terça-feira, 28 de maio de 2013

Macau, China: a inevitável aglutinação


Conheci recentemente uma jovem residente na China continental, de onde é também natural, e temos mantido contacto frequente através de e-mail. Não é fácil ter contacto com muita gente para lá das Portas do Cerco, uma vez que o Facebook, Blogger e outros media que utilizamos frequentemente estão bloquados no continente, e não aderi – nem faço intenção de aderir – ao WebChat, QQ ou outras redes sociais utilizadas sobretudo por falantes da língua chinesa. A jovem em questão vive e trabalha em Zhuhai, trabalha para uma agência de viagens, e a sua função resume-se basicamente a levar grupos de turistas até ao Porto de Gongbei, onde passarão para este lado, para Macau. Apesar de se encarregar diariamente que centenas de turistas passem a fronteira, Lin (assim se chama a jovem), nunca esteve no território, ou em qualquer outro sítio além da sua terra natal, no norte da província de Cantão, e em Zhuhai, para onde se mudou com os pais há alguns anos.

Conheci a Lin por acidente, quando me mandou há dois meses uma mensagem de telemóvel por engano. Não suspeitei de qualquer “esquema”, daqueles que tanta gente fala ao ponto da paranóia, e comecei a trocar mensagens, até que desenvolvemos uma relação de amizade. Entre a habitual conversa da treta (já almoçaste, dormiste bem, hoje está calor, etc) aproveito para trocar com ela alguns pontos de vista. A diferença cultural é gritante, juntando a isto a evidente diferença de idades (38 anos dos meus contra 20 dos dela) que leva ao inevitável conflito de gerações. O seu domínio da língua inglesa, falada e escrita, é surpreendente, atendendo ao inglês que (não) se fala na China, o que facilita a comunicação, mas há temas que requerem uma abordagem muito cuidadosa, nem que seja para evitar desagradáveis mal-entendidos. Entre os temas tabu incluem-se política, direitos humanos, liberdade de imprensa e outros sensíveis, se bem que outros como religião, por exemplo, são discutidos mais abertamente. Até porque aí temos algo em comum: nenhuma religião.

Nunca nos encontrámos pessoalmente e duvido que isso venha a acontecer – pelo menos por iniciativa dela, que não escondea sua tradicional inibição chinesa perante um “estrangeiro”. É escusado insistir na teoria da “aproximação dos povos” e tudo mais; é preciso respeitar as convicções de cada um, e se para ela eu sou simplesmente um “bárbaro”, pode ser que com o tempo a faça mudar de opinião. Até lá vai ser preciso “paciência de chinês”. Contei-lhe que fui casado com uma mulher chinesa de Macau e que temos um filho em comum. Ela achou isto uma curiosidade interessante, mas perguntou-me porque “não casei com uma mulher da mesma origem”, acrescentando que os casamentos inter-culturais “não resultam”, e estão “condenados ao fracasso”. Não me incomodei em explicar que o sucesso de um casamento não depende necessariamente da nacionalidade dos seus actores, até porque a juventude da Lin não lhe confere experiência para entender certos mecanismos da vida adulta, e por isso evito falar de casamentos, relacionamentos e afins. Seria deselegante da minha parte incutir numa jovem solteira conceitos como o sexo casual (ou o sexo de todo), a liberdade de opção por um estilo de vida ou outros ramos da libertinagem e das escolhas que temos a liberdade e o despudor de fazer. Só o facto de me ter dito que “nunca se vai divorciar”, o que me faz parecer uma espécie de marginal aos seus olhos, dão a entender que a Lin ainda tem muito que aprender. E não vou ser eu a ensinar, claro.

O mais fascinante é mesmo observar a diferente percepção da realidade que existe entre nós. Estaremos a meia-hora de autocarro de distância um do outro, mas em termos de perspectiva existem mil oceanos que nos separam. O mais curioso é que a Lin é uma rapariga culta e educada, e apesar de ter optado por entrar no mercado de trabalho depois de completar o ensino secundário em deterimento da Universidade, demonstra ter sido uma aluna aplicada. A razão de tudo isto é que o sistema de ensino que a formou criou uma espécie de “viseira” que leva a que interprete os factos de uma forma diferente da que estamos habituados. A tal “Grande Muralha da China”, o tal programa informático que bloqueia os websites incómodos no continente, é também instalado na população desde tenra idade. A informação que lhes chega pode ser a mesma, mas é digerida de acordo com os rígidos princípios que lhes são incutidos. Não lhe chamaria “lavagem cerebral”, pois parece demasiado redundante. Chamar-lhe-ia antes…”afinação de conceitos”. Isso. A ladainha da não-interferência nos assuntos internos do país passa também pela educação. Elas cuidam dos seus como querem e nós fazemos o mesmo com os nossos, e assim ninguém se chateia.

Lin fica surpreendida com o meu conhecimento sobre a História e a cultura chinesas, ou de quão informado estou no que diz respeito à produção cultural que ali se faz, nomeadamente no cinema. Ficou perplexa quando lhe falei do pensamento maoista ou dos ditos de Confúcio – talvez pense que são noções para consumo interno, fora do alcançe dos estrangeiros. É escusado dizer que sei muito mais sobre a China do que ela sabe sobre Portugal ou qualquer outro país além das fronteiras da China. Pode-se mesmo dizer com alguma segurança que sei mais sobre a China do que ela própria, com excepção dos preceitos culturais e da língua, obviamente. Tenho a certeza que ela me respeita e sente por mim amizade, como aliás já afirmou, depois de confessar a desconfiança inicial. Segundo Lin, sou o seu “primeiro e único amigo estrangeiro”. Apesar de ter conquistado uma fracção da sua confiança, realisticamente falando, tenho consciência que é impossível mudar a sua mentalidade. Os seus “camaradas” professores encarregaram-se de lhe moldar a mente de modo a conseguir sobreviver num país onde a pluralidade e o livre-pensamento não são bem vistos. Nem me atrevo sequer a mudar o que quer que seja. Limito-me a observar e tentar perceber melhor o seu mundo.

Um chinês nascido, criado e educado na China continental sai de uma linha de montagem que o mune de uma estrutura mental difícil de reajustar. Mesmo que vivam muitos anos num ambiente completamente análogo àquele onde cresceram, seja no Brasil, na Africa ou no Pólo Norte, não são facilmente maleáveis. Podem adaptar-se, adquriri alguns hábitos, amar a cultura, a música ou o povo do seu país de acolhimento, podem mesmo casar com um nativo desses países, mas a matriz está sempre presente. Pode encaixar-se no contexto do ambiente que os rodeia, mas não sofre mutação. Mesmo um chinês que decida viver para sempre noutro país, nunca muda a sua percepção da própria China. Pode mudar de nacionalidade, ou não transmitir aos filhos os valores pelos quais foi educado – e mesmo assim não resiste a julgar os seus actos pelos seus próprios padrões, mas nunca muda de ideia sobre o que é a China. É por isso que os dissidentes e outros notáveis “traidores” sofrem de uma enorme falta de credibilidade. O que deixam transparecer é muito diferente do que realmente são, e o que dizem nem sempre corresponde com o que sentem.

Quem vive em Macau há alguns anos e privou com chineses do continente apercebe-se facilmente destas diferenças. Por muito liberal, sociável, tolerante ou mesmo “simpático” que nos pareçam os nossos “mandarins”, estão dotados de um equipamento, de uma espécie de “chip” que lhes permite analisar de forma mais calculista e prática as pessoas que os rodeiam, e os problemas que lhes surjem pela frente. Podem nunca nos dizer isto na cara, mas alguns não têm pudor em demonstrar o que pensam dos “compatriotas” de Macau: os chineses são preguiçosos e sortudos, levaram uma vida fácil, os portugueses são os “invasores”, e os macaenses os filhos destes. Muito simples, e não adianta tentar mudar esta percepção. A sua disciplina e dedicação leva a que aprendam rapidamente uma língua, que terminem um curso superior, que obtenham um bom emprego e ambicionem a uma carreira de sucesso. A polémica recente com os estudantes universitários do continente tem uma razão de ser. É quase certo que na eventualidade de permancerem no território além do termo dos seus estudos constituirão uma ameaça para os residentes locais, especialmente os mais jovens, no acesso ao mercado de trabalho. Especialmente no que toca às carreiras que requerem um maior nível de especialização.

Se Macau pode ficar a ganhar com técnicos vindos do continente, que facilmente se adaptam a uma cultura semelhante à sua, e mesmo à língua, que é idêntica na parte escrita, poderá sofrer uma descaracterização em termos de identidade. Já existem (sempre existiram) instituições de ensino que ministram um programa mais aproximado com o do continente, e o conceito de “amor à Pátria” vem sendo desde sempre incutido, mesmo sem a tal “Educação Patriótica” que tanta preocupação causa entre os sectores que zelam pelo direito à diferença entre o primeiro e o segundo sistema. O plano de integração de Macau no primeiro sistema, que se concretizará totalmente em 2049, é um trabalho de grande paciência. Não interessa aos dirigentes chineses impôr aqui as suas regras, nem que para isso seja preciso “varrer” tudo o que apareça pela frente. É um projecto que produzirá resultados dentro de duas ou três gerações. É tão inevitável como o destino, e apenas uma mudança radical na própria China, na “nave-mãe”, pode impedir que assim seja. E nesse dia a Lin e os seus descendentes não vão precisar de entender Macau e os “bárbaros”, como eu, que aqui habitam. Afinal não vai ser necessário. Mesmo sem tentar vencê-los, juntamo-nos a eles.

2 comentários:

Samuel disse...

Não acredito que você saiba mais da China do que ela. Muito do que você sabe são estereótipos. Você viveu alguma vez na China?

Leocardo disse...

O que eu quis dizer, Samuel, é que a informação que nos chega não é censurada, como o que acontece na China. Há muitas coisas que acontecem na China a que temos acesso e os chineses nem sonham.

Cumprimentos.