terça-feira, 19 de novembro de 2013

Sempre em festa, parte II: Réveillon


Quando ainda se fazem as contas às despesas do Natal, o orçamento das famílias sofre um novo rombo com a passagem de ano, o “revèillon”, em franciú. Não sei quem teve a ideia de reservar o último dia do ano civil exactamente para o meio da quadra natalícia, entre o Natal e o Dia de Reis, mas deve ser para desenjoar; entre a sacrossantidade do Natal e a chegada dos reis para adorar o menino rodeados dos anjinhos, há um dia dedicada à bezana, ao bailarico e ao deboche. Tapem os olhos ao Menino Jesus e à virgem no Presépio, esqueçam lá a árvore de Natal e os “Jingles” da estação, abram alas para o Ano Novo, yes!, que de acordo com as conclusões daqueles estudos muito caros e bons realizados pelas melhores universidades, “acontece uma vez por ano, e cai sempre a 31 de Dezembro”. A sério? Não posso. Os mistérios do cosmos...

Viradas as 365 páginas do calendário de mais um ano civil (366 nos anos bissextos), chega o último dia do ano, e os espíritos ficam especialmente elevados. A estratégia é perfeita: 365 dias, 52 semanas, 12 meses, são tudo números que chegam e bastam para que se fique farto da porcaria do ano. Quer dizer, quem já não está farto de 2013, e mal pode esperar para se enganar durante as primeiras duas ou três semanas de 2014 para escrever o ano errado, até se conseguir habituar? O problema – se é realmente um problema – é que a noite da passagem de ano é igualzinha a todas as outras. Pode chover, fazer calor ou frio, depende da latitude e do hemisfério, mas a noite de 31 de Dezembro é praticamente igual a de 30 de Dezembro ou de 1 de Janeiro. Era mais giro se acontecesse algum fenómeno natural precisamente nesse dia, como uma aurora boreal ou um eclipse da Lua, mas népias.

A maior desilusão terá sido no “milénio”, na passagem de 1999 para 2000, quando todos esperavam escutar as cornetas dos Cavaleiros do Apocalipse ao bater das 12 badaladas, mas nem uma simples chuva de meteoritos tivemos para animar a festa. Ainda se tentaram animar as hostes com o pânico do “bug do milénio”, o tal que ia baralhar os computadores todos do planeta, mas nem isso deu para quebrar a monotonia. Uma chatice, enfim. O problema com estes ciclos da passagem dos anos é que têm a mão do Homem. Quem é que disse que este é o ano 2013 a contar de qualquer coisa? Qualquer matemáticos, astrofísico, faquir hindu ou bruxo de Vilar de Perdizes nos vai dizer que na verdade estamos noutro ano qualquer, 3114, 10857, 67x8m9y, E=mc2. Tudo menos 2013.

Mas já que estamos no fim do ano, nada como festejar. Qualquer coisa é uma boa desculpa para fazer festa rija. Quem não tem onde passar o “revèillon” não é ninguém. Fazer a passagem de ano a trabalhar ou a dormir é sintoma de fracasso social, de falência espiritual. Quem trabalha na noite de fim de ano além da Barbra Streisand, do Tom Jones ou do Vítor Espadinha? Quem passa a meia-noite de 31/12 a dormir, antes de ir para a cama apertou a mão a ele próprio, disse a choramingar “feliz ano novo” a si próprio, e depois tomou dois valiums. Ou seis, ou sete, ou dez. Suspeito que a taxa de suicídios é bastante elevada nesta festividade. Se para quem pode e tem boas razões para tal não há nada como receber o ano em estilo, para outros nada como não o receber, e ficar pelo anterior.

Os foliões do “revèillon” têm duas opções: fazer a festa em casa ou na casa dos amigos, ou fazê-la “outdoors”, na rua ou numa festa “a pagantes”. Os primeiros fazem um jantarinho que inclui pratos leves, como perna de cabrito assado, perú ou leitão, acompanhado de um sortido de sobremesas, e tudo regado com champanhe quando chega a meia-noite. É uma reedição da consoada, mas mais barulhenta e sem a componente religiosa. Aliás, ao contrário da noite de Natal, é permitido deixar os velhos no asilo durante a passagem de ano. Para quem insiste em ficar rodeado de forças positivas, vida e juventude, até se recomenda. Muita gente ainda chama de ”champanhe” ao espumante Raposeira, o néctar com que muitas famílias portuguesas dão as boas vindas ao novo ano. Só se chama de champanhe ao vinho espumante originário daquela região vinícola francesa, portanto para não começar o ano logo com um equívoco, não custa nada chamar de “espumante” tudo o que nãi o seja da marca Cordon Rouge ou Möet & Chandon. Está bem que o mais importante e que salte uma rolha e a mesa do jantar fique toda pegajosa da espuma que salta da garrafa, mas chamemos os bois pelos nomes.

Quem opta por sair pode juntar-se aos restantes pindéricos no centro da cidade onde reside, na sua “times square”. Em Macau são às centenas os que recebem o novo ano no Largo do Senado, e depois da contagem, “sam, yí, yat...san nín fai lôk!!!”, dispersam todos numa questão de segundos. Ás 00:05 já não está lá ninguém. Os que pagam para passar a meia-noite num hotel, casino, clube, agremiação ou navio de cruzeiro leva a coisa muito a sério. Não se importam de investir para passar uma noite “memorável”, mesmo que isso implique o convívio com um sem número de desconhecidos. Pouco importa quem, como ou onde, desde que paguem. Se a escolha recair sobre uma discoteca, convém ficar atento a eventuais excessos, como o rebentamento de fogos de artifício num recinto fechado, e nesse caso, o melhor é passar o segundo minuto do novo ano ao ar livre, e já agora ligando aos bombeiros, pela via das dúvidas. Mas em Macau não há dessas coisas. Se optar por passar o “revèillon” num hotel, espera-lhe um serviço de buffet com direito a uma bebida, uma garrafa de champanhe que se pode comprar em qualquer supermercado por 200 e poucas patacas “pela módica quantia de 500 patacas para grupos de seis”, e a música que anima a festa fica a cargo da banda “da casa”, composta na maioria por músicos filipinos.

Os mais conservadores não dispensam algumas tradições próprias do virar de página para o novo ano. Há quem coma as doze passas à meia-noite, representando cada uma os doze meses do ano que se iniciam – não faz muito sentido “comer” os doze meses antes da hora, mas se insistir cuidado para no se angasgar quando meter uma dúzia de uvas secas na boca ao mesmo tempo. Há ainda quem insista em “entrar com o pé direito”, literalmente. Ou seja, depois de se assinalar a entrada do novo ano, o pé a dar o primeiro passo é o direito, o que se torna mais complicado para os canhotos e para quem nunca fez a tropa, como eu. A minha família tinha o hábito de bater tachos e panelas após a meia-noite, para “espantar os maus espíritos”. Tenho a impressão que os maus espíritos são duros de ouvido, ou gostam da música produzida pelo bater da colher de pau no aço inox. Seja qual for a sua pancada, aproveite a passagem de ano, pois logo que se habituar a escrever o ano que duas ou três semanas antes teve início, vai começar a suspirar pelo próximo.

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