terça-feira, 23 de junho de 2015

É geral, este mal


Em Macau está na ordem do dia o...fumo nos casinos? Isso já enjoa, como o próprio fumo. O vídeo, sim, o vídeo. Imagens às quais faltou apenas o comentário de Artur Albarran: "O drama. A tragédia. O horror". Curioso como numa era e numa sociedade onde se banaliza a violência ao ponto de ser induzida desde tenra idade nas nossas crianças através de filmes, jogos de vídeo e etcetera, sacam-se os paninhos todos do armário e toca a aquece-los - o vídeo já foi retirado da maior parte dos canais onde podia ser visualizado, por violar as regras blá blá blá, o costume. E o que vemos nesse vídeo? Uma mulher em Macau a agredir a mãe deficiente em cadeira de rodas num parque algures no Bairro do Fai Chi Kei, na zona norte de Macau. Drama? Sim, aceita-se. Tragédia? Para alguns, para a idosa, com toda a certeza. Horror? Pfff...porquê, porque era a realidade? Já vi este filme, ponham outro, por obséquio. O que me choca não é tanto o grafismo das imagens, que são assim um pouco como o sexo dos outros: sabemos que fazem, mas não vemos nem queremos ver (e aqui falo por mim). Agressões destas devem acontecer com bastante frequência, pelas razões apontadas pelo Instituto de Acção Social (uma patetice, mas já lá vamos) e não só. Às vezes por razão nenhuma. O que me deixou indignado naquele pequeno filme não foi aquilo que eu vi, mas aquilo que não vi. Aquilo que não aconteceu.

Temos uma idosa em cadeira de rodas a ser brutalmente agredida em plena luz do dia num local público razoavelmente frequentado, e ninguém faz nada. Ah, não, espera lá que não é bem assim: alguém filmou - será que disse "Corta" e mandou repetir, em algumas das cenas? Há ainda os que abordaram a agressora, talvez porque o som do impacto dos estalos que dava com as mãos na pelo da idosa era difícil de ignorar, mas sabendo que aquela era "a mãe dela" foram saindo, com se não fosse nada com eles. Não era, de facto, e bem vistas as coisas, nada é. Houve um que disse que chamava a polícia caso a mulher persistisse naquela conduta; terá dito qualquer coisa como "mais 25 estalos na velha e começo a considerar seriamente contactar uma autoridade, e quem sabe a mais próxima". A mulher não se intimidou, e continuou a bater. Era a mãe dela, pronto, está no seu direito, se calhar. Tenho aqui no blogue uma série de artigos que me deixam a pensar que se aquela tipa estivesse a maltratar um cão, tinha meia dúzia de transeuntes à sua volta em menos de um minuto e a polícia a chegar em menos de outro. É só um palpite, pode ser que esteja enganado, sei lá. Onde eu apostava o meu dinheiro todo era na culpabilização da pessoa que filmou. Se fosse um animal a ser agredido, dizia-se cobras e lagartos do realizador: "o sacana vê aquilo a acontecer, não faz nada, e ainda filma?". Só pode ser um sádico, enquanto este nobre vídeo-amador prestou um grande serviço à sociedade, ao dar-nos a ver um problema que deve ter dimensões que vão muito além deste mano-a-mano isolado. Parabéns,e dêem uma medalha a este gajo.

Depois tornou-se viral, foi mais um "flash", toda a gente viu, provou e reprovou, e mesmo assimilou. Fazer o quê? Perdoem-me a maldade, mas aposto que aquilo que muita gente fica a pensar é no que seria se isto acontecesse com ele, ou no seu círculo familiar - os outros que se lixem, porra, que não há aqui amas-secas para os filhos dos outros, não é mesmo? Tudo bem, não é preciso ficar envergonhado, ou demonstrar indignação, podem discordar se quiserem, mas é a velha regra do "slapstick": dá para rir quando a torta é mandada na cara dos outros, mas é se for na vossa? A sério, fazemos o seguinte: eu filmo fulano ou fulano e esfregarem uma torta daquelas grandes, cheias de cremes, nas delicadas ventas de V. Exas, e de seguida vemos aquilo vezes e vezes sem conta a damos barrigadas de riso, que tal? Pois, e ainda por cima aqui não são tortas de creme, mas porrada de deixar a velhota torta, coitada. Surpreende-me como não partiu um osso, ou como o arraial de porrada que leva ali, à luz do dia e em frente a toda a gente, não lhe trouxe consequências mais graves. Se calhar já está habituada. Talvez leve todos os dias, e ficou rija. De mal a mal, lá se vai safando coitada.

O vídeo mostra que a cena demorou tempo suficiente para se reagir - tempo de sobra até. Reagir como? Há quem me tenha chamado refilão, cínico, e ai que nunca estou contente com nada, que está tudo mal feito (e está, as pessoas é que têm tendência para nivelar os gostos por baixo), tudo isso. Mas o que faria eu perante aquela situação, e aqui gostaria de salvaguardar o facto de que não tenho conhecimentos suficientes da língua chinesa para estabelecer um diálogo desta complexidade, mas imaginemos que tenho. Eu chegava perto da senhora e pedia-lhe que parasse com as agressões, e que a sua conduta era irregular e muito possivelmente à margem da própria. É possível que me respondesse que o assunto não era da minha conta, ou que me pedisse para deixá-la resolver a situação à sua maneira, mas e depois? Reparem que aquele é um espaço público, ou seja, pertence a todos. Nessa constância não tolero que alguém faça uso desse espaço, que repito, é de todos, de forma tão egoísta, ao ponto de incomodar os restantes. Quem sabe se até sugeria que ela levasse o saco de pancada para casa e lá continuasse o treino. Podia ser até que reagisse de forma arisca, eu perdia a cabeça e a agredia também, todos temos o direito de perder a cabeça, ou não?

E foi isso que aconteceu, aparentemente: a senhora teve um vaipe, vai(pe) daí foi às fuças à mãezinha. Toma, assim mesmo, curto e grosso. Foi o que disseram os tipos do IASM (noutras palavras, lógico), que "já vinham seguindo aquela família" há algum tempo, e pronto, se calhar só estavam à espera que um dos elementos matasse outro, ou todos, e depois passavam à acção. Assim sendo, e unicamente devido à mediatização do caso, arranjaram um lar para meter lá a velhota, coitada, e a partir de agora se precisar de uns tabefes bem dados, vai ter esse serviço a ser prestado por profissionais de qualidade (?), e com tudo pago! Vejam só, como às vezes até vale a pena ser agredido e humilhado em público. É como o sofrimento terreno, que depois é recompensado com a vida eterna, repleta de orgasmos prolongados e não sei quê - isto segundo os religiosos, entenda-se. O IASM e os sub-departamentos continuam a somar pontos nessa nobre arte de constatar o óbvio enquanto primam pela inutilidade, anunciando o aumento de casos dos flagelos que deviam estar a tentar combater. O que é querem, aquilo dá trabalho, pá!

E que família, esta, a da agressora, que no fundo devia estar a pensar para si mesma que malhar na progenitora era uma espécie de dever adquirido. Senão vejam: era a única ganha-pão de um agregado que consistia na vítima, portanto a mãe dela, inválida devido a uma trombose que sofreu há dez anos; o pai é idoso/doente/acamado/desempregado e toda essa colectânea de males que aflige as famílias em risco que não têm um patriarca de quem possam depender (nesses casos é este quem dá a porrada lá em casa, e os outros até nem refilam); tem a seu cargo um irmão deficiente, desconhecendo-se o grau ou profundidade dessa deficiência. Agora permitam-me acrescentar, mesmo sem ter esses dados, que viviam num apartamento com menos de 50 m2 de área, e com uma única casa-de-banho sem banheira, onde têm que tomar banho de pé, o que para alguma da "intelligenzia" local é considerado "condições mínimas de higiene". Isto é de levar qualquer um à loucura, meus amigos, e isto presumindo que a própria agressora não foi também ela própria acometida de algum transtorno psíquico, segundo algumas versões que circulam. Se calhar era uma autêntica "Madhouse Fai Chi Kei", uma variante do "Any Town Usa", aqui aplicada a gente louca a residir no Fai Chi Kei. Não terão eles vizinhos que se preocupem, nem que seja pelo receio de um dia, em pleno exercício da loucura colectiva, deixam os bicos do fogão a soltar gás, e mandem o prédio todo pelos ares?

Talvez não seja boa ideia estar aqui e julgar aquela pobre criatura, que se formos a ver bem, não deve estar nada orgulhosa do figurão a que se aprestou naquele vídeo. Pode ser que uns aceitem que a sua descida pelo abismo pela insanidade se deva à pressão a que estava constantemente sujeita, pronto, há dias em que ioga ou "tai chi" ajudam a aliviar, mas outros em que apenas com a agressão violenta a um familiar idoso se vai lá. Os mais radicais podem defender que nada justifica isto, e devia ser tudo preso, institucionalizado, amordaçado, guilhotinado e pqp a todos. Eu preocupo-me mais os sinais que (mais) este incidente enviam. O Fai Chi Kei já não é só um bairro na periferia da cidade, habitado por imigrantes do continente e as suas famílias, e já se encontram lá umas habitações bem catitas e tudo - pudera, com a falta de espaço, só faltava construírem no ar. Enquanto o Fai Chi Kei vai ficando, vão ficando mais pessoas lá dentro, pessoas todas diferentes, com ambições diversas e caminhos distintos. E sonhos, também. Qualquer senhora de meia-idade que me esteja a ler não se vai imaginar certamente a chegar a casa do trabalho e encontrar não um lar, mas uma jaula de penúria e sofrimento, um cemitério de mortos-vivos. E será isto apenas "cada vez mais normal"? Se vamos aceitar esta fatalidade, porque não banalizar a agressão também? E vai mais uma torta na cara. Não me consigo é rir, que diabo...

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