manhã e até ao próximo dia 7, praticamente todos os macaenses a residir em Macau vão ter por cá um primo, um tio, uma tia, um parente afastado, um amigo de infância. Sabe bem reencontrar alguém que não vemos há muito tempo. Há sempre tanta coisa para contar, gente para rever, memórias para recordar, e curiosamente são sempre as mesmas. A seguir a um “lembras-te quando…” vem sempre uma história que já se repetiu centenas de vezes, mas que sempre se renova quando se limpa o pó da saudade e da distância. Entre os abraços e lágrimas, a costumeira “chuchumeca”, o “patuá”, a culinária macaense, e tudo ao som dos clássicos da Tuna Macaense, é nesta altura que letrados, catedráticos e outros curiosos sobre Macau e a sua história fazem o exercício sempre fútil e inconclusivo de explicar o que é quase impossível de explicar: o que é um macaense.

Quando cheguei cá há mais de vinte anos, não tinha conhecido um único macaense em toda a minha vida. Não sabia nada, mesmo nada de Macau, dos macaenses ou do que representou a nossa presença secular durante quatro séculos por estas paragens do Oriente distante. Foi com esta tábua rasa na bagagem que aqui cheguei, e se fosse embora amanhã, podia-me orgulhar de levá-la cheia de marcas, mas sempre incompleta. Há sempre algo que nos surpreende, um detalhe que desconhecíamos por completo, qualquer coisa que não entendemos e nunca vamos entender. Outra das escassas informações que tinha antes de vir para Macau foi que era “um lugar pequeno, onde todos se conhecem”. Com menos de meio milhão de habitantes, pensei que não seria muito diferente de qualquer cidade portuguesa média, como a Amadora ou o Barreiro. Outro engano fruto da presunção e da arrogância. Por mais pequeno que Macau seja, a heterogeneidade das suas gentes fazem dele enorme, o maior do mundo.

Os macaenses são o exemplo acabado dessa diversidade, dessa diferença, do ser e do sentir Macau. Os portugueses chegaram, e depois partiram. Os chineses sentem-se chineses, sejam eles de Macau, Hong Kong, Pequim ou Xangai. Os macaenses são e sempre foram macaenses. São portugueses e são chineses, ou nem sempre, e às vezes nem uma coisa nem outra. São tudo e ao mesmo tempo nada. Nas palavras do poeta, são fogo que arde sem se ver, um contentamento descontente. Parece complicado mas não é. Tentar definir um macaense pela tabela da antropologia, ou com recurso a factores históricos, linguísticos ou étnicos é como tentar dividir o número 10 pelo número 3 e tentar obter um número inteiro. Há quem tenha todos os predicados para se inserir na definição generalista de macaense: sangue português e chinês, bilingue, católico, e não se considere macaense. Há quem não tenha nenhum deles mas que se considere macaense. O único ponto em comum é Macau. Eu próprio naturalizei-me macaense, posso jogar pela selecção do Lilau, mas serei sempre “o estrangeiro”, mas naturalizado. Quando canto o “Assi sã Macau”, sou como o Pepe a cantar o hino da selecção portuguesa. Apreciam o meu esforço, mas nunca serei igual a eles. Já tenho muita sorte se me levarem a sério.

Aprendi muito da comunidade macaense durante todos estes anos, e não me canso de aprender. A diferença entre Macau e o resto do mundo é a mesma diferença entre as telenovelas e a vida real. Ao contrário do resto do mundo e da vida real, em Macau acontece sempre qualquer coisa todos os dias. Por aquilo que me contam, é o que dá a entender e mais uma vez posso estar enganado. Tentar entender Macau e os macaenses é estar constantemente enganado, e se isso parece mau em teoria, no fim a gente adapta-se. Situados entre duas culturas tão distintas como a portuguesa e a chinesa, os macaenses têm as qualidades de ambos, bem como alguns defeitos. A qualidade que mais aprecio é o trato fácil, o à vontade com que abordam um português ou um chinês, com que travam amizade, a facilidade como iniciam uma conversa com a pergunta que é já um clássico: “filo di quêm?”. A esse respeito tenho uma história engraçada para contar. Durante um destes encontros das comunidades, um senhor macaense a residir no Brasil veio até à minha repartição pedir informações. Depois de o atender, já curioso perguntou-me de quem era eu filho – “filo di quêm?” – uma vez que sendo funcionário público, para ele eu só podia ser natural de Macau. Entendi o que quis dizer, e expliquei-lhe que nasci em Portugal. Podia-lhe ter dito simplesmente o nome do meu pai, que nunca esteve por estas bandas, e mesmo assim o senhor dizia-me que eu era parecido com ele: “cara chapada di pai!”. Esta é outra característica que admiro nos macaenses: a sua imensa simpatia.

Dos defeitos, e no fundo todos temos alguns, há um que pode ter feito toda a diferença. Na terça-feira ouvi no programa Paralelo 22, da Rádio Macau, uma jovem macaense a falar da sua experiência como estudante em Portugal, e de como os portugueses “consideravam-na chinesa”, enquanto que em Macau “éramos todos iguais”. Discordo de ambos os pontos de vista, mas foquemo-nos no segundo. Se há algo que se pode apontar aos macaenses é a diferenciação que faziam dentro da sua própria comunidade, um certo elitismo, se quiserem. Distinguiam-se entre os que eram de boas famílias e os “outros”, dos que moravam na Praia Grande e na Penha dos que viviam na zona norte, os que estudavam no Liceu e os da Escola Comercial ou do Colégio Dom Bosco, e até pela percentagem de “sangue português” e do domínio da língua. Tivessem sido os macaenses mais unidos, alheios a todos estes factores, e talvez fossem agora os grandes intérpretes da Macau de hoje, e não apenas o ponto de ligação entre o passado e o presente.

Mas a partir deste Sábado serão todos um só, e à luz de um passado, de uma história e de uma identidade única que importa mais que nunca preservar, não vão haver mais ricos e pobres, “cara-china”, tancareiras, dom-bosqueiros ou outra qualquer facção dos tempos em que Macau era “a mais pequena das sua família”. O maior paradoxo deste encontro é a forma como Macau é encarado pelas diferentes gerações que participam neste encontro. Para os jovens que já nasceram na diáspora, muitos deles cidadãos de pleno direito do país de acolhimento e já com uma identidade própria, Macau é “fixe”, “muito jóia” ou “very typical”. Para os seus pais e avós, que olham para esta capa de modernidade, luxo e betão armado que cobriu o Macau que eles conheceram, é apenas saudade. Mas para quê explicar isto aos mais novos? A hora é de festa, e tristezas não pagam dívidas.

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