quarta-feira, 3 de junho de 2009

O elefante continua lá


É difícil falar de política quando o que está em causa é a perda de vidas humanas. Passam amanhã 20 anos do massacre da Praça de Tiananmen – literalmente “Portas do Céu”, bem no centro de Pequim, a capital chinesa. O ano era 1989, e o mundo assistia embasbacado à desagregação até poucos anos antes impensável da União Soviética, o gigante comunista. As mudanças no mundo eram por demais evidentes, e a queda do muro de Berlim em Novembro marcava a queda da cortina de ferro, e o princípio do fim da entediante Guerra Fria.

Em Pequim a Primavera trazia a contestação do movimento estudantil, que se afirmava pró-democrata. A inflação era galopante e a situação no Partido Comunista e no próprio exército era instável. Os protestos iniciaram-se com a morte de Hu Yaobang, um reformador pró-democrata e anti-corrupção. Desde a véspera do funeral de Hu, a 15 de Abril até ao dia 4 de Junho de 1989, cerca de 100 mil pessoas juntaram-se em Tiananmen pedindo reformas económicas e um fim ao autoritarismo do Governo central.

O mundo observava expectante durante as sete semanas que duraram o protesto, que incluíram uma visita do presidente soviete Mikhail Gorbachev, o pai da perestroika, durante o mês de Maio. Na noite do dia 3 apagavam-se as luzes, e o movimento era reprimido violentamente. Não se sabe ao certo quantas pessoas morreram; terão sido entre as poucas centenas e os milhares. O movimento ficou referenciado pelas instâncias oficiais como “uma sublevação com o intuito de derrubar o regime”, ou simplesmente “Incidentes de 4 de Junho”.

Foi uma vitória da ala dura do PCC contra a ala moderada. Provavelmente a sua última grande vitória. Os vinte anos seguintes foram marcados pela implementação das reformas iniciadas por Deng Xiaoping. É muito difícil imaginar o que seria a China hoje caso o movimento pró-democracia tivesse triunfado. Sem querer estar aqui a tentar conjecturar se seria melhor ou pior, basta olhar para o exemplo da Rússia, onde se deu uma anarquia inicial, que acabaria na actual oligarquia estabelecida, com um enorme déficit democrático.

Em países grandes e heterogéneos como a Rússia e a China, aplicam-se medidas de controlo intensivo dos media em particular e das liberdades em geral em nome da estabilidade e da governabilidade. A própria História da China tem sido marcada por uma espécie de “dança das cadeiras”, sempre com o poder nas mãos de muito poucos. É arriscado vaticinar que uma democracia parlamentar de características ocidentais dê resultado em países que não são bem...ocidentais.

Em Macau e Hong Kong a Primavera de 1989 foi vivida intensamente, com demonstrações públicas de apoio ao movimento estudantil de Pequim. Leio na secção “Há 20 anos” da edição de hoje do JTM uma pequena caixa que dá conta da crítica do jornal Ou Mun ao primeiro-ministro da altura, Li Peng, atacando a “prepotência e obscurantismo” do governo chinês devido às restrições à imprensa. É irónico que no dia seguinte o Ou Mun tenha perdido completamente o pio, abstendo-se até de noticiar os eventos da madrugada de 3 para 4 de Junho, o que lhes valeu protestos de leitores à porta da sede do jornal.

E não foi só no Ou Mun que se deu a tal volta de 180 graus. Mas compreende-se que o desfecho da Primavera de 1989 tenha merecido uma análise cautelosa da maioria que simplesmente esperou que o pó estivesse assente para que depois fosse reiterado o apoio ao Governo Central e dado um voto de confiança nas suas reformas em marcha. Em Macau e Hong Kong, onde já tinha sido negociada a transferência de soberania, levantavam-se receios. Muitos pensavam que afinal pouca coisa tinha mudado desde os atribulados tempos da Revolução Cultural, vinte anos antes, e que a China era ainda uma espécie de “papão”.

Neste aspecto foi feita uma fuga para a frente, e ainda bem. O Governo Central não desinvestiu nas actuais RAE, e deixou sempre claro que honrava cumprir os princípio de “um país, dois sistemas”, idealizado por Deng. O dia 4 de Junho é recordado em Hong Kong todos os anos através de uma vigília com a participação de milhares, e em Macau faz-se a habitual vigília com a participação de muito poucos – uma questão de educação cívica diferente do outro lado do Rio das Pérolas, sem que tenha realmente uma leitura política significativa. No continente o aniversário do incidente recebe o tratamento habitual, com receios do despertar de antigos fantasmas que possam abalar o status quo.

Este dia serve sobretudo para recordar aqueles que perderam as suas vidas em nome de um ideal. Foram estes quem tiveram realmente qualquer coisa a perder. No há retórica, política ou ideal que justifique o derramamento de sangue humano. E também não adianta tapar o sol com uma peneira. Se o elefante está nas ruas, não é fechando todas as portas e janelas e enfiando a cabeça num qualquer buraco que ele vai embora. Continua lá.

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