quinta-feira, 23 de maio de 2013

Águas mil, prejuízos milhões


Macau aos olhos do mundo na noite de terça-feira

O clima malandreco que assolou Macau durante o mês de Maio deixou expostas as fragilidades do planeamento urbanístico e do saneamento em geral. Foram precisos dois dias de tempestade para gerar o caos, com cheias diluvianas que paralisaram transportes, serviços, e deixaram muito boa gente a fazer contas aos prejuízos. A tempestade de terça-feira à noite foi o clímax da desgraça, e pouco importa que tenha sido “a pior desde 1982”. Não sei como foi em 1982, não estava cá, mas depois disso tiveram mais de 30 anos para se preparar para outra eventualidade do género. Se não o fizeram com a convicção de que o S. Pedro não repetiria a gracinha, foram muito ingénuos. O que mais custa é que uma saraivada do mesmo calibre produzirá resultados idênticos. É improvável que se resolva o problema com um passe de mágica.

Como qualquer funcionário público que se preze, encanta-me um dia de tufão, um feriado imprevisto, mesmo que seja apenas durante metade do expediente. Tenho uma amiga que fica a fazer figas para que não aconteçam tempestades tropicais, porque “coitados dos pobrezinhos” e tudo mais. Eu até a compreendo, mas pouco ou nada podemos fazer pelos filipinos ou vietnamitas que vivem em barracões ou palhotas que são dizimados pelo vento, juntamente com o gado e as criancinhas levados pelas enxurradas. Os tufões são um capricho da natureza com uma frequência anual significativa, e pelo menos em Macau podemos abrigar-nos na segurança do concreto, com autoridades equipadas para as eventuais emergências, informação actualizada nos media e tudo mais. Era um mal menor se todos os tufões viessem parar aqui direitinhos e poupassem os camponeses e a malta das barracas. Como dizem os espanhóis durante a festa brava: “Que benga el toro!”. Nós estamos preparados.

Ou será mesmo assim? Estamos mais ou menos preparados, pelos vistos. Se nove horas ininterruptas de chuva alagam as zonas baixas, bloqueiam os acessos, tornam o trânsito impraticável, inundam lojas de água, destroem automóveis e motociclos, estamos mais ou menos nas lonas como os tais terceiro-mundistas que sofrem com os tufões. Não há mortos e ninguém fica sem tecto, mas perante os níveis de exigência e a capacidade financeira de Macau, temos muitas razões de queixa. Os prejuízos materiais, todos juntos e bem contados, ficam na ordem dos milhões de patacas. E quem paga tudo isto? Não há, ou não deveria haver necessidade de ficar seriamente prejudicado com uma simples chuvada com a duração de algumas horas. Quem está fora de Macau e olha para as imagens dos efeitos das cheias na imprensa pensa que o território está na eventualidade de se transformar numa nova Atlantis. Mais do que um incómodo para quem aqui vive, é um embaraço. Uma vergonha para uma cidade que se quer um centro internacional de turismo.

Na quarta-feira de manhã, já no período de bonança que se seguiu à tempestade, passei pelo Rua dos Ervanários, onde os resignados comerciantes retiravam pacientemente a água que lhes encheu a loja até a meio durante a noite anterior. Esta resignação era tão evidente que me leva a pensar que já estarão habituados. Imagino-os em casa, a ver o dilúvio pela janela e a pensar: “Bem…já perdi massa. E amanhã lá vou ter que ir limpar aquela merda toda outra vez”. O velhote da loja de pivetes, a mais famosa de Macau, ficou especialmente prejudicado. Deu-me pena vê-lo ali de rabo para o ar a limpar a oficina, com a roupa encharcada e cagada de cinza, e os pauzinhos de incenso feitos em papa. Uma comerciante da Taipa queixou-se da lama que a água da chuva lhe trouxe para dentro da loja. De onde veio e lama? Dos ralos, claro. E a quem deve esta gente esforçada e trabalhadora pedir explicações?

O sistema de escoamento de águas em Macau é ultrapassado, e chamá-lo “deficitário” é quase tecer-lhe um elogio. Não sei o que passa debaixo do chão nem me interessa, e tenho pena de quem precisa de saber, mas a verdade é que a capacidade de escoamento não deve aguentar uma dúzia de bêbados a urinar para uma daquelas sarjetas ao mesmo tempo. Meia hora de chuva já é suficiente para ver mais água a sair do que aquela que tenta lá entrar. As zonas baixas, como no Porto Interior, são implacavelmente martirizadas; além de não ter por onde sair, à água da chuva junta-se ainda a do mar, que transborda. Um mundo de curiosidades para quem não sofre com os eventuais prejuízos. Na tempestade do dia 8 fui ajudar uma amiga que tem uma loja de roupa aqui perto, e quando voltei para casa, com água até aos joelhos, tinha uma centopeia a subir-me pela perna. Não tinha contacto físico com uma centopeia desde os meus 9 anos. E mesmo aí foi voluntário.

Já sei que é mais fácil falar do que sugerir medidas concretas, mas não dá para resistir. O Governo, através das Obras Públicas, do IACM ou do Raio que o parta devia pegar num daqueles molhos de notas do erário público que faz a caixa-forte do Tio Patinhas parecer uma gorjeta de café de esquina e equipar a cidade com um super-mega-hiper sistema de escoamento que evite este tipo de situação, com prioridade para as zonas mais críticas. Se não conseguem pensar numa solução, ou se dá “muito trabalho”, contratem especialistas estrangeiros, que não devem ser assim tão difíceis de encontrar. Um pequeno esforço que os comerciantes que vêm o seu trabalho diluído pelo saneamento incompetente agradece. Com um investimento neste sentido, só ficam a perder os curiosos que se divertem a colocar fotografias das inundações nas redes sociais. Mãos à obra, que ninguém quer andar por aí com água pelos joelhos e centopeias a subir-lhe pelas pernas.

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