O cagueiro é o lugar
Onde toda a vaidade acaba
Onde todo o fraco faz força
E todo o Valente se caga
Anónimo
Se somos realmente uma obra de um criador, de um ser maior, de um alfa e de um omega, uma das coisas que temos o direito de criticar no nosso “design” é a função excretória. É complicado abordar este tema sem recorrer a alguns expedientes de mau gosto, mas o Bairro do Oriente é mesmo assim: eclético. Quer dizer, qualquer ser humano normal utiliza a casa-de-banho várias vezes ao dia para levar a cabo aquelas tarefas que, enfim, não conseguimos evitar. Era muito mais conveniente e higiénico que o corpo humano tivesse outra forma de expelir aquilo de que não necessita, mas a única forma que encontrou foi esta que temos. É assaz desagradável. É um daqueles momentos em que não nos distinguimos dos restantes animais. A função excretória não requer inteligência ou arte. Chega a ser até um pouco humilhante, para ser franco.
Quando nascemos e não passamos de uma massa semi-racional conduzida por pouco mais que impulsos, usamos fralda, e dependemos de outrem para cuidar da higiene mais básica. É escusado alguém orgulhar-se da sua continência, mesmo quando chega a velho, uma vez que começamos a jornada neste mundo incontinentes. Começamos mal. Em menos de dois anos, nos casos normais, aprendemos a usar a casa-de-banho mais ou menos da mesma forma que os adultos. É uma aprendizagem quase automática, uma rotina normal que damos por garantida. Seria aterrador se fosse uma daquelas coisas que só surjem na adolescência, como o acne. Os meninos e as meninas fazem os seus chichis e cocós praticamente desde que têm consciência da sua existência. É melhor assim, sem dúvida.
Temos muita sorte em ter nascido nesta época. Até há cem anos o tratamento dos dejectos humanos era um tremenda dor de cabeça. Ouvimos dizer que há muitos séculos era comum as pessoas aliviarem-se no meio da rua como fazem os cães nos tempos que correm. Achamos piada a este “fait-divers”, mas não conseguimos imaginar o cenário. É demasiado paradoxal. Hoje em dia basta despejar o autocolismo e o problema passa a ser de algum infeliz que faz a vida a tratar da porcaria dos outros. Ficar a pensar para onde foi a poia é uma daquelas coisas que arruinam o apetite. Assusta pensar que todos os dias há sete mil milhões de almas a produzir caca que inevitavelmente acaba em qualquer sítio do planeta. É certamente um local nada recomendável.
Quando estamos em casa, rodeado das coisas que gostamos, do papel higiénico da nossa escolha, dos desodorizantes predilectos, do nosso chuveiro e das nossas toalhas, fica tudo mais fácil. Cuidar das funções mais ingratas chega mesmo a ser um prazer. O pior é quando temos que o fazer lá fora, longe do remanso do lar, e ainda por cima sabendo que temos que partilhar a nossa privacidade com estranhos. Milhares de estranhos. Que nojo. No local de trabalho ainda se tolera este fado, e conseguimos identificar e evitar aquele fulano mais badalhoco a quem damos meia-hora ou mais até usar a casa-de-banho depois dele, mas tudo muda de figura quando se trata dos sanitários públicos, esses antros de degradação.
Um sanitário público é provavelmente o sítio mais hediondo à face da Terra. É escusado educar as pessoas a utilizar os sanitários com o mínimo de higiene ou respeito pelos infelizes que o vão utilizar de seguida. É demagógico pensar que alguém vai tratar o sanitário público com o mesmo cuidado com que o faz em casa. Ali não é a nossa casa, então para quê cuidar que não se mija o chão todo ou se deixa o rebordo da sanita todo borrado? Os sanitários públicos são absolutamente descartáveis. Só os utilizamos quando é mesmo necessário, e nunca ficamos a pensar da vez em que lá podemos voltar. É pior que um toca-e-foge. É um suja e foge.
Há quem acredite que a limpeza de um sanitário público é o espelho do nível civilizacional de um povo. Nunca usei um sanitário público na Finlândia ou na Nova Zelândia, não sei se esta teoria se aplica. Mas vivendo em Macau, já fui muitas vezes a sanitários públicos na China, assim como muito dos leitores que dão um pulinho de vez em quando ao continente, nem que seja aqui ao lado a Zhuhai. Alguns sanitários na China requerem um exercício de respiração. Prendo a respiração, entro, faço o que tenho que fazer, saio e volto a respirar. O meu recorde pessoal nesta apneia voluntária é de 80 segundos. Em vez de me demorar para lavar as mãos prefiro usar um daqueles toalhetes húmidos. Mas outra coisa não seria de esperar de um local onde milhares de pessoas urinam, a frequência da limpeza não acompanha a frequência da utilização, e tantas vezes o escoamento é deficitário, e em alguns casos os autocolismos simplesmente não funcionam.
Da herança que os romanos nos deixaram, o saneamento público foi um dos mais bem conseguidos. Tenho que lhes tirar o chapéu por se lembrarem de resolver um problema que muita gente não gosta nem de ouvir falar. Num mundo ideal os excrementos cheiravam bem, e mesmo assim seria ainda melhor que se desintegrassem, que se volatilizassem, que evaporassem, enfim, que desaparecessem de algum jeito. Se a tal lei de Lavoisier é mesmo aplicada a toda a matéria, mesmo a esta, o melhor mesmo é não pensar nisso. Pelo menos enquanto nos estivermos a bater com uma salada de alface e tomate. E já agora o melhor mesmo é lavar as mãos regularmente, e evitar o contacto físico com estranhos. Sabe onde esteve aquela mão que acabou de apertar agora mesmo?
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